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sábado, 31 de maio de 2014

...RETICÊNCIAS...


... quando apoio meu cotovelo consigo ler melhor, acho que a lâmpada da marquise é nova, clareia tanto que consigo ler sem dificuldade a bula de remédio, mesmo com suas letrinhas; e antes que vocês pensem que estou precisando de remédios, já adianto que não, minha saúde não é nenhuma Brastemp, mas ainda consigo viver bem nesses últimos dias de chuvaréu...
... falei pro Raimundo: "se me aparecer novamente querendo enfiar a bosta do seu cobertor no meu lugar, te juro que pego você dormindo e enfio minha caneta no teu ouvido. Dá mole pra ver se não faço isso". Gente, o cara que se cagou todo de medo, e depois disso, nunca mais pegou o meu lugar...
... às vezes o que me incomoda é a barulheira dos carros e dos ônibus quando o dia nem começou. Sofro de insônia, pra pegar no sono é uma batalha, e quando consigo, gosto de dormir com silêncio...
... de uns dias pra cá tem aparecido gente nova no quarteirão. Até comentei isso com Elimar: Todo cuidado é pouco, não quero correr o risco de acordar e depois descobrir que levaram meus cadernos. Vou esconde-los dentro da minha calça; aí sim, quero ver se alguém vai ter coragem de meter a mão e esbarrar no meu pinto, isso ia ser engraçado...
... Bira me disse que ontem tava andando pela Lapa e viu sua filha com o marido e uma menina de cinco anos caminhando entre os dois de mãos dadas. Falou que ficou escondido nos arcos, enquanto eles passeavam no gramado em frente. Imagino o pânico que teve. Já pensou se a filha vê o pai daquele jeito? Se pelo menos vestisse uma roupa melhor, quem sabe? No fundo foi até bom que ela não viu. O chato que agora ele tá triste, e fica repetindo toda hora que sua neta lembra bastante à sua avó ...
... quando a Kombi estaciona, vejo que aparece gente que nunca vi nessa quadra pra garantir seu lanche da noite. Uma outra noite teve briga por causa disso. Távamos na fila, e um negão quis passar a nossa frente. Os da frente empurrou o cara, mas ele voltou pra lá com a maior cara de pau. Todo mundo gritou que ele não fazia parte da nossa coletividade, mas o negro abriu seu beiços e exibiu o único dente na frente. Mostrou o dedo médio pra gente, pegou seu pão com mortadela e o copo de café com leite e saiu de lá. Depois dessa, nunca mais apareceu na área...
... eu disse pro Bira: Nada contra, quem sou eu pra criticar ou levantar a bandeira de alguém? Mas me dá uma raiva quando o comitê aparece com um candidato na frente deles vindo apertar as nossas mãos e perguntando, sempre com rindo de orelha a orelha: O que precisam, amigos? Peçam que quando eu for eleito, minha primeira providência será em atende-los. Bem, eu perguntei ao Bira se ele já viu ou soube de alguém que algum prefeito entregou as chaves das casas populares pra nossa gente? Claro que não. E outra, o idiota não que nem título de eleitor nós temos? Palhaçada...
... Elimar me contou uma, que pra acreditar, tive que ver pra crer. Na esquina do nosso quarteirão, um carro de bacana aparece e estaciona religiosamente todas quintas-feiras depois de uma hora da madrugada, e de lá sai uma madame que aparenta ter 35, 37 anos, muito cheirosa, de cabelos lisos e sempre bem vestida. Sempre sozinha, e fica nos olhando como se tivesse escolhendo uma mercadoria. E ela sempre escolhe quem está mais sujo e mais fedorento. Chama o cara e entram juntos dela no carrão. Nem dá cinco minutos, e o cara sai ajeitando a braguilha da calça, e logo em seguida o carro parte. Até outra quinta-feira...
... tirando a chuva fina e o vento frio do inverno, não reclamo da minha vida. Não tenho mulher, nem filhos pra atazanar minha paciência. Eu e eu somos um só. Claro, tenho meus amigos, mas não estimulo muito minhas amizades; vira e mexe um morre de pneumonia, de tuberculose ou volta para casa. Por isso meu desapego aos outros. Pelo menos quando eu morrer não vou deixar ninguém triste com minha partida...
... nossa dor de cabeça são os garotos que aparecem por aqui nas madrugadas de sexta para sábado. Sempre estão altos de drogas e bebidas. Fizeram uma covardia com Setembrino ontem: Tacaram fogo nele. Todo mundo fugiu apavorado, inclusive eu, e te digo com sinceridade: como a cidade anda violenta...
...ou a polícia. Não são todos, tem alguns que são legais, fingem que a gente nem existe. Mas tem outros que gostam de esculachar. Nos ameaçam com suas armas, batem na gente com pedaços de pau, jogam spray de pimenta de graça. Dizem que somos o lixo da humanidade. Que vivemos às custas da piedade dos outros. Só esquecem que muitos que estão aqui preferiam morar em seus lares com suas famílias. O negócio é que muitos gostam de cana, outros fumam crack. Eu mesmo saí porque não aguentava mais morar com minha irmã. Ela sempre jogou na minha cara que sou acomodado. De tanto ouvir suas queixas, dei no pé. Aqui sou mais feliz...
...Bira me contou e custei pra acreditar! O Gervásio, aquele que esmola na Rio Branco, e mostra suas pernas abertas por feridas inflamadas, fica de sete horas da manhã até cinco horas pedindo, chorando por dez centavos. Quando vai embora, pega sua muleta e vai na Cinelândia. Achavam que ele ia pro Aterro, dormir lá pelos lados da Glória. Mas dormir nada! Depois do Amarelinho da Glória, numa rua transversal, ele entra em uma casa, daquelas de dois andares, bem antiga, e uma hora depois sai todo arrumado, banho tomado, e vai beber um chope no bar. A profissão dele é pedir, e de tanto pedir, agora tá rico! Vê se pode...
...de noite a cidade fica linda com suas luzes nos prédios, bares e nos postes...
...e de noite, quando me reúno com meus semelhantes, digo com sinceridade, não tenho nenhum bem material, mas tenho liberdade em deixar meus pensamentos fluindo aleatoriamente, sem censura...

Rogerio de C. Ribeiro



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