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terça-feira, 13 de maio de 2014

FATOS


Dalva tinha medo dos finais de semana. Principalmente nas sextas e sábados. Os vizinhos da Vila Genoveva, onde Dalva morava na casa 18, também tinham medo. E o motivo para esse medo coletivo tinha um nome: William Rios, o marido de Dalva.
Nas sextas William largava seu trabalho e ia direto ao bar para se encontrar com seus colegas para entornar todas, jogar sueca e mexer com as mulheres. Ele guardava seu uniforme de carcereiro no seu armário de ferro e vestia algo discreto que não pudessem identifica-lo. Sempre andava armado, dizia que era para sua própria defesa no caso de assalto ou - como ele gostava de dizer, caso esbarrasse em algum ex-preso disposto a se vingar pelos carinhos recebidos durante sua estadia no hotel!
Quando chegava em frente ao portão da vila, às onze horas ou meia noite, já vinha bêbado, trocando as pernas. Passava pelas casas vizinhas,  os moradores evitavam se aproximar nas janelas, por causa do intenso pavor que tinham dele.
E não era por menos. Dono de um temperamento violento e cruel por qualquer coisa ficava cismado. Uma vez, o inquilino da casa 20, que morava sozinho com uma mãe idosa, foi discutir com ele por causa de uma música executada no volume máximo que ele ouvia em casa, com as janelas escancaradas.. O detalhe era que o som incomodava todos vizinhos, mas só o novato da vila tomou coragem e foi lá tomar satisfações.
E se não fosse Dalva para intervir, William teria quebrado o pescoço do pobre infeliz. O vizinho da casa 20 o ameaçou dizendo que o denunciaria para a polícia por causa da agressão, mas William voltou a agarrar o pescoço do infeliz e informou que ele também era da polícia, e que tinha muitos amigos que fariam tudo para protegê-lo de falsas acusações. Jogou o rapaz no chão como se fosse um trapo e ainda disse "faça o que tem vontade", e voltou para sua aparelhagem de som ligado no último volume.
Lógico que o coitado não fez nenhuma acusação, e durante uma semana, toda vez que viu William chegando na vila ouviu dele:
- E aí, boiola, tá afim de dançar?
- Babaca, como tá tua mãe?
- Não quer dar uma voltinha pra conhecer meus amigos?
E acham que alguém da vila manifestou algum apoio ao rapaz da casa 20? Nada, tanto que duas semanas depois, um caminhão de mudanças apareceu na rua e ele e a mãe saíram da vila sem dizer adeus para ninguém.
Nessa sexta-feira quando William entrou na Vila Genoveva, cambaleava de um lado para o outro tropeçando nas pernas. Em vez de procurar as chaves no bolso da calça, esmurrou a porta e gritou pelo nome da mulher.
Por isso que os finais de semana eram o terror para Dalva e Guilherme, seu filho. O garoto tinha 12 anos,era magro e tímido,e mesmo seu pai nunca tivesse encostado um dedo nele, morria de medo dele. Só a simples presença dele em casa já lhe causava um impacto negativo. Os melhores momentos para Guilherme era quando o pai dobrava no trabalho, porque podia desfrutar os momentos para ficar com sua mãe, podia abraça-la e beija-la enquanto assistiam a filmes e novelas agarradinhos no sofá da sala. Mas nos finais de semana era praticamente impossível qualquer gesto de ternura com a presença dele . William sempre repetia para ele:
- Escute bem seu pai! Não fique de muito dengo pra mulher nenhuma, Guilherme, senão elas vão acabar montando no teu cangote e você vai perder toda autoridade que um homem de verdade tem que ter em cima da sua mulher. Se deixar, a mulher te chama de frouxo, bate na tua cara. E não quero que você  seja viadinho, ou um filhinho de mamãe. Homem que é homem mostra pra mulher quem manda, e que o lugar da mulher é só pra servir à família!
Nos momentos que estavam sozinhos, Dalva tentava amenizar a situação e dizia para Guilherme que o pai não era má pessoa como muitos acreditavam, mas que o trabalho dele o fez ficar daquele jeito, rude,com alguns pensamentos errados.
Guilherme não acreditava nas desculpas da mãe. Sabia que ela só queria passar panos quentes naquela situação toda, que piorava cada vez mais e com o tempo se tornara insustentável para um ambiente familiar.
Depois que esmurrou a porta várias vezes, Dalva, com receio, abriu e ele entrou na sala feito furacão. Com seu corpo de cem quilos balançando como se estivesse dentro de um navio, perguntou:
- Cadê minha janta?  
E Dalva respondeu:
- Vou esquentar agora.
Para William, um motivo por mais fútil que fosse, já era motivo para uma discussão. E quando estava bêbado, era uma linha tênue para uma briga feia.
Agarrou o braço direito de Dalva na altura do cotovelo e berrou - com certeza todos moradores da vila ouviram ele berrando, - que já tinha falado cem, mil, cinquenta milhões de vezes, que era para esquentar a comida antes que ele voltasse cansado do trabalho; e enquanto ele berrava, a sacudia, e a cabeça dela balançava pra frente e para trás, e seus olhos esbugalhados de pavor via a cara do marido vermelha, a boca retraída num esgar torto, os olhos em chamas, as narinas bufando como um touro na arena. William a sacudiu e depois a empurrou. Dalva tropeçou e quase caiu no sofá; William chegou nela, ergueu a mão espalmada e largou um tabefe que pegou em cheio no rosto dela, que aí sim, caiu estatelada no chão. William esticou seu corpanzil que teimava num vai-e-vem incessante, mirou-a de cima para baixo sem esboçar emoção nenhuma, e disse:
- O que você tem na sua cabeça, vadia? Merda? Fica em casa o dia inteiro só coçando a xereca e fazendo porra nenhuma? Nem pra se lembrar que tem um marido, um homem que é o provedor dessa merda de casa, que graças a mim você não passa fome e ainda tem como se  vestir... Você tinha mais que agradecer ajoelhada por que tem uma casa, e um filho comigo. - e enquanto ele fazia seu discurso (com todos vizinhos ouvindo), deu pontapés nela, e acertou suas costelas, seu peito, sua cabeça. Ele se abaixou, puxou seus cabelos, ergueu o rosto dela e desferiu um murro que acertou no olho dela. Dalva gritou de dor, sentiu o sangue escorrendo pelos lábios cortados, e caiu ajoelhada no chão ao lado do sofá.
Nesse momento Guilherme surgiu vindo do seu quarto. William, quando o vendo parado no corredor como uma estátua de pijama, disse para seu filho:
- Guilherme, é bom que tenha acordado, porque agora vou ensinar como uma vagabunda deve ser tratada! Toda vez que um homem chegou em casa e não viu o prato pronto na mesa te esperando - William deu com a mão aberta na cabeça de Dalva, - vai ter que ensina-la como dona de casa prendada deve se comportar - agora deu um chute nas pernas de Dalva, que no instinto de sobrevivência, as levantou e abraçou-as em cima do sofá. - Mulher que é mulher sempre tenta agradar o marido em todas horas do dia - deu um tapa no ouvido direito dela, - uma esposa prendada sempre tem que andar cheirosinha e prontinha pra que seu homem descarregue todas necessidades nela. - Mais um tapa. - Guilherme, vai aprendendo, porque senão é sua mulher que vai bater em você. E se isso acontecer, tomara que eu esteja morto pra não ver essa vergonha. - Deu outra tapa. Dalva estava deitada encolhida no sofá, chorando baixinho. Ele completou: - Tô cansado...Vou tomar um banho, mereço isso, e quando sair do banheiro quero ver a mesa posta do jeito que gosto e que já te ensinei. Guarde isso para sempre, Guilherme, só quero te educar para que no futuro seja como eu sou, um homem de verdade!
Saiu cambaleando direto para o banheiro. Guilherme saiu da sua posição de estátua, correu e abraçou a mãe, mas Dalva, aterrorizada, com um olho roxo e sangue seco no queixo, o afastou, gaguejou dizendo que precisava esquentar logo a comida, senão as coisas ficariam pior do que já estava.
Não foi a primeira e nem seria a última vez que apanhava do marido. Uma vez, uma prima dela aconselhou que fosse a delegacia para fazer uma ocorrência; Dalva, apavorada respondia: Nem pensar, ele é da polícia!
E o pânico que ela sentia do marido aumentava a cada surra que recebia dele. No início do casamento, foram apenas alguns tapinhas sem maiores consequências; quando ficou grávida vieram os pontapés, e nos anos seguintes a violência só aumentava, principalmente nas sextas e sábados.
Foi no sábado antes do dia amanhecer, que os moradores da vila, depois que ouviram em silêncio a sessão de pancadaria na casa 18, escutaram  sons diferentes vindo daquela casa. Não foram gritos, nem tapas e nem xingamento. A vizinhança acordou na madrugada com vários tiros de pistola. Nem precisaram perguntar de onde vinham  aqueles disparos. Tomados por uma súbita coragem, imaginaram que o violento marido tivesse descarregado sua arma, que tanto exibiu orgulhoso para quem quisesse olhar, na sua esposa e no filho.
Uma a uma as portas das casas da vila iam sendo abertas, e vários homens e mulheres e até mesmo crianças correram até a casa 18; viram que a porta da casa abriu e Guilherme só de pijama e descalço caiu sentado no meio-fio da calçada, e vomitou. Algumas pessoas foram socorrê-lo e até o abraçaram enquanto os outros entraram na casa.
Entraram no quarto do casal. E viram, abismados, William deitado só de cueca, com o lençol amarrotado entre suas pernas, cercado numa poça de sangue que encharcou o colchão. Sentada na ponta da cama e segurando a pistola com as duas mãos, Dalva olhava para o vazio. Nenhuma emoção naquele rosto marcado de hematomas.
Sugeriram que ela saísse da casa para fugir do flagrante, mas Dalva negou com a cabeça. Vestia uma camisola rosa, e os vizinhos podiam ver as marcas roxas nas suas costelas e nas pernas.
Dalva continuou em silêncio sentada na beira da cama segurando a pistola com as duas mãos até o momento que a polícia chegou. Só quando entraram no quarto que ela largou a pistola no chão e disse: Tive que mata-lo para não morrer.
Depois que foi algemada e conduzida para a viatura, ela ouviu dos vizinhos que iam ajuda-la no que pudessem. Mentalmente ela riu, porque eles sempre foram omissos, e agora queriam prestar solidariedade. Viu seu filho, agora vestido com uma camisa, entre alguns vizinhos. Ela mandou que ele ligasse para sua tia para que fosse busca-lo, e explicar o que aconteceu. Guilherme balançou a cabeça concordando, e viu sua mãe saindo dentro da viatura policial rua abaixo.
Dalva foi autuada e presa em flagrante. Ouviu alguns policiais comentando entre eles que a morte de William foi uma grande perda. Encaravam com raiva a mulher que covardemente disparou seis tiros com ele dormindo, sem poder reagir. Um policial sibilou entre os dentes: assassina, safada, covarde. Dalva nem ligou. Na frente do delegado disse que só ia falar em juízo.
Encarcerada no Presídio do Gericinó, hoje aguarda julgamento. Passa seus dias junto com outras presas, que conhecem sua história e a ajudam lá dentro. Uma delas conseguiu papel e envelope para que Dalva escrevesse para o filho.
Guilherme sentia-se infeliz na casa da sua tia. Ela era casada pela segunda vez com um homem mais velho, que vivia reclamando de tudo, inclusive dele. Sua tia dizia que estadia dele era por pouco tempo, que Guilherme só tinha ela como família, mas o marido resmungava. Pelo menos não era violento com ela.
Sua tia entregou a ele uma carta. Era da sua mãe. Sentado na cama de solteiro no quarto de empregada que dormia, rasgou o envelope e ansioso, leu e releu, saboreando cada palavra escrita:
Guilherme, todo dia rezo para você ficar bem aí na casa da sua tia. Eu sei que não é a mesma coisa que nossa casa, mas te prometo, sua estadia aí vai ser provisória. Imagino como deve estar se preocupando comigo. Mas te digo com toda sinceridade, estou muito bem. As presas que estão aqui comigo sempre que podem me ajudam para minha adaptação. Por favor, tenha paciência com sua tia. Mesmo com sua timidez não se feche totalmente para ela. Continue estudando. Eu sei que vai se transformar em um homem maravilhoso mais tarde, bem diferente do seu pai. Depois daquilo que aconteceu, tenho tido ótimas noites de sono. Pelo menos agora estou livre das torturas que seu pai fazia comigo e com você também, indiretamente. Agora acabou e não vamos chorar por causa disso. Só estou aguardando o julgamento, e acredito que vou ser absolvida do crime depois que as testemunhas disserem para os jurados como era nossa vida na Vila. Acredito muito nessa possibilidade, mas também se eu for condenada, não quero que sofra e nem que fique martirizado. Saiba que  sempre vou estar com você, nos seus pensamentos e nos seus sonhos. Somos um só, Guilherme, você é o meu confidente, o meu cúmplice. Eu te amo acima de tudo. Como escrevi no início, tenha paciência com sua tia. Se ela for enérgica, obedeça sem reclamar. Daqui a pouco estaremos juntos de novo. E te peço mais uma vez, filho, não fique remoendo pelo que aconteceu naquela madrugada. Eu que matei seu pai, eu que disparei os seis tiros nele. Nenhum perito vai desconfiar que a marca de pólvora nas minhas mãos foram de cinco tiros. Ninguém vai saber que foi você que pegou a pistola do seu pai na gaveta da mesinha ao lado da cama, e deu um tiro na cabeça dele. Não. Tem que se convencer que errou o tiro, o  que houve mesmo foi que levantei da cama, peguei a pistola da sua mão e descarreguei tudo no corpo dele. Eu apertei o gatilho, eu que dei os tiros. Então eu matei seu pai. William mereceu cada bala que levou. Ele nunca mais vai levantar suas mãos para bater em mim ou em qualquer outra pessoa. Não, se esqueça dessa noite, e tem que saber que tudo isso que aconteceu com o tempo vai se apagar, e num futuro próximo tudo isso o que houve serão apenas fatos que aconteceu na nossa vida.
Sua mãe que tanto te ama;

Dalva.

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