FATOS
Dalva
tinha medo dos finais de semana. Principalmente nas sextas e sábados. Os
vizinhos da Vila Genoveva, onde Dalva morava na casa 18, também tinham medo.
E o motivo para esse medo coletivo tinha um nome: William Rios, o marido de Dalva.
Nas
sextas William largava seu trabalho e ia direto ao bar para se encontrar com seus
colegas para entornar todas, jogar sueca e mexer com as mulheres. Ele guardava
seu uniforme de carcereiro no seu armário de ferro e vestia algo discreto que
não pudessem identifica-lo. Sempre andava armado, dizia que era para sua
própria defesa no caso de assalto ou - como ele gostava de dizer, caso esbarrasse
em algum ex-preso disposto a se vingar pelos carinhos recebidos durante sua
estadia no hotel!
Quando
chegava em frente ao portão da vila, às onze horas ou meia noite, já vinha
bêbado, trocando as pernas. Passava pelas casas vizinhas, os moradores evitavam se aproximar nas
janelas, por causa do intenso pavor que tinham dele.
E
não era por menos. Dono de um temperamento violento e cruel por qualquer coisa
ficava cismado. Uma vez, o inquilino da casa 20, que morava sozinho com uma mãe
idosa, foi discutir com ele por causa de uma música executada no volume máximo que
ele ouvia em casa, com as janelas escancaradas.. O detalhe era que o som
incomodava todos vizinhos, mas só o novato da vila tomou coragem e foi lá tomar
satisfações.
E
se não fosse Dalva para intervir, William teria quebrado o pescoço do pobre
infeliz. O vizinho da casa 20 o ameaçou dizendo que o denunciaria para a
polícia por causa da agressão, mas William voltou a agarrar o pescoço do
infeliz e informou que ele também era da polícia, e que tinha muitos amigos que
fariam tudo para protegê-lo de falsas acusações. Jogou o rapaz no chão como se
fosse um trapo e ainda disse "faça o que tem vontade", e voltou para
sua aparelhagem de som ligado no último volume.
Lógico
que o coitado não fez nenhuma acusação, e durante uma semana, toda vez que viu
William chegando na vila ouviu dele:
-
E aí, boiola, tá afim de dançar?
-
Babaca, como tá tua mãe?
-
Não quer dar uma voltinha pra conhecer meus amigos?
E
acham que alguém da vila manifestou algum apoio ao rapaz da casa 20? Nada,
tanto que duas semanas depois, um caminhão de mudanças apareceu na rua e ele e
a mãe saíram da vila sem dizer adeus para ninguém.
Nessa
sexta-feira quando William entrou na Vila Genoveva, cambaleava de um lado para
o outro tropeçando nas pernas. Em vez de procurar as chaves no bolso da calça,
esmurrou a porta e gritou pelo nome da mulher.
Por
isso que os finais de semana eram o terror para Dalva e Guilherme, seu filho. O
garoto tinha 12 anos,era magro e tímido,e mesmo seu pai nunca tivesse encostado
um dedo nele, morria de medo dele. Só a simples presença dele em casa já lhe
causava um impacto negativo. Os melhores momentos para Guilherme era quando o
pai dobrava no trabalho, porque podia desfrutar os momentos para ficar com sua
mãe, podia abraça-la e beija-la enquanto assistiam a filmes e novelas agarradinhos
no sofá da sala. Mas nos finais de semana era praticamente impossível qualquer
gesto de ternura com a presença dele . William sempre repetia para ele:
-
Escute bem seu pai! Não fique de muito dengo pra mulher nenhuma, Guilherme,
senão elas vão acabar montando no teu cangote e você vai perder toda autoridade
que um homem de verdade tem que ter em cima da sua mulher. Se deixar, a mulher
te chama de frouxo, bate na tua cara. E não quero que você seja viadinho, ou um filhinho de mamãe. Homem
que é homem mostra pra mulher quem manda, e que o lugar da mulher é só pra servir
à família!
Nos
momentos que estavam sozinhos, Dalva tentava amenizar a situação e dizia para Guilherme
que o pai não era má pessoa como muitos acreditavam, mas que o trabalho dele o
fez ficar daquele jeito, rude,com alguns pensamentos errados.
Guilherme
não acreditava nas desculpas da mãe. Sabia que ela só queria passar panos
quentes naquela situação toda, que piorava cada vez mais e com o tempo se
tornara insustentável para um ambiente familiar.
Depois
que esmurrou a porta várias vezes, Dalva, com receio, abriu e ele entrou na
sala feito furacão. Com seu corpo de cem quilos balançando como se estivesse
dentro de um navio, perguntou:
-
Cadê minha janta?
E
Dalva respondeu:
-
Vou esquentar agora.
Para
William, um motivo por mais fútil que fosse, já era motivo para uma discussão.
E quando estava bêbado, era uma linha tênue para uma briga feia.
Agarrou
o braço direito de Dalva na altura do cotovelo e berrou - com certeza todos
moradores da vila ouviram ele berrando, - que já tinha falado cem, mil,
cinquenta milhões de vezes, que era para esquentar a comida antes que ele voltasse
cansado do trabalho; e enquanto ele berrava, a sacudia, e a cabeça dela
balançava pra frente e para trás, e seus olhos esbugalhados de pavor via a cara
do marido vermelha, a boca retraída num esgar torto, os olhos em chamas, as
narinas bufando como um touro na arena. William a sacudiu e depois a empurrou.
Dalva tropeçou e quase caiu no sofá; William chegou nela, ergueu a mão espalmada
e largou um tabefe que pegou em cheio no rosto dela, que aí sim, caiu
estatelada no chão. William esticou seu corpanzil que teimava num vai-e-vem incessante,
mirou-a de cima para baixo sem esboçar emoção nenhuma, e disse:
-
O que você tem na sua cabeça, vadia? Merda? Fica em casa o dia inteiro só coçando
a xereca e fazendo porra nenhuma? Nem pra se lembrar que tem um marido, um
homem que é o provedor dessa merda de casa, que graças a mim você não passa
fome e ainda tem como se vestir... Você
tinha mais que agradecer ajoelhada por que tem uma casa, e um filho comigo. - e
enquanto ele fazia seu discurso (com todos vizinhos ouvindo), deu pontapés
nela, e acertou suas costelas, seu peito, sua cabeça. Ele se abaixou, puxou
seus cabelos, ergueu o rosto dela e desferiu um murro que acertou no olho dela.
Dalva gritou de dor, sentiu o sangue escorrendo pelos lábios cortados, e caiu ajoelhada
no chão ao lado do sofá.
Nesse
momento Guilherme surgiu vindo do seu quarto. William, quando o vendo parado no
corredor como uma estátua de pijama, disse para seu filho:
-
Guilherme, é bom que tenha acordado, porque agora vou ensinar como uma
vagabunda deve ser tratada! Toda vez que um homem chegou em casa e não viu o
prato pronto na mesa te esperando - William deu com a mão aberta na cabeça de
Dalva, - vai ter que ensina-la como dona de casa prendada deve se comportar -
agora deu um chute nas pernas de Dalva, que no instinto de sobrevivência, as
levantou e abraçou-as em cima do sofá. - Mulher que é mulher sempre tenta
agradar o marido em todas horas do dia - deu um tapa no ouvido direito dela, -
uma esposa prendada sempre tem que andar cheirosinha e prontinha pra que seu
homem descarregue todas necessidades nela. - Mais um tapa. - Guilherme, vai
aprendendo, porque senão é sua mulher que vai bater em você. E se isso
acontecer, tomara que eu esteja morto pra não ver essa vergonha. - Deu outra
tapa. Dalva estava deitada encolhida no sofá, chorando baixinho. Ele completou:
- Tô cansado...Vou tomar um banho, mereço isso, e quando sair do banheiro quero
ver a mesa posta do jeito que gosto e que já te ensinei. Guarde isso para
sempre, Guilherme, só quero te educar para que no futuro seja como eu sou, um
homem de verdade!
Saiu
cambaleando direto para o banheiro. Guilherme saiu da sua posição de estátua,
correu e abraçou a mãe, mas Dalva, aterrorizada, com um olho roxo e sangue seco
no queixo, o afastou, gaguejou dizendo que precisava esquentar logo a comida,
senão as coisas ficariam pior do que já estava.
Não
foi a primeira e nem seria a última vez que apanhava do marido. Uma vez, uma
prima dela aconselhou que fosse a delegacia para fazer uma ocorrência; Dalva,
apavorada respondia: Nem pensar, ele é da polícia!
E
o pânico que ela sentia do marido aumentava a cada surra que recebia dele. No início
do casamento, foram apenas alguns tapinhas sem maiores consequências; quando
ficou grávida vieram os pontapés, e nos anos seguintes a violência só
aumentava, principalmente nas sextas e sábados.
Foi
no sábado antes do dia amanhecer, que os moradores da vila, depois que ouviram
em silêncio a sessão de pancadaria na casa 18, escutaram sons diferentes vindo daquela casa. Não foram
gritos, nem tapas e nem xingamento. A vizinhança acordou na madrugada com
vários tiros de pistola. Nem precisaram perguntar de onde vinham aqueles disparos. Tomados por uma súbita
coragem, imaginaram que o violento marido tivesse descarregado sua arma, que
tanto exibiu orgulhoso para quem quisesse olhar, na sua esposa e no filho.
Uma
a uma as portas das casas da vila iam sendo abertas, e vários homens e mulheres
e até mesmo crianças correram até a casa 18; viram que a porta da casa abriu e
Guilherme só de pijama e descalço caiu sentado no meio-fio da calçada, e
vomitou. Algumas pessoas foram socorrê-lo e até o abraçaram enquanto os outros
entraram na casa.
Entraram
no quarto do casal. E viram, abismados, William deitado só de cueca, com o
lençol amarrotado entre suas pernas, cercado numa poça de sangue que encharcou
o colchão. Sentada na ponta da cama e segurando a pistola com as duas mãos,
Dalva olhava para o vazio. Nenhuma emoção naquele rosto marcado de hematomas.
Sugeriram
que ela saísse da casa para fugir do flagrante, mas Dalva negou com a cabeça. Vestia
uma camisola rosa, e os vizinhos podiam ver as marcas roxas nas suas costelas e
nas pernas.
Dalva
continuou em silêncio sentada na beira da cama segurando a pistola com as duas
mãos até o momento que a polícia chegou. Só quando entraram no quarto que ela
largou a pistola no chão e disse: Tive que mata-lo para não morrer.
Depois
que foi algemada e conduzida para a viatura, ela ouviu dos vizinhos que iam
ajuda-la no que pudessem. Mentalmente ela riu, porque eles sempre foram
omissos, e agora queriam prestar solidariedade. Viu seu filho, agora vestido
com uma camisa, entre alguns vizinhos. Ela mandou que ele ligasse para sua tia para
que fosse busca-lo, e explicar o que aconteceu. Guilherme balançou a cabeça
concordando, e viu sua mãe saindo dentro da viatura policial rua abaixo.
Dalva
foi autuada e presa em flagrante. Ouviu alguns policiais comentando entre eles
que a morte de William foi uma grande perda. Encaravam com raiva a mulher que
covardemente disparou seis tiros com ele dormindo, sem poder reagir. Um
policial sibilou entre os dentes: assassina, safada, covarde. Dalva nem ligou. Na
frente do delegado disse que só ia falar em juízo.
Encarcerada
no Presídio do Gericinó, hoje aguarda julgamento. Passa seus dias junto com outras
presas, que conhecem sua história e a ajudam lá dentro. Uma delas conseguiu
papel e envelope para que Dalva escrevesse para o filho.
Guilherme
sentia-se infeliz na casa da sua tia. Ela era casada pela segunda vez com um
homem mais velho, que vivia reclamando de tudo, inclusive dele. Sua tia dizia
que estadia dele era por pouco tempo, que Guilherme só tinha ela como família, mas
o marido resmungava. Pelo menos não era violento com ela.
Sua
tia entregou a ele uma carta. Era da sua mãe. Sentado na cama de solteiro no
quarto de empregada que dormia, rasgou o envelope e ansioso, leu e releu,
saboreando cada palavra escrita:
Guilherme, todo dia rezo para você ficar bem aí na
casa da sua tia. Eu sei que não é a mesma coisa que nossa casa, mas te prometo, sua
estadia aí vai ser provisória. Imagino como deve estar se preocupando comigo. Mas te digo com
toda sinceridade, estou muito bem. As presas que estão aqui comigo
sempre que podem me ajudam para minha adaptação. Por favor, tenha paciência
com sua tia. Mesmo com sua timidez não se feche totalmente para ela. Continue
estudando. Eu sei que vai se transformar em um homem maravilhoso mais tarde, bem diferente do seu pai. Depois daquilo que aconteceu, tenho tido ótimas noites de sono.
Pelo menos agora estou livre das torturas que seu pai fazia comigo e com você
também, indiretamente. Agora acabou e não vamos chorar por causa disso. Só
estou aguardando o julgamento, e acredito que vou ser absolvida do crime depois que
as testemunhas disserem para os jurados como era nossa vida na Vila. Acredito
muito nessa possibilidade, mas também se eu for condenada, não quero que sofra e
nem que fique martirizado. Saiba que sempre vou estar com
você, nos seus pensamentos e nos seus sonhos. Somos um só, Guilherme, você é o
meu confidente, o meu cúmplice. Eu te amo acima de tudo. Como escrevi no
início, tenha paciência com sua tia. Se ela for enérgica, obedeça sem reclamar.
Daqui a pouco estaremos juntos de novo. E te peço mais uma vez, filho, não fique
remoendo pelo que aconteceu naquela madrugada. Eu que matei seu pai, eu que
disparei os seis tiros nele. Nenhum perito vai desconfiar que a marca de
pólvora nas minhas mãos foram de cinco tiros. Ninguém vai saber que foi você
que pegou a pistola do seu pai na gaveta da mesinha ao lado da cama, e deu um
tiro na cabeça dele. Não. Tem que se convencer que errou o tiro, o que houve mesmo foi que levantei da cama,
peguei a pistola da sua mão e descarreguei tudo no corpo dele. Eu apertei o
gatilho, eu que dei os tiros. Então eu matei seu pai. William mereceu cada bala
que levou. Ele nunca mais vai levantar suas mãos para bater em mim ou em
qualquer outra pessoa. Não, se esqueça dessa noite, e tem que saber que tudo
isso que aconteceu com o tempo vai se apagar, e num futuro próximo tudo isso o
que houve serão apenas fatos que aconteceu na nossa vida.
Sua mãe que tanto te ama;
Dalva.
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