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quinta-feira, 16 de outubro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 47

No capítulo anterior: Vera se levantou e caminhou até a janela. Dali, via o canil abandonado e o viveiro vazio.
- Como foi que minha mãe te contratou?
- Senhora??
Vera virou-se e disse, ríspida:
- Pelo que me lembro, mamãe sempre foi exigente com empregados. Tem uma coisa que me encasqueta... Como conseguiu aturar o gênio instável da minha mãe?
- Sua mãe tinha um gênio difícil, mas eu sempre soube lidar com isso...
- Belinda, você está mentindo...
Os olhos da negra arregalaram. Vera apontou o dedo e decretou:
- Você conheceu essa Gláucia! Não minta mais... Conte a verdade...

Fernanda estava no quarto de Dona Vitória. Enquanto a velha senhora assistia a televisão desligada, a empregada verificava uma identidade que encontrara ao lado da caixa de joias, no armário. Agora analisava o RG da esclerosada.
- Que assinatura de analfa - disse ela sorrindo. - Até uma criança retardada assinaria igual.
O rosto na foto era de uma Dona Vitória mais nova, e a identidade era dos anos 1970.
Fernanda aproveitava o momento que a arrogante da sua patroa conversava com a cardíaca idiota para adiantar algumas coisas que planejara. Primeiro, ligou do seu celular - tomando o devido cuidado para ocultar o número do telefone - para Aurélio, se passando por uma mulher irritada com o fracasso do plano. Queria que ele pensasse que fosse uma parente do tal Pedro Ibañes. Do jeito que estava desesperado pelo fracasso da sua empreitada, talvez metesse os pés pelas mãos. Quando Vera achasse a carta no livro, aí mesmo que sua vida ia se transformar num inferno.
"Do jeito que ela é, vai dar um pontapé nele e botar pra fora de casa..."
Esse era um pequeno fio de um carretel que ela arquitetou. Claro que Jayme e sua tia nunca iam desconfiar disso. Se soubessem, o caldo podia entornar.
Mas não vai. Se Jayme pensava que ela ia se contentar com um simples roubo de joias, estava completamente enganado. Chegou sua hora. A oportunidade se materializou, cristalina, clamando que ela agisse.
E o que ela queria? Aurélio desestabilizado, Vera irritada, o caos...
E com a assinatura da velha, lhe dando plenos poderes...
Fernanda conhecia uma pessoa que a ajudaria nisso. Depois que falsificasse a assinatura, arrumaria a autenticação. Assim, ia partir para outra parte do plano...
Ia matar Vera. Com a procuração, venderia o casarão. E assim podia sumir dali depois, não com cem mil, mas com um milhão.
Fernanda guardou a identidade no bolso do avental e disse para Dona Vitória:
- Sua escrota...
Dona Vitória riu quando ouviu o som da voz de Fernanda.
                                  ****************
- Dona Vera, não sei de onde tirou essa ideia que sei...
- Não minta mais pra mim. Pelos velhos tempos, me diga.
Belinda sacudiu a cabeça.
- Juro por tudo que é mais sagrado, eu não sei.
Vera ainda não acreditava nela, mas não tinha nenhuma alternativa. Sabia que Belinda, mesmo se soubesse, não lhe diria nada.
Persuasiva, disse:
- Vamos fazer o seguinte... Se lembrar de algo, me liga.
- Mas...
- Chega, Belinda. Na hora que quiser falar comigo, me liga.
Belinda deu de ombros e perguntou se podia ver Dona Vitória. Vera fez um aceno com a cabeça e deu as costas para ela.
Quando Belinda entrou no quarto da velha senhora, Fernanda ligava a tevê e aproveitou para sair. Belinda sentou-se numa cadeira em frente e perguntou:
- Como a senhora tem andado, Dona Vitória?
A velha olhou com aqueles olhos ausentes para a negra gorda na sua frente e pensou:
" Agora Teodoro deu para chamar uma mãe de santo pra fazer um trabalho para ajuda-lo nas eleições... Preciso conversar com ele bem sério..."
Belinda olhou para a porta fechada do quarto e disse:
- Sua filha quer saber da Gláucia...
Dona Vitória, ausente, fixava os olhos para o nada.
- Tenho medo da reação dela... Não sei se ia aguentar...
Belinda chorava.
- Prometi à senhora que nunca diria nada sobre ela... e vou cumprir minha promessa...
Dona Vitória fechou a cara. Detestava macumba.
                           ********************
Depois que Belinda foi embora, Vera ficou na sala andando de um lado ao outro, nervosa. Caminhou até sua mesa e pegou algumas pastas. Olhou de relance para o livro Cem Anos de Solidão e gritou pelo nome da empregada. Quando Fernanda entrou na sala, Vera disse irritada:
- Quantas vezes vou ter que repetir que não quero nada aqui em cima da mesa que não seja do meu trabalho!
- Desculpe, dona Vera, não sei como esse livro foi parar aí...
- Na próxima vez preste atenção.
Fernanda pegou o livro e propositalmente abriu-o pelo meio. A carta caiu em cima de uma pasta de processos.
- Como sou desastrada - disse Fernanda. Vera pegou a carta.
- O que é isso?
Leu o que estava escrito. E pela reação que surgiu no seu rosto, era o que Fernanda imaginara.
- Dona Vera, eu posso...
- Fora daqui - gritou Vera, descontrolada. - Some da minha frente!!!!
Fernanda voltou para a cozinha. Ela sorria.
"Agora quero ver o circo pegando fogo..."

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 46

No capítulo anterior: Maresia trancou a cara. Atrás dele surgiu Abelhão.
- O cara tá incomodando, Maresia?
Não havia ninguém no corredor naquela hora. Maresia olhou de um lado ao outro e disse:
- Tá. Xavier não quer mais papo com ele.
- Espera! Espera... - disse Aurélio. - Meu trato é com ele e...
Abelhão passou por Maresia e parou em frente de Aurélio. Puxou a pistola debaixo da camisa e puxou a trava. Apontou.
- Pode rezar... Xavier não gosta de merdinha como você!
Aurélio ficou vesgo com o cano na sua frente. Maresia disse:
- Perdeu, mané!

- Tem sete dias que saí daqui, mas parece que são sete meses - disse Belinda, sentada à mesa na cozinha.
A janela estava aberta e o sol invadia a cozinha. Fazia muito calor e Belinda bebia água. Vera estava sentada no outro lado da mesa, com um álbum na mão.
- Desculpe por ter te chamado assim, mas acredito que você pode me ajudar - disse Vera. Ela abriu o álbum e Belinda viu algumas fotos em preto e branco.
- Sem nenhum problema, dona Vera.
- Vou direto ao assunto, Belinda. Ontem achei esse álbum na garagem.
Belinda continuou em silêncio. Ela esvaziou o copo d'água e esperou.
- O que me estranha é que nunca tinha visto esse álbum antes.
- Mesmo?
- Com certeza, Belinda. - Vera puxou um retrato do plástico e estendeu para a frente. Belinda pegou e olhou. - Sabe quem é essa moça da foto?
Belinda olhou, virou o retrato ao contrário, olhou de novo e respondeu:
- Dona Vitória mais nova. - Devolveu a foto.
- Não, errou.
- Ué... É dona Vitória sim!
- Minha mãe tinha quinze anos em 1961. E essa mulher não tem cara de adolescente nem aqui, nem na China.
Belinda pediu licença e puxou o álbum. Virou as páginas e decretou:
- Dona Vera, essa moça é sua mãe sim.
- Aí que está, Belinda. No início também acreditei nisso. Mostrei para minha mãe e ela disse um nome.
- Que nome?
- Gláucia. Você conheceu alguém com esse nome?
- Gláucia... - repetiu Belinda.
                              *******************
Aurélio ficou vesgo enquanto olhava o cano da pistola na sua frente. De relance percebeu que Abelhão sorria, um sorriso sádico.
De repente a arma baixou. Maresia agarrou o braço do capanga e disse, zangado:
- Tá maluco, Abelhão?
- Aposto que ele se cagou todo - disse Abelhão ainda sorrindo enquanto guardava a pistola. - Xavier me deu ordens em despachar esse idiota pra bem longe.
Recuperando um pouco de fôlego, Aurélio disse:
- O que está acontecendo?
- O que tá havendo é o seguinte - disse Maresia. - Xavier depositou toda confiança no seu sucesso e agora tá se aporrinhando com o cliente.
- Eu pedi um prazo maior...
- Chega de prazos - Eles continuavam parados no corredor. - O cliente tá quase desistindo do negócio.
- Não foi isso que ouvi da mulher...
- Que mulher?
- Não sei quem é ela, mas pelo jeito como falou sabe muito bem do negócio.
Maresia agarrou Aurélio pelo colarinho e disse:
- Que história maluca é essa de mulher?
Aurélio se afastou.
- Também queria saber.
- Olha, vou te dar um conselho... some daqui, nunca mais apareça por aqui. Se tentar mais uma, quem vai te apontar uma arma sou eu... e atiro na tua cara!
Maresia e Abelhão entraram no escritório e bateram com a porta na cara de Aurélio.
"E essa agora? O que vou fazer?"
                        ***********************
- Mulher? - disse Xavier, coçando o nariz com um pano.
- Foi o que ele falou - disse Maresia.
Xavier largou o pano em cima da mesa e murmurou:
- Esse cara tá com alguma coisa em mente... e não tô gostando nadinha.
- O que vai fazer?
- Ainda não sei... vou fazer uma ligação... Vamos ver o que ele vai falar...
                        **************************
Belinda respondeu:
- Não conheço e nem conheci nenhuma Gláucia, dona Vera.
- Puxe pela memória...
Belinda sorriu, constrangida:
- Olha, se tivesse conhecido alguém com esse nome, certamente te diria.
Vera reclamou:
- Belinda, você serviu à minha mãe durante trinta anos. Não é possível que nesses anos todos não tenha ouvido algo vindo dos meus pais...
Belinda cortou:
- Dona Vera, assim a senhora me ofende. Nunca ouvi nenhuma conversa particular dos seus pais. Sempre soube onde era o meu lugar nessa casa.
Vera se levantou e caminhou até a janela. Dali, via o canil abandonado e o viveiro vazio.
- Como foi que minha mãe te contratou?
- Senhora??
Vera virou-se e disse, ríspida:
- Pelo que me lembro, mamãe sempre foi exigente com empregados. Tem uma coisa que me encasqueta... Como conseguiu aturar o gênio instável da minha mãe?
- Sua mãe tinha um gênio difícil, mas eu sempre soube lidar com isso...
- Belinda, você está mentindo...
Os olhos da negra arregalaram. Vera apontou o dedo e decretou:
- Você conheceu essa Gláucia! Não minta mais... Conte a verdade...

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 45

No capítulo anterior: " Lugar de empregado é da cozinha pra área de serviços. Nunca tenha pena das suas dificuldades. Empregada adora chorar miséria. Se não formos duros com eles, caímos na sua lábia e acabamos nos seus problemas. Os laços entre patroa e empregada se restringe apenas ao serviço. Só isso. E se uma empregada não conseguir ser discreta, o negócio é chutar-lhe pra fora..."
Essa conversa tinha sido há mais de vinte anos... Dona Vitória mudou bastante depois daquele papo, mas Vera aprendeu direitinho...
A subida era desgastante. Com a respiração ofegante e o coração disparando, Belinda só fazia isso em consideração à velha senhora. Para ela, devia muito... muito...

Os colegas perceberam que Aurélio não estava muito bem humorado nessa manhã. Deixaram-no ali na sua mesa, fingindo que nem estava ali.
E era a sensação mesmo que tinha.
Era seu último dia para convencer Vera em vender o maldito casarão, e pelo jeito, podia acenar e dizer adeus aos cem mil mais fáceis que ia ganhar.  Além dessa derrota, existia a possibilidade real de ser escorraçado da casa pela ingrata esposa...
"Não é justo - pensou ele, enquanto amassada clipes em cima da sua mesa, - Sempre fui bacana com ela. Sempre dei atenção às suas paranoias. Sempre aturei o idiota do pai dela. Dei três filhos maravilhosos... apoiei todas suas vontades, e agora ela me diz que preciso mudar! Ela me conheceu assim... como vou mudar?Só porquê ela quer? Não faço milagres!"
Pensou na noite anterior, e sua frustração.
"Logo agora que Fernanda caiu na minha lábia, aparece Dequinha com medo de fantasmas! É muita falta de sorte..."
O seu aparelho de celular, que estava sobre a mesa, tocou. Olhou o visor, mas não reconheceu o número. Atendeu sob os olhares curiosos dos colegas:
- Pois não - disse mal-humorado.
- Aurélio? Corretor de imóveis? - Perguntou uma voz feminina. Era uma voz arrastada, cansada, como se fosse fumante.
- Sou eu... Quem fala?
- O senhor esteve no escritório de Xavier e ficou de dar uma resposta para ele hoje...
Estranho... De quem seria essa misteriosa voz? Xavier nunca comentou nada de mulher na jogada...
- Minha senhora... Não sei do que está falando...
Aurélio sentia os olhos dos parasitas fixos nele e na sua conversa. Decidiu se levantar e saiu da sala. Ficou no corredor ao lado do elevador enquanto falava, agora sozinho:
- A senhora deve estar me confundindo com outro Aurélio.
- Não brinque com minha inteligência, rapaz. - A voz rouca soou ríspida. - Hoje é seu último dia de ganhar um dinheiro que talvez nunca teve na sua vida... e estou ansiosa em saber se teve sucesso na empreitada oferecida...
Aurélio arriscou. A mão que segurava o celular suava:
- Não... Vera continua irredutível... até pedi um prazo maior, mas Xavier não me respondeu...
- FRACASSADO!!!! INCOMPETENTE!!!! - Aurélio afastou o celular do ouvido.
- Olha... Seja lá quem for, não admito...
A voz rouca gritou de novo:
- Eu sou a cliente do Xavier...
- O cliente dele é homem...
- Pedro é meu marido, mas quem manda nessa joça toda sou eu!
- E quem é a senhora?
Houve um breve silêncio e depois ela disse:
- Eu sou o pior pesadelo que um dia imaginou, garoto... - A voz rouca parecia cansada. - Eu quero esse casarão... e vou ter...
Aurélio não ouviu mais nada. Olhou o celular e pensou:
"Vou lá falar com Xavier... Que doida é essa que me ligou?"
                           ******************
Fernanda arrumava a sala. Passava pano na estante enquanto observava discretamente sua patroa sentada no sofá. Vera tinha o celular na mão e falava com alguém.
Fernanda largou a estante e foi na mesa. Em cima havia as pastas de processos e o livro do imbecil, com a ponta da carta à mostra. Fernanda tentava se manter mais natural possível, mas por dentro fervia. Era inacreditável que a pamonha não tivesse ainda visto a tal carta... Só faltava ter que esfregar na sua cara para ver!!!
Bateram na porta e Fernanda foi atender. Uma negra gorda aguardava na varanda.
- Então você é a menina que me substituiu... - disse uma arquejante e cansada Belinda.
Fernanda manteve seu rosto impassível. Apenas esboçou um leve sorriso.
- Oi, prazer em te conhecer - disse ela, dando caminho para que a antiga doméstica entrasse. Da sala, Vera estava em pé com um imenso sorriso estampado.
- Oi, dona Vera... Finalmente cheguei... Um pouco cansada, mas cheguei...
Vera se aproximou e disse, ignorando o comentário dela:
- Vem, vamos para a cozinha, Belinda... - Ela dirigiu um olhar frio para Fernanda e ordenou: - Enquanto estivermos lá na cozinha, fique com minha mãe.
- Sim, dona Vera - respondeu uma submissa Fernanda.
Belinda deu mais uma espiada na moça e perguntou:
- Antes de irmos na cozinha, posso ver dona Vitória?
Vera olhou o relógio de pulso e disse, ansiosa:
- Depois, depois... Antes preciso fazer algumas perguntinhas...
Ela agarrou o braço de Belinda e puxou pelo corredor até a cozinha. Na sala, Fernanda pensou:
" Aí tem... Espero que minha tia tenha mantido aquela boca podre fechada..."
                          *******************
Aurélio bateu na porta e Maresia atendeu. Parecia mal-humorado.
- O que quer?
- Xavier... quero falar com ele - disse um angustiado Aurélio.
Maresia coçou o peito com a ponta da imensa unha suja do dedo mindinho.
- Ele tá ocupado. Liga pra marcar uma hora com ele.
- Maresia, uma mulher me ligou... que história é essa?
Maresia trancou a cara. Atrás dele surgiu Abelhão.
- O cara tá incomodando, Maresia?
Não havia ninguém no corredor naquela hora. Maresia olhou de um lado ao outro e disse:
- Tá. Xavier não quer mais papo com ele.
- Espera! Espera... - disse Aurélio. - Meu trato é com ele e...
Abelhão passou por Maresia e parou em frente de Aurélio. Puxou a pistola debaixo da camisa e puxou a trava. Apontou.
- Pode rezar... Xavier não gosta de merdinha como você!
Aurélio ficou vesgo com o cano na sua frente. Maresia disse:
- Perdeu, mané!

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 44

No capítulo anterior:
Vera se sentia estranhamente ociosa nessa manhã. Tirando o fim de semana que ficava em casa, o restante da semana era controlado pelo seu ritmo rotineiro de acordar cedo, tomar café no mesmo horário de sempre, ir para o escritório - tivesse cliente, audiência ou absolutamente nada - e voltar para casa com Aurélio de carona. Mas essa semana muitas coisas aconteceram, novidades, surpresas, que quebraram sua rotina.
Desde quando ia imaginar que ficaria atraída por um homem que não fosse seu marido? Desde que reencontrou o velho colega de escola, as coisas deram uma reviravolta nos seus hábitos.
Vera terminou com seu café e viu que já passava de nove e meia da manhã. Quando foi a última vez que fizera isso? Nem se lembrava mais, talvez quando ainda era uma menininha...
Sozinha na mesa de jantar, ficou olhando para a cadeira da cabeceira vazia, o lugar que seu pai sentava e depois de sua morte permaneceu vaga, mas sempre com uma xícara, um prato, talheres, como se ele ainda estivesse ali com ela. Sua ausência doía, a saudade era imensa.
"Pai, precisava tanto que estivesse aqui comigo para me aconselhar... e me dizer quem é essa tal de Gláucia..."
Com certeza seu pai sabia. Será que ele falaria alguma coisa se ainda fosse vivo? Nunca mencionou nada antes, nem ele e nem sua mãe...
Sua esperança agora era Belinda. Talvez soubesse de algo. Ela trabalhou com eles durante trinta anos. Impossível que não soubesse de algumas particularidades da sua mãe...
- Belinda... Prepare-se... - Vera murmurou enquanto esvaziava a xícara de café.
                          ***************
Belinda estava sentada em um banco de madeira no corredor do hospital estadual Azevedo Lima. Junto com ela, centenas de pessoas se amontoavam desde cedo. Belinda ouviu uma criança no colo da mãe chorando, com o braço inchado. Na fileira da frente um homem apoiava o queixo com a mão direita; o lado esquerdo da sua face estava inchado e roxo. Uma moça batia no balcão da recepção, gritando do descaso em relação ao seu pai que estava deitado no banco.
- Meu pai precisa de um cardiologista, moça! Ele tá passando mal! - A recepcionista nem olhava para ela. Anotava uma ficha e pedia os documentos do pobre coitado que respirava com dificuldade. - Esqueci de pegar os documentos, merda! Ele precisa de um atendimento urgente!!!! A droga do documento pego depois...
- Desculpe, é a regra... sem documento...
- Porra!!!! Meu pai tá morrendo e não pode ser atendido por causa de uma merda de RG????
No seu canto, Belinda conferiu na sua bolsa se não tinha esquecido sua identidade. Encontrou na sua carteira. Ficou com pena daquele homem. Mas não era só ele que precisava de um médico. Muitos que ali se encontravam chegaram de madrugada como ela.
"Mas o caso dele é uma emergência. O meu, ainda bem, é uma consulta..."
Três seguranças parrudos se aproximaram da moça e a arrastaram do balcão, agarrando seus braços. Ela se debatia e pedia socorro, mas ninguém esboçou nenhuma reação.
"Todo mundo tá na mesma situação, mocinha. Não é só seu pai que precisa de ajuda..."
O homem deitado no banco comprido massageava o peito e seu rosto tinha um tom acinzentado. Belinda virou o rosto. Era muito sofrimento junto, compartilhando o mesmo lugar.
Ela ouviu uma enfermeira chamando seu nome e se levantou apressada. Passou pelo homem cinzento deitado e se aproximou da porta do consultório que permanecia entreaberta. A enfermeira, uma mulher baixa, troncuda, com uma imensa verruga preta e cabeluda sobre o lábio superior, disse numa voz rouca e enfadonha:
- Dr. Gilberto não pode atende-la hoje. Acabou de receber uma chamada importante e teve que sair. Peço que se dirija ao balcão para remarcar a consulta.
Belinda não sabia se era o calor que fazia ali dentro ou a frustração de perder horas sentada no banco presenciando e ouvindo gemidos, ferimentos, dores, mas o fato que sentiu palpitações no peito e uma leve tontura rodando dentro da sua cabeça. Esperançosa, ainda perguntou:
- Será que consigo marcar a consulta para amanhã?
A enfermeira tocou com a ponta do dedo indicador na verruga e torceu a boca, mostrando uma dentadura amarelada:
- É mais provável que consiga pro mês que vem.
Belinda não conseguiu segurar as lágrimas que desceram pelas faces. Afastou-se da enfermeira e se apoiou na parede. Pessoas iam e vinham, pessoas choravam, gritavam, e ela permanecia ali, ancorada pelos ombros na parede fria, respirando com dificuldade.
Quando sentiu-se melhor, foi ao balcão para remarcar a consulta.
Fora do hospital, ligou para sua antiga patroa:
- Dona Vera, sou eu. Acabei de sair do hospital... É, não tive sorte...
- Estou te esperando, Belinda - disse Vera, ansiosa, no outro lado da linha.
- Por isso te liguei, dona Vera. Não estou me sentindo muito bem...
- Isso é impressão sua, da sua cabeça - replicou Vera. - Depois que chegar aqui, vai ver que tudo é imaginação sua...
- Não tem nenhuma imaginação!
- Ah, Belinda! Sobe logo, preciso falar contigo.
- A senhora não vem me buscar de carro?
Houve um silêncio pesado. Depois Belinda ouviu Vera, irritada:
- O carro está guardado na garagem e estou preocupada com os pneus dele... Larga de frescura e sobe a rua. É bom pro coração - terminou ela e desligou o celular.
Conformada, Belinda iniciou a subida na rua. Nem sabia porquê pedira carona para sua antiga patroa. Nos trinta anos que serviu à família Paranhos, nunca - mas NUNCA mesmo, entrou em um dos carros que Vera já tivera. Lembrou-se de uma frase que ouvira entre dona Vitória e a filha:
" Lugar de empregado é da cozinha pra área de serviços. Nunca tenha pena das suas dificuldades. Empregada adora chorar miséria. Se não formos duros com eles, caímos na sua lábia e acabamos nos seus problemas. Os laços entre patroa e empregada se restringe apenas ao serviço. Só isso. E se uma empregada não conseguir ser discreta, o negócio é chutar-lhe pra fora..."
Essa conversa tinha sido há mais de vinte anos... Dona Vitória mudou bastante depois daquele papo, mas Vera aprendeu direitinho...
A subida era desgastante. Com a respiração ofegante e o coração disparando, Belinda só fazia isso em consideração à velha senhora. Para ela, devia muito... muito...

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 43

No capítulo anterior: Enquanto abraçava Dequinha, Fernanda não conseguia segurar o sorriso. Adorou  ver a decepção na cara do idiota.
"Tá achando que as coisas são fáceis - pensou ela, acariciando os cabelos da menina que dormia chupando o dedo. - Vai aprender que comigo as coisas não são como quer... Vamos transar sim... só que vai ser no seu quarto, na cama que tua mulher dorme! Ali sim, abro as pernas pra você... Só ali!"


Mal amanheceu o dia e Fernanda já estava a postos na cozinha, preparando o café da manhã. Eram seis horas da manhã e ela já estava de pé uma hora antes; ainda era madrugada quando foi ao portão e viu Jayme em pé ao lado de um poste fumando um cigarro.
O sujeito se aproximou do muro e a moça disse, depois que tirou o anel que surrupiara do baú da velha senhora e entregou a ele:
- Toma, vê quanto vale.
Jayme virou o anel entre os seus dedos e comentou:
- Espero que o suficiente pra você sair daí logo.
- Não tem motivo pra tanta pressa - sussurrou Fernanda. - A trouxa da patroa confia em mim...
- Por enquanto - disse Jayme. - Mas vamos que sua tia solte pra alguém do bairro quem é você?
- Ela não faria isso...
- Não garanto não... e sabe quem mora em frente da birosca? Belinda.
Fernanda não disse nada. Jayme continuou:
- E a irmã dessa tal de Belinda que intermediou sua vinda...
Fernanda balançou a cabeça e rosnou:
- Para com isso, Jayme! Dessa vez nada vai dar errado! Vá, vê quanto vale esse anel. De onde isso veio tem mais. Pode ser nosso pulo do gato!
Jayme guardou o anel no bolso da sua calça de linho, deu um beijo nos lábios da moça e disse:
- Tô contando as horas pra te pegar de jeito na nossa cama...
- Todo sacrifício é válido pra gente ficar rico, meu bem - disse Fernanda, entrando na casa.
Agora na cozinha, matutava sobre uma ligação que ouviu de Vera. O que ela queria com a antiga empregada?
"Espero que minha tia não tenha falado mais que devia..."
Se fosse isso, Jayme ia ter que dar um jeito naquela cachaceira...
                                ************
Aurélio acordou mal-humorado. Bem azedo. Praticamente tomou o café da manhã mudo, evitando olhar para a nova empregada. Seu ego machista foi arrebentado quando não conseguiu concretizar seu plano. Fernanda também evitou o patrão. Para ele, ela devia ter se arrependido de ter deixado Dequinha dormindo no seu quarto. "Ora bolas! Desde quando ela foi contratada para ser babá de uma pirralha medrosa?", pensava ele enquanto esvaziava a xícara de café. Pegou sua pasta e saiu de casa sem falar com sua esposa, que ainda dormia.
Sentia que tudo ia dando errado nesses últimos dias. Não sentia mais a tranquilidade que tinha dentro do mausoléu. Sua garantia de envelhecer ao lado de Vera desmoronava como um castelo de baralhos.
Estava sentindo uma estranha sensação dentro de si, como se o avisasse que Vera tomaria uma decisão logo em relação ao casamento.
E se viu saindo dali, sem eira nem beira, sem nenhum tostão furado no bolso, à mercê da vida real.
Enquanto descia a colina, matutava sobre tudo isso. E um leve desespero tomava conta de si.
                                 ************
As crianças tinham ido ao colégio naquela Kombi enferrujada e a imbecil da patroa ainda dormia. A velha esclerosada a esperava no seu quarto, ainda de camisola e fraldão mijado, mas Fernanda não tinha pressa de atendê-la.
Estava sentada à mesa da cozinha com o papel que encontrara no bolso da camisa do tarado impotente. Girava a folha de um lado ao outro, pensando o benefício que teria com aquilo.
Dois dias atrás ouviu Aurélio tentando convencer que Vera vendesse o casarão, e o fora que levou dela. Desse dia até hoje não se falou mais disso.
- Significa que o merda é tão ruim que não conseguiu nada...
Cem mil... Era um dinheiro bem atraente. Fernanda dobrou o papel e pensou:
"Dessa vez não vou entrar em nenhuma furada com Jayme. Vou deixar que ele pense que ainda somos parceiros... Mas o que quero mesmo é meter a mão numa bolada forte..."
Por isso não falara nada com ele sobre a carta. Esse era seu negócio; pra Jayme, ela estava ali pra roubar joias. Mas pra que correr esse risco se podia ser dona de tudo?
E era tão simples... Aurélio ficaria caidinho por ela e faria tudo que mandasse...
Principalmente se sua esposa morresse!
                               **************
Vera acordou com o celular tocando. Tateou pela mesinha ao lado, derrubando sem querer um copo de água pela metade e encontrou o aparelho. Ainda com os olhos fechados, atendeu.
- Alô... - resmungou com uma voz pastosa.
- Bom dia, Vera. Sou eu, Rodrigo.
Vera fez uma careta e viu as horas no relógio de cabeceira. Não eram nove horas ainda. Percebeu também que Aurélio já tinha se levantado.
- Me acordou... - disse ela, triste.
- Desculpe... Não sabia que ainda tava dormindo.
- Não se preocupe. Já tá na hora de levantar mesmo...
- Queria te ver. Ontem nem dormi direito por causa da cena que minha ex-mulher aprontou...
- Deixa pra lá. - Vera sentou-se na beira da cama. Pousou o celular no ombro e caminhou ao banheiro. - Hoje não posso sair de casa, tenho que resolver algumas coisas...
- Posso te ajudar? - Perguntou Rodrigo, solícito.
- Por enquanto não. Mas se eu precisar, pode ter certeza que te chamo.
Houve um breve silêncio no outro lado da linha. Vera pensou que a ligação tivesse caído, mas logo em seguida ouviu a voz dele:
- Amanhã... eu vou passar o final de semana com as crianças. Podemos nos encontrar em Itaipu... Um almoço...
Vera considerou o convite com carinho.
- Boa ideia. As crianças precisam sair mesmo... você não imagina o que estão aprontando com a nova empregada... De repente, com seus filhos eles acalmem um pouco...
- Mais tarde te ligo pra combinar o lugar.
- Espero sua ligação então - disse ela, desligando o celular. Deixou o aparelho em cima da pia e se olhou no espelho. Sua cara refletida mostrava um rosto abatido.
Belinda ia vir para conversar. Não via a hora para desvendar aquele mistério do estranho álbum.
                                         ********************
Fernanda entrou na sala principal. A cadela da sua patroa ainda continuava enfurnada na suíte real. Que ela ficasse lá, de preferência para sempre! Passou os olhos pelos móveis e encontrou o que queria.
Caminhou para a poltrona do impotente de pau pequeno e pegou o livro que ele deixara na mesinha ao lado.
- Cem anos de solidão... Que título mais escroto! - ela resmungou. Abriu o livro pelo meio e pegou no bolso do avental a carta que guardara. Deu uma espiada no teor e riu. - Cem mil reais... Vamos ver se a vaca é esperta... Acho que é... - Colocou a carta dobrada com a escrita para fora e colocou no meio do livro, tomando cuidado que as palavras CEM MIL REAIS ficassem à mostra. Fechou o livro e foi à mesa que a idiota costumava trabalhar. Deixou o livro ao lado de uma pilha de pastas de processos e se afastou. Voltou para a cozinha, com um leve sorriso no canto dos lábios.
"Depois que ela ler essa cartinha indecente, com certeza vai escorraçar o babaca... e aí entro em cena... Pra que cem mil se ele pode embolsar um milhão? E eu ao lado dele, depois que ficar viúvo? "
Ela arquitetou tudo. Só que ninguém podia desconfiar... e esse ninguém significava sua tia e Jayme...
Fernanda gostava de apostar alto... E de ganhar...