- Como foi que minha mãe te contratou?
- Senhora??
Vera virou-se e disse, ríspida:
- Pelo que me lembro, mamãe sempre foi exigente com empregados. Tem uma coisa que me encasqueta... Como conseguiu aturar o gênio instável da minha mãe?
- Sua mãe tinha um gênio difícil, mas eu sempre soube lidar com isso...
- Belinda, você está mentindo...
Os olhos da negra arregalaram. Vera apontou o dedo e decretou:
- Você conheceu essa Gláucia! Não minta mais... Conte a verdade...
Fernanda
estava no quarto de Dona Vitória. Enquanto a velha senhora assistia a televisão
desligada, a empregada verificava uma identidade que encontrara ao lado da
caixa de joias, no armário. Agora analisava o RG da esclerosada.
-
Que assinatura de analfa - disse ela sorrindo. - Até uma criança retardada
assinaria igual.
O
rosto na foto era de uma Dona Vitória mais nova, e a identidade era dos anos
1970.
Fernanda
aproveitava o momento que a arrogante da sua patroa conversava com a cardíaca
idiota para adiantar algumas coisas que planejara. Primeiro, ligou do seu
celular - tomando o devido cuidado para ocultar o número do telefone - para
Aurélio, se passando por uma mulher irritada com o fracasso do plano. Queria
que ele pensasse que fosse uma parente do tal Pedro Ibañes. Do jeito que estava
desesperado pelo fracasso da sua empreitada, talvez metesse os pés pelas mãos.
Quando Vera achasse a carta no livro, aí mesmo que sua vida ia se transformar
num inferno.
"Do
jeito que ela é, vai dar um pontapé nele e botar pra fora de casa..."
Esse
era um pequeno fio de um carretel que ela arquitetou. Claro que Jayme e sua tia
nunca iam desconfiar disso. Se soubessem, o caldo podia entornar.
Mas
não vai. Se Jayme pensava que ela ia se contentar com um simples roubo de
joias, estava completamente enganado. Chegou sua hora. A oportunidade se materializou,
cristalina, clamando que ela agisse.
E
o que ela queria? Aurélio desestabilizado, Vera irritada, o caos...
E
com a assinatura da velha, lhe dando plenos poderes...
Fernanda
conhecia uma pessoa que a ajudaria nisso. Depois que falsificasse a assinatura,
arrumaria a autenticação. Assim, ia partir para outra parte do plano...
Ia
matar Vera. Com a procuração, venderia o casarão. E assim podia sumir dali
depois, não com cem mil, mas com um milhão.
Fernanda
guardou a identidade no bolso do avental e disse para Dona Vitória:
-
Sua escrota...
Dona
Vitória riu quando ouviu o som da voz de Fernanda.
****************
-
Dona Vera, não sei de onde tirou essa ideia que sei...
-
Não minta mais pra mim. Pelos velhos tempos, me diga.
Belinda
sacudiu a cabeça.
-
Juro por tudo que é mais sagrado, eu não sei.
Vera
ainda não acreditava nela, mas não tinha nenhuma alternativa. Sabia que
Belinda, mesmo se soubesse, não lhe diria nada.
Persuasiva,
disse:
-
Vamos fazer o seguinte... Se lembrar de algo, me liga.
-
Mas...
-
Chega, Belinda. Na hora que quiser falar comigo, me liga.
Belinda
deu de ombros e perguntou se podia ver Dona Vitória. Vera fez um aceno com a
cabeça e deu as costas para ela.
Quando
Belinda entrou no quarto da velha senhora, Fernanda ligava a tevê e aproveitou
para sair. Belinda sentou-se numa cadeira em frente e perguntou:
-
Como a senhora tem andado, Dona Vitória?
A
velha olhou com aqueles olhos ausentes para a negra gorda na sua frente e
pensou:
"
Agora Teodoro deu para chamar uma mãe de santo pra fazer um trabalho para
ajuda-lo nas eleições... Preciso conversar com ele bem sério..."
Belinda
olhou para a porta fechada do quarto e disse:
-
Sua filha quer saber da Gláucia...
Dona
Vitória, ausente, fixava os olhos para o nada.
-
Tenho medo da reação dela... Não sei se ia aguentar...
Belinda
chorava.
-
Prometi à senhora que nunca diria nada sobre ela... e vou cumprir minha
promessa...
Dona
Vitória fechou a cara. Detestava macumba.
********************
Depois
que Belinda foi embora, Vera ficou na sala andando de um lado ao outro,
nervosa. Caminhou até sua mesa e pegou algumas pastas. Olhou de relance para o
livro Cem Anos de Solidão e gritou pelo nome da empregada. Quando Fernanda
entrou na sala, Vera disse irritada:
-
Quantas vezes vou ter que repetir que não quero nada aqui em cima da mesa que
não seja do meu trabalho!
-
Desculpe, dona Vera, não sei como esse livro foi parar aí...
-
Na próxima vez preste atenção.
Fernanda
pegou o livro e propositalmente abriu-o pelo meio. A carta caiu em cima de uma
pasta de processos.
-
Como sou desastrada - disse Fernanda. Vera pegou a carta.
-
O que é isso?
Leu
o que estava escrito. E pela reação que surgiu no seu rosto, era o que Fernanda
imaginara.
-
Dona Vera, eu posso...
-
Fora daqui - gritou Vera, descontrolada. - Some da minha frente!!!!
Fernanda
voltou para a cozinha. Ela sorria.
"Agora
quero ver o circo pegando fogo..."
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro