-
Um desses dois ou talvez os dois juntos me roubaram vinte reais da minha
carteira. Se tem uma coisa que nunca admiti na minha vida foi ter filhos
ladrões!
-
Adroaldo, você está sendo injusto com seus filhos - Mônica sentou-se entre os
dois filhos que a abraçaram. - O que te leva a crer que Felipe ou Mateus tenha
pego dinheiro da sua carteira?
Furioso,
Adroaldo gritou:
-
Você mexeu na minha carteira, Mônica?
CAPÍTULO 4
-
Claro que não! Eu nunca mexi na sua carteira! - Mônica mentiu, e o engraçado que
não sentiu um pingo de remorso pela mentira. Encarou Adroaldo com um misto de raiva e mágoa, e notou que quando ele gritou novamente, uma viscosa baba escorria pelo seu queixo bem
escanhoado:
-
Eu sei que não foi você, Mônica! Em dez anos de casados, você nunca me tirou
um centavo.
-
Você não perdeu esse dinheiro... ou gastou em algum lugar e não está se lembrando?
O
rosto de Adroaldo ficou rubro; Mônica pensou que ele ia ter um AVC nesse
momento:
-
Perder dinheiro?? Nunca perdi um centavo na minha vida! E quando gasto, o
mínimo que seja... - meteu a mão no bolso e tirou uma página de caderno
dobrada. Abriu-a e mostrou: - Você sabe muito bem que todo dinheiro que gasto anoto num papel e depois lanço no meu caderno de notas. Cada
centavinho que gasto fica aqui anotado. Só assim, posso controlar o dinheiro que ganho. Nunca desperdicei com bobagens, e só gasto mesmo quando no necessário!
-
De repente pode ter se esquecido de anotar... com tantas coisas na sua
cabeça, as vendas fracas, a pressão de vender...
-
Mônica, minha vida sempre fui movido a pressão! Pressão de educar
nossos filhos, pressão de ganhar dinheiro, pressão dos colegas invejosos...
Minha cabeça pode explodir de tanta pressão, mas esquecer se comprei uma jujuba
na cidade, isso não esqueço!
-
Pai, não fui eu e nem Mateus - disse Felipe, timidamente. - Juro por Deus que
não foi a gente!
Adroaldo
soltou uma risada e gotas de salivas espalharam-se à sua volta. Ele mirou os
dois novamente e devagar tirou o cinto da sua calça comprida:
-
Posso pedir uma coisa para vocês? Peço encarecidamente que não venham com mentiras para
mim! - Adroaldo respirou fundo e continuou: - Hoje de manhã, eu tinha certeza que o meu dia seria promissor. Agendei com um casal de clientes que estavam interessados naquele
apartamento em Icaraí. Minhas chances de vender o apartamento eram de 99,99%. Saí daqui confiante, fui para a imobiliária para pegar as chaves do apartamento - Ao mesmo
tempo que contava como tinha sido seu dia, ele dobrava e desdobrava o cinto de
couro que segurava. Mônica viu a veia do pescoço de Adroaldo inchada. Ela
abraçou seus filhos e esperou que o marido fizesse seu desabafo para ficar mais calmo; - Me encontrei com o jovem casal na portaria do
prédio. Mostrei todo apartamento, a vista para a praia, e eles ficaram
encantados. Ouviram? Eles se encantaram pelo apartamento. Só faltava a gente voltar para a imobiliária e assinarmos os papéis de compra e venda. Nisso, enquanto esperava
o casal sair do apartamento, me apareceu no corredor um velho de uns 80 anos
que é vizinho daquele apartamento vazio. Perguntou para mim se o apartamento
tinha sido vendido e respondi que quase, quase mesmo. Eu segurava a porta
enquanto o jovem casal passeavam e admiravam a sala. Foi nesse instante que o
velho passou por mim, se aproximou do casal e disse: "Já contaram para
vocês que o crime foi aqui onde vocês estão , no meio da sala?"
Quando ouvi isso gelei por dentro. O cliente me olhou e disse: "Crime? Não
nos falaram nada disso!" Tentei argumentar que ninguém na imobiliária
sabia disso, mas o desgraçado do velho sacudiu a cabeça e deu sua estocada
certeira: "Claro que sabem. O senhor pode não saber do assassinato que
aconteceu aqui, mas já veio outros corretores com clientes e todo
mundo sabe da história de Ernesto Braga, que matou Marta Braga por
ciúmes, cortou-a em pedacinhos e botou os pedaços dela em duas malas de viagem.
Na época saiu em todos jornais. Mas se o senhor não é daqui do Estado do Rio,
pode ser que não saiba mesmo." A esposa do meu cliente teve uma crise de
choro e chilique ao mesmo tempo. Repetiu para o marido: Eu que não vou
morar num lugar que uma esposa foi esquartejada! Nunca! Nunca! O cliente pegou
sua mulher pelo braço e os dois saíram furiosos do apartamento. Quando ele
abriu a porta do elevador me olhou com raiva e disse: Por isso que o preço do
apartamento tá bem abaixo do mercado! E depois dessa, vi minha venda certa
escorrendo pelo ralo. Pensei em dar uma porrada no velho, mas depois vi que podia
me ferrar de vez. O velho, antes de entrar no seu apartamento que era no lado, disse: Diga sempre a verdade para seus clientes. Melhor dizer logo do que perder um dia de trabalho.
Adroaldo
bateu o cinto dobrado na palma de sua mão e perguntou, um pouco mais calmo
depois do desabafo:
-
Estou com fome, não comi nada pra não gastar, e quero tomar um banho bem frio pra esfriar a cabeça. E qual foi minha surpresa quando vi que faltavam vinte reais na minha carteira... Meu dia de inferno ficou completo! Agora me digam, quem pegou o dinheiro?
Novamente
os dois negaram. Adroaldo chamou os dois para irem até ele. Felipe e Mateus
olharam sua mãe, o terror estampado nos olhos. Mônica disse:
- Para com essa tortura, Adroaldo. Deixe os meninos em paz.
-
Sabe o que é isso, Mônica? - A palma da mão dele estava vermelha com as
pancadas do cinto em cima: - É a internet. São os joguinhos violentos. São as
porcarias dos programas na tevê que não ensinam nada de bom para as crianças. É
uma geração que não distingue o certo e o errado. Acham que surrupiar o pai que
se mata de trabalhar pra sustentar eles mesmos, é a coisa mais normal do
mundo... Uma geração de delinquentes irresponsáveis!
Adroaldo
bateu com seu cinto na sua perna e gritou:
-
Ou vocês vem aqui ou vou até vocês!!!
Mônica
entrou em um dilema. Suspirou e disse:
-
Adroaldo, vê lá o que vai fazer com os meninos...
-
Felipe e Mateus, venham aqui, agora!!!!
Vagarosamente os meninos se aproximaram do pai. Adroaldo desceu o cinto nos dois. Felipe e
Mateus correram pela sala com Adroaldo atrás, dando cintadas neles enquanto o
pequeno Daniel em seu chiqueirinho berrava e chorava junto.
E
Mônica continuou no mesmo lugar, sentada, assistindo a tudo passivamente. Na verdade, ela nem estava prestando atenção no marido e nos meninos. Sua cabeça agora viajava em um armarinho da
área, onde havia uma sacola de plástico escondida, que representava seu futuro, sua felicidade, seu
grande prêmio.
Continua...
No próximo capítulo: O prazer de colar figurinhas pode se tornar um vício.
Rogerio de C. Ribeiro
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