EU SEI QUEM VOCÊ É, MAS VOCÊ NÃO SABE QUEM EU SOU
Tudo começou no dia que o telefone fixo tocou e
Liliane Hurtz veio correndo apressada da cozinha para atender. Era um daqueles
antigos aparelhos de telefones da cor preta, com um disco redondo e sem
identificação de chamada. Coisas do seu pai, pensou Liliane, com sua mania
irritante de ficar colecionando objetos antigos dentro de casa.
O som do toque antigo, TRIMMM TRIMMM TRIMMMM,
irritou os nervos da moça. Pegou o pesado fone e disse:
- Alô!
No outro lado da linha só havia o silêncio, marcado
pelos ruídos do aparelho.
Liliane era uma moça de 23 anos, e com essa idade
as moças ainda não tem a mesma paciência de uma pessoa de meia-idade. Ela
repetiu:
- Alôo...
Ouviu um clique. Ela olhou para o fone como se ele
pudesse dizer qualquer coisa e o pôs no gancho. Podia ter sido um engano. Bem,
seja lá o que tenha sido, ela resolveu voltar para a cozinha onde seu lanche da
tarde estava te esperando, e esqueceu da ligação.
Mal ela terminou de comer seu sanduiche e esvaziado
o copo de vitamina que sua mãe havia deixado na geladeira, ouviu o trimmm do
telefone de novo.
Voltou para a sala, agora sem muita pressa, e foi
até a mesinha do corredor que ligava a sala para os quartos, onde estava o
telefone preto tocando sua irritante campainha.
- Já até imagino quem seja - pensou Liliane ao lado
do aparelho, que insistia no antigo toque. - Aposto que deve ser o Eduardo...
Eduardo era seu colega na faculdade que estudavam,
no curso de filosofia. Liliane desconfiava que ele estivesse interessado nela,
mas nas poucas vezes que conversaram, ele sempre se mostrou tímido.
Liliane pegou o fone pesado e em tom suave, disse:
- Alô...
Silêncio.
Será que esse telefone está com defeito? Não me
surpreenderia muito, por mim estaria num asilo de telefones caducos...
Tentou mais uma vez e disse, agora não tão suave
assim:
- Oi, olá, alô, tá me escutando?
Ouviu um som de respiração funda como se estivesse
puxando todo ar para os pulmões. E uma voz masculina disse:
- Liliane?
- Sim.
Silêncio de novo.
Liliane se viu no reflexo do espelho que tinha em
cima da mesinha do telefone. Parecia ridícula segurando aquele fone
pré-histórico na orelha.
- Alô...
- Oi, Liliane.
- Eduardo? - Arriscou ela.
- Quem?
- É Eduardo que tá falando?
- Não - disse a voz masculina.
- Quem é?
- Não se lembra de mim?
- Sei lá quem tá falando, não tenho a menor
ideia...
Veio uma lembrança na sua cabeça. Liliane riu e
disse:
- Já sei quem é!
- Sabe mesmo?
- Tio Denílson! - O tio Denílson era irmão da sua
mãe, gostava de pregar peças, de dar sustos, de mentiras...
Mais uma vez o silêncio no outro lado da linha.
- Viu só, adivinhei! Tio, estou terminando de me
arrumar pra faculdade e to meio atrasada para...
- Fiquei triste - disse a voz masculina. - Muito
chateado.
- Tio...
- ASSIM VOCÊ ME MAGOA, LILIANE!!!
Liliane soltou o fone, que caiu pesado no chão.
Levou um susto com o grito no seu ouvido. Mesmo com o fone caído, ela ainda
podia ouvir sons vindo dele em palavras entrecortadas:
- Sei que nunca mais... era interessante...contou
que...liane...liane...
Cautelosa, pegou o fone pelo fio em espiral e
colocou-o no gancho. Com certeza não era seu tio. E nem Eduardo...
Quando voltou da faculdade, seus pais ainda estavam
acordados e assistiam um filme na televisão. Liliane largou sua bolsa em cima
da mesa da sala e comentou:
- Pai, o senhor tem que comprar um aparelho de bina
para nosso telefone .
Cirilo, o pai, disse:
- Boa noite, Liliane.
Zoraide, a mãe, também disse:
- Boa noite, meu amor.
Liliane sentou no sofá entre os pais e disse:
- Hoje de tarde recebi uma ligação estranha.
Cirilo:
- Um trote?
- No início achei, mas depois uma voz de homem
disse meu nome e aí pensei que era mais uma brincadeira do tio Denílson.
Zoraide:
- Seu tio? Ele viajou de férias na semana passada
com sua tia Belinha e as crianças para o Nordeste.
Liliane, preocupada:
- Não sabia...
- E quem era o cara na linha - perguntou Cirilo.
- Não sei, pai. Também pensei que pudesse ser o
Eduardo...
- Eduardo? - Cirilo fingiu que estava zangado.
- Pai, Eduardo é meu colega no curso de Filosofia.
Só isso.
- Tá bom, se não foi Denílson e nem esse tal de
Eduardo...
Liliane deu de ombros.
- Não tenho a mínima ideia. O senhor podia era
trocar esse aparelho pré-histórico por um que tenha identificador de chamadas.
- Esse aparelho é uma relíquia - protestou Cirilo.
- E além do mais, hoje em dia quase ninguém liga para telefone fixo. É só
celular.
- Mas ligaram.
- Quem tem o número do telefone fixo? Tirando nossa
família, ninguém mais tem.
- E esse que me ligou hoje?
Cirilo voltou sua atenção para sua tevê e no filme
que passava e decretou:
- Com certeza deve ser alguém da família. Quem sabe
o Denílson que ligou da Bahia pra passar um trote...
Liliane não acreditou muito nessa possibilidade. O
grito que ouviu... Não parecia ser do seu tio. Por mais brincalhão que fosse,
ele não ia imitar uma voz insana. Não...
Dois dias depois se passaram após aquela estranha
ligação, e Liliane Hurtz decidiu que seu pai tinha razão. Quando seu tio
voltasse das suas férias ela ia dar o troco nele. Aquilo a assustou bastante.
Deitada na sua cama com um livro nas mãos, Liliane
sentiu as suas pálpebras caírem de sono. Repousou o livro de filosofia aberto
sobre seu peito e sabia que adormeceria logo.
Dormiria sim, se não fosse o irritante som do
telefone: Trimmmm Trimmmmm...
Arregalou os olhos. Aquele insistente som arrepiou
os pelos dos seus braços. Sentou-se e pensou: "Não vou atender."
Mais uma vez só tinha ela na casa, e o telefone
insistia no seu toque.
Trimmm, Trimmm, Trimmm
A curiosidade falou mais alto que a sensatez.
Liliane decidiu atender e descalça, saiu do seu quarto e atravessou o corredor
até a mesinha com o telefone preto.
Levantou o gancho e disse:
- Tio Denílson, você não tem coisa melhor pra
fazer?
Do outro lado do fio, aquela voz masculina:
- Liliane... Não se lembra mesmo quem tá falando...
Liliane perdeu a paciência. Apertou tanto o fone
que segurava que as pontas dos seus dedos ficaram brancos:
- Olha aqui, não tenho tempo pra ficar brincando no
telefone. Fala logo quem é pra acabar com essa palhaçada...
Mais uma vez o silêncio. Liliane pensou que
tivessem desligado e ia pousar o fone no gancho quando ouviu:
- Você pode não saber quem eu sou, mas sei muito
bem quem é você, Liliane. Há onze anos que sei quem é você!
Onze anos? Há oito anos ela tinha doze anos!
- Vem cá - disse ela, nervosa: - Não tá me
confundindo com outra Liliane?
- Claro que não, Liliane... Hurtz.
Ela gelou. Seu coração disparou e sentiu que suas
pernas fraquejavam. Precisou sentar-se na cadeira com forro de palha, outra
antiguidade que seu pai adquirira, para tentar se acalmar. Respirou fundo,
encostou o fone no ouvido e falou de modo cauteloso:
- Tá bom, você ganhou. Não sei quem tá falando. Mas
vamos acabar com essa brincadeira... já chegou no seu limite...
- Meu Deus - o tom da voz agora era de tristeza.
Uma voz magoada. - Ainda tá achando que sou o idiota do seu tio? Não, Liliane,
não sou ele e nem um amigo seu da faculdade de filosofia...
Liliane sentiu uma pontinha de esperança
aparecendo. Ele disse faculdade de filosofia... Veio à sua cabeça o nome de
Eduardo. Tão tímido, que não gostava de olhar nos olhos dos outros, que a
espiava furtivamente durante as aulas... era ele, com toda certeza. Liliane
decidiu entrar naquele joguinho. Precisava desmascara-lo, e quando o visse na
faculdade, ainda ia ouvir muito dela...
- É mesmo. Meu tio nunca ia conseguir imitar essa
voz máscula e ao mesmo sensual, a voz dele é igual a de uma taquara rachada...
- Então se convenceu que não sou o idiota do seu
tio.
- Sim, estou convencida, só que não precisa repetir
que ele é idiota.
- Você não sabe como fico aliviado. Sabe, houve um
tempo que fiquei impossibilitado de te ligar. Não me deixavam falar.
- É mesmo? - Liliane mostrou-se preocupada, mas o
que queria mesmo era que Eduardo revelasse seu nome.
- Mesmo. Mas te juro, Liliane, nunca me esqueci de
você. Pensava nas vezes que ficávamos horas conversando...
- A gente ficava horas?
- Não deve se lembrar, isso foi quando? Você tinha
treze anos...
- Me lembre então - O Eduardo é mais louco que
imaginei, pensou ela.
- Vai se lembrar - a voz era carinhosa, terna. -
Uma vez você me disse que estava de castigo por causa de uma nota baixa que
teve na prova de... física? Física... não, em química. Seu pai te proibiu de ir
na festa da sua melhor amiga, a Simone se não me engano. Eu te falei que os
pais são todos iguais, só querem o bem dos seus filhos.
Que conversa foi essa? Liliane tinha uma vaga
lembrança...
- Depois dessa conversa, você prometeu que ia
estudar mais e nunca mais seu pai ia te punir por causa das notas do colégio.
Lembra o que eu falei?
- Não - disse Liliane, o medo voltando.
- Falei pra você: Não fique mais chateada com seu
pai, ele só quer seu bem. E se ele te botar de castigo de novo, eu daria um
jeito nele.
Liliane sentiu que tremia de novo. Mal conseguia segurar o fone
direito; sua mão dançava ao lado do ouvido.
Uma leve recordação apossou-se dela. Era um fato que aconteceu
quando ela era criança, e que com o tempo apagou-se das suas memórias.
Mas quando ouviu aquela voz falando sobre esse caso, um fato
isolado estourou feito pipoca, e ela lembrou-se:
" Estou
sentada no sofá assistindo o programa da Xuxa, como sempre faço quando acordo.
Minha mãe deve estar na cozinha preparando o almoço ou arrumando os quartos,
não sei bem o que ela faz. Sei que eram oito e meia da manhã, e eu ainda vestia
minha camisola. Estou bebendo meu Nescau na caneca que minha avó me dera no
Natal passado e comendo um pedaço de bolo de milho que papai sempre comprava em
uma padaria que tinha na esquina da nossa casa. Lembro vagamente que ia ligar
para Marcinha e pra Simone pra combinarmos de ir para a escola juntas. Nesse
tempo estudávamos no Colégio Assunção, que fica no nosso bairro em São
Francisco. Isso mesmo, enquanto assistia a Xuxa, devorava uma fatia de bolo, e
na pressa nem mastigava direito. Uma hora me engasguei e tossi muito, e minha
mãe falou de onde estava: Come direito, garota! O mundo não vai acabar agora!
' É mesmo, o mundo não acabou naquele instante. E nesse tempo eu
era uma menina apressada. Meu aniversário de 13 anos seria em duas semanas a
contar desse dia, e eu acreditava que todas meninas com treze anos largava a
infância de lado e se transformavam em adultas.
'Ouvi o telefone tocando. Naquele tempo era um aparelho branco sem
fio, que também ficava em cima da mesinha no corredor. Depois do terceiro
toque, minha mãe gritou dizendo que estava ocupada, que era para eu atender
logo o telefone.
'Chateada larguei o pedaço que restava do meu bolo e fui. Quando
atendi, ouvi uma voz estranha que perguntou:
- Queria falar com Reinaldo.
- Aqui não tem nenhum Reinaldo - respondi.
- Não tem? - O tom da voz era de dúvida.
- Claro que não. Você ligou para o telefone errado.
- Acho que não... aí não é 777-1117?
- Não - eu disse, pronta para desligar o aparelho.
- Puxa... pensei que fosse a irmã do Reinaldo. Sua voz é
igualzinha a dela.
- Mesmo?
- Sim...
O restante não me lembro bem, mas ficamos falando sobre várias
coisas. Acho que ele disse seu nome, mas agora não me lembro.
Depois dessa ligação, esqueci do garoto, mas dias depois que fiz
treze anos, houve outras ligações, na maioria das vezes quando estava sozinha
em casa. Gostava de conversar com aquele estranho de voz grossa, mas o
engraçado é que nunca senti vontade de conhecê-lo.
Até no dia que ele me ligou e disse aquilo do meu pai. Eu não
gostei e disse:
- Tá maluco? Não vai fazer nada com meu pai!
- Pra te proteger faço qualquer coisa.
- Olha aqui, eu vou te pedir pra não me ligar mais...
- Impossível! Mesmo que não queira, vou te ligar, e você sempre
vai me atender.
- Veremos - ameacei, mas sem convicção.
- E sua ideia de fugir de casa? Continua?
- Fugir?Como sabe...
- Não é o que sempre quis, Liliane? Fugir dos seus pais, dos seus
parentes, ser livre...
- Nunca disse isso!
- Falou sim, só não se lembra.
- Olha, me faça um favor... não me ligue mais!
- Impossível, Liliane.
Desliguei. E decidi tirar aquilo da minha cabeça... até agora."
Liliane ainda apertava o fone pesado junto à orelha. Ela disse:
- Estou me lembrando de você.
- Sabia que ia se lembrar.
- Mas pensei que tivesse se esquecido de mim...
- Nunca me esqueci. Só que não pude ligar antes...
- E o que quer comigo agora, depois de todos esses anos?
- Terminar o que combinamos antes.
-
Terminar?
Um breve silêncio se fez, e logo a voz voltou:
- Você sempre reclamou dos seus pais comigo. Eles melhoraram?
Liliane, com lágrimas nos olhos.
- Não...
- O seu pai não te incomodou mais?
- Meu pai nunca me incomodou! - disse Liliane, sem muita convicção.
- Não minta pra você mesma.
- Por quê não me ligou antes?
- Já te disse antes. Não me deixavam.
- Quem não deixava?
- Não sabe, Liliane?
A cabeça dela girava.
- Não... não sei!
- E não sabe quem tá falando com você também?
- Não... acho que não sei - Nervosa, Liliane repetia as palavras.
- Lembra a primeira vez que te liguei? - A voz masculina era
insinuante.
- S-Sim...
- E há quantos anos que ele não te incomodava mais?
- Olha só, você está me confundindo...
Fez-se um breve silêncio no outro lado da linha, e de repente ela
ouviu:
- ASSIM VOCÊ ME MAGOA, LILIANE!
"Não faça assim comigo..."
- SEMPRE TE DEI TUDO QUE QUERIA, MAS NADA TE AGRADA...
Liliane não pode mais se controlar, as lágrimas desciam pelo seu
rosto em borbotões.
"Não é verdade, nunca reclamei..."
A voz masculina amenizou a voz. Agora era carinhosa:
- Se ficar boazinha, juro que não te machuco mais...
- Mas dói... dói muito...
E de repente, ela reconheceu a voz. Não queria acreditar, mas era
do...
- Quietinha, não diga mais nenhuma palavra... - a voz masculina
era persuasiva, insistente: - Vem, deita aqui no ladinho, isso, vira um
pouquinho pra mim... vem, mexe aqui, vê como tá duro... Isso! Papai gosta muito
quando você faz assim...
A voz masculina era do seu pai.
"Estou no meu quarto deitada na minha cama. Não consigo
dormir. Abraço meu ursinho. Tenho medo do escuro. Tenho três anos de idade. E
papai vem me ver. Ele abre a porta e depois vem andando até minha cama. Ele
passa suas mãos pelos meus cabelos e vai descendo pela minha barriga e para a
mão ali... eu choro. Papai sempre faz isso comigo. Olho apavorada para a porta
e vejo parada no corredor iluminado minha mãe. Chamo minha mãe e ela sai
andando. Meu pai também olha para trás e disse:
- Sempre te dei tudo que queria, mas nada te agrada...
- Não é verdade! Nunca reclamei...
- Assim você me magoa, Liliane. Seja boazinha com seu pai.
- Vem cá, põe sua mãozinha aqui... isso... papai te ama
muito...prometo pra você que não vai doer nada...nadinha...
E o corpo do meu pai ficou em cima do meu, e a escuridão foi
total...
Liliane não queria acreditar naquilo que estava pensando. Era
muito cruel... Mas e a voz do outro lado da linha?
- Agora você se lembrou... - disse a voz que era do seu pai. - Há
muito tempo quis se lembrar disso mas não conseguia. Quase conseguiu quando
tinha doze anos. Por isso me chamou. Por isso fui seu único amigo, que escutei
suas tristezas. Agora sabe porque sempre foi fechada com os homens. Tinha medo
deles por causa dele. Ele que destruiu suas lembranças mais ternas. Quando você
tinha treze anos quase se lembrou, mas decidiu me bloquear na sua vida. Mas na
semana passada você viu de novo... e quis se lembrar...
Vi meu pai com minha prima Belinha, de cinco anos... filha do tio
Denílson, que veio nos visitar... Papai botou Belinha no colo e começou a mexer
nos cabelos dela, como fazia comigo quando tinha três anos...
Liliane sentia o seu corpo tremendo, e largou o fone que caiu no
chão. Abaixou-se para pegar e viu outra coisa que a assustou: O fio do telefone
estava caído ao lado da tomada, desligado.
E ela entendeu... E começou um choro convulsivo.
Quando seus pais chegaram em casa estranharam quando viram Liliane
sentada no sofá, de pernas cruzadas, chupando o dedo polegar enquanto assistia
televisão.
E ao seu lado, caído no chão, o aparelho do telefone preto estava
destroçado, os pedaços espalhados ao redor.
FIM
Rogerio de C. Ribeiro
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