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terça-feira, 27 de maio de 2014

ANGELICAL E PURA

Confesso que antes de Angélica, ainda não tinha conhecido nenhuma mulher que combinasse tão bem seu nome com sua pessoa. E antes de conhecê-la, nunca me imaginei fiel a uma mulher só.
Foi na festa do Gomes que a conheci. Logo que pus os olhos em cima daquela menina loura, de olhos azuis e quieta, sentada com sua tia em uma mesa no canto do salão, por um momento voltei a minha adolescência. Só que dessa vez não foi uma paixonite que durava uma semana, não. Foi amor à primeira vista.
Fiz de tudo para ser apresentado, mas Gomes me orientou que ela não era do tipo de mulher que eu estava acostumado em sair. Usou uma palavra fora de moda quando a descreveu: "Ela é das antigas, para casar."
No início não levei fé, argumentei que era coisa do século passado, e Gomes me desafiou: "Então vai lá e quebra sua cara, dom juan de nicti city."
E fui mesmo. Só não esperei que a tia dela servisse de escudo, e impedisse que eu sentasse junto delas. Pelo olhar gelado que a velha me lançou, nem precisou falar que eu era persona non grata. Mal pude dizer meu nome, e o máximo que consegui foi ouvir da velha: "Meu nome é Dália, e Angélica, minha sobrinha." Seca. Sem convite para sentar. Imune ao meu charme.
Mas consegui arrancar um sorriso daquela linda moça. Foi um sorriso cândido. Nunca antes na minha vida conheci uma mulher com tanta candura, tanta pureza na alma. Parecia uma santa. Os olhos dela... Olhos grandes, de um azul vivo...
Uma semana depois telefonei para o Gomes e exigi, pelos velhos tempos, o endereço dela. Gomes disse:
- Já te falei, com ela você só vai perder seu tempo.
- Que eu perca todo tempo do mundo, só me passa o endereço!
Gomes relutou:
- Você não sabe a missa metade da vida dela, meu chapa. A vida para ela não tem sido muito generosa.
E ele me contou. Angélica perdeu seus pais cedo, ficou órfã com 8 anos depois que os pais morreram em um acidente de carro, e desde então foi criada pela tia Dália. Quando a conheci tinha 19 anos, mas era tratada como se ainda fosse criança.
- Mesmo que ela queira alguma coisa contigo, tem a velha como seu obstáculo.
Peguei o endereço e fui. Ela morava numa pequena casa em Mutuá, em São Gonçalo. Como Gomes disse, tive que transportar um paredão. Pela vontade da tia Dália, eu nem passava do muro. Mesmo com a caixa de bombons que levei de presente para ela, Dália não deu o braço a torcer, e acredito, se pudesse jogava o embrulho para presente na minha cara. Enquanto eu tentava dizer porque eu tinha ido visita-las, ouvi uma doce voz atrás da velha:
- Deixa ele entrar, tia.
Com certa relutância e com uma expressão no rosto que dizia claramente: "estou de olho em você!", Angélica me convidou para entrar.
E foi o início de um namoro patrulhado pela tia e às vezes por outros parentes de Angélica. Foi namoro na sala, vendo filmes na televisão, comendo pizza e no máximo um beijinho no portão quando eu ia embora. Namoro do século retrasado, mas que funcionou. Eu percebi que não podia mais viver sem Angélica, queria me casar com ela.
Vou pular o noivado para não alongar muito. O casamento foi na Igreja Matriz, e nossa lua de mel passamos em Cabo Frio.
Nunca experimentei tanta felicidade como nos primeiros anos de casamento. Os elogios que fiz no início se consolidaram nos dois primeiros anos. Como era maravilhoso quando eu acordava e a via ainda dormindo, seus cabelos esparramados no travesseiro, sua respiração silenciosa, sua pele tão branca... Eu me portava como um garoto de quinze anos, extremamente apaixonado. Angélica não tinha defeitos, não falava alto, era discreta, companheira, cúmplice. Posso até estar exagerando, mas pra mim ela era uma santa.
Quando ela me deu a notícia da gravidez, me senti o homem mais sortudo do planeta. Nesse tempo já havia me afastado dos meus antigos colegas de copo, de farra. No trabalho, melhorei meu desempenho no escritório. Recebi elogios do meu chefe, que uma época atrás pensou em me demitir. Mudei da água para o vinho.
Com o nascimento de Isabella, vi outro anjo dentro de casa. Angélica, como mãe, era dedicada, amorosa, zelosa com nossa filha. Se vocês perceberem, vão ver o retrato em cima escrivaninha da sala, onde registrei o momento de Angélica e Isabella, com dois anos, sentadas em um banco no Campo de São Bento, enquanto jogavam miolo de pão para os patos na lagoa. Se prestarem atenção, vão notar a aura em cima delas. Não digam que sou exagerado, eram duas santas.
Como na vida existe seus prós e contras, houve a tragédia. Todo dia de manhã agradecia a Deus pela minha plena felicidade. Era tanta felicidade dentro da nossa casa que às vezes achava que estávamos roubando um pouquinho de cada pessoa. Porque nossa casa sempre era sol, nunca houve tempestades.
Mas parece que Deus viu que não era justo só uma família ser feliz. Ele deve ter visto nossa harmonia, apontou seu dedo e deve ter pensado: "Vou fazer que eles conheçam o sofrimento. Vamos ver se mantém a união depois disso!"
Só pode ser isso. Isabella tinha três anos e fazia natação no clube, e Angélica sempre a acompanhava. Uma vez também fui, tinha sido feriado pros funcionários públicos, e aproveitei e fiquei assistindo minha Bela e suas amigas na aula de natação. Comentei pra Angélica que nossa filha parecia uma sereia. Admirei minha menina lourinha nadando de um lado ao outro, na maior desenvoltura. E ainda pensei: Essa vai ser campeã olímpica!
Ninguém soube me explicar direito o que realmente aconteceu. Só sei que estava no trabalho e recebi uma ligação de um homem que não conhecia. Ele se identificou como um funcionário do clube, e me avisou que Angélica estava no hospital com minha filha.
Quando cheguei na clínica, Angélica estava sendo amparada por sua tia Dália. Até seu choro era silencioso. As lágrimas corriam pelo seu rosto oval, os olhos ficavam vermelhos, mas ela não gritou, esperneou, nem fez escândalo.
Soube que elas estavam no clube, e que Bela disse para a mãe que queria mostrar seu novo mergulho na piscina. Angélica bebia um refrigerante e disse: Quero ver.
Só não sabia que o ralo estava sem tampa. E não havia nenhum funcionário perto para dizer que estavam trocando a água. Bela mergulhou e seus cabelos foram sugados para o ralo. Angélica pulou na piscina, mas como não sabe nadar, quase se afogou também. E só aí que apareceram dois funcionários. E só aí que eles primeiro tiraram Angélica da piscina, e tiveram que desligar os equipamentos para tirar Bela do fundo.
No momento que a vi dentro do caixão branco, me descontrolei, queria quebrar tudo que via na minha frente. Tiveram que me sedar para continuar no velório. Nessa hora vi Angélica serena, sentada na sua cadeira olhando para nossa filha sem dizer um ai. Ela que me deu força, segurou minha mão e seu silêncio me acalmou.
Os primeiros meses foram terríveis para mim. Não conseguia entrar no quarto dela, olhar sua cama e suas bonecas me angustiavam. Comecei a beber com esperança de apagar na minha memória a tragédia. Angélica continuou com sua vida, serena, me apoiando, mesmo quando eu era ríspido e chegava bêbado em casa.
Angélica nunca disse nada. Com paciência esteve no meu lado, e com serenidade, me compreendia.
Foi difícil, mas superei a dor da perda. Claro que a dor nunca foi embora por completo, mas pude aguentar sem precisar mais beber.
E durante meu período de sofrimento, percebi que não prestava mais atenção em Angélica. Decidi que íamos voltar a ser como antes, e quem sabe teríamos outro filho para alegrar nossa casa.
A harmonia e a plenitude da nossa felicidade nunca mais voltou o que foi antes, mas seguíamos com nossa vida, mesmo com a profunda cicatriz que ficou em nós.
Eu sei que mudei, mas via Angélica agindo como sempre agiu em casa. Ela não baixou a cabeça, não mostrou sofrimento, e falava comigo como antes. Me surpreendi com sua força interior, e meu amor por ela reacendeu. Eu era a parte fraca na casa, e me sustentei com sua força para me erguer novamente.
E novamente quando pensei que nossa vida entraria nos eixos, veio aquilo.
Como escrevi acima, depois da morte de Isabella entrei em tamanha depressão que não enxerguei o que acontecia à minha volta.
Foi no jantar que a verdade berrou diante dos meus olhos. Eu e Angélica costumávamos comer na mesa da cozinha, e quando eu preparei meu prato, ouvi:
- Você tem que comer tudo - Angélica disse, às minhas costas.
- Eu vou comer - eu disse, e quando me virei para sentar, vi que ela olhava para o seu lado.
Ela olhava para a cadeira que Isabella sentava nas refeições.
Nem mexi na comida. Fiquei prestando atenção nos movimentos de Angélica. Enquanto ela ia comendo, dizia para a cadeira vazia:
- Não pode deixar nada no prato, hein. Assim não vai ficar bonita.
Seus olhos azuis, placidamente fitavam a cadeira vazia. E ela sorria.
- Com quem está falando? - Perguntei.
Angélica virou seu rosto na minha direção, e era um rosto sereno, os olhos brilhavam.
- Ora essa... com nossa filha, claro!
E entendi. Durante meu processo de luto, Angélica seguiu normalmente com sua vida. Para ela, nossa filha estava viva. Por isso arrumava o quarto de Bela diariamente, lavava suas roupinhas e as passava. Por isso que a via rindo, como estivesse conversando com alguém.
Não sei explicar se Angélica enlouqueceu depois da morte de Bela ou se ela sempre foi louca e nunca percebi. Talvez toda santidade dela fosse... nem sei dizer direito.
E nem sei se vão acreditar nisso. Talvez digam que o louco fui eu. Mas precisei fazer isso. Não ia suportar viver vendo a mulher, que idolatrei, santifiquei, piorar a cada dia que passava.
Ontem de noite acordei e não a vi deitada ao meu lado. Fui procura-la e a achei na cozinha. Angélica segurava uma faca.
Eu disse para ela largar a faca, mas ela disse:
- Tenho que preparar o almoço de Bela...
Eu cheguei perto dela, e Angélica foi para a pia. Vão achar que a empurrei, só segurei sua mão, ia tentar tirar a faca, mas ela tropeçou do nada e caiu. E caiu em cima da faca que empunhava.
Fiquei estático, olhando minha mulher morta. Não sei se ela fez de propósito, ou se o tombo foi casual.
Pode ser que em um momento de lucidez, ela tenha visto que era uma saída digna para o inferno que se transformou nossa vida.
Eu ainda a amo, mesmo com tudo isso.
E não ia aguentar outro luto.
Por isso, quando entrarem aqui em casa, vão nos encontrar, Angélica na cozinha e eu na cama.
Estou pronto para engolir todos comprimidos que comprei na época da minha depressão. São mais de quarenta, e quando derem por nossa falta, já terei morrido.
Meu gesto é covarde, mas não ia suportar viver sem Angélica ao meu lado.
Espero que entendam isso.
Não sei se existe vida depois da morte, mas se houver, espero reencontra-las.
Assinado: .....................

Rogerio de C. Ribeiro


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