ANGELICAL E
PURA
Confesso que antes de Angélica, ainda não tinha conhecido nenhuma mulher que combinasse
tão bem seu nome com sua pessoa. E antes de conhecê-la, nunca me imaginei fiel a uma mulher só.
Foi
na festa do Gomes que a conheci. Logo que pus os olhos em cima daquela menina
loura, de olhos azuis e quieta, sentada com sua tia em uma mesa no canto do
salão, por um momento voltei a minha adolescência. Só que dessa vez não foi uma
paixonite que durava uma semana, não. Foi amor à primeira vista.
Fiz
de tudo para ser apresentado, mas Gomes me orientou que ela não era do tipo de
mulher que eu estava acostumado em sair. Usou uma palavra fora de moda quando a descreveu:
"Ela é das antigas, para casar."
No
início não levei fé, argumentei que era coisa do século passado, e Gomes me
desafiou: "Então vai lá e quebra sua cara, dom juan de nicti city."
E
fui mesmo. Só não esperei que a tia dela servisse de escudo, e impedisse que eu
sentasse junto delas. Pelo olhar gelado que a velha me lançou, nem precisou
falar que eu era persona non grata. Mal pude dizer meu nome, e o máximo que
consegui foi ouvir da velha: "Meu nome é Dália, e Angélica, minha
sobrinha." Seca. Sem convite para sentar. Imune ao meu charme.
Mas
consegui arrancar um sorriso daquela linda moça. Foi um sorriso cândido. Nunca
antes na minha vida conheci uma mulher com tanta candura, tanta pureza na alma.
Parecia uma santa. Os olhos dela... Olhos grandes, de um azul vivo...
Uma
semana depois telefonei para o Gomes e exigi, pelos velhos tempos, o endereço
dela. Gomes disse:
-
Já te falei, com ela você só vai perder seu tempo.
-
Que eu perca todo tempo do mundo, só me passa o endereço!
Gomes
relutou:
-
Você não sabe a missa metade da vida dela, meu chapa. A vida para ela não tem
sido muito generosa.
E
ele me contou. Angélica perdeu seus pais cedo, ficou órfã com 8 anos depois que
os pais morreram em um acidente de carro, e desde então foi criada pela tia
Dália. Quando a conheci tinha 19 anos, mas era tratada como se ainda fosse
criança.
-
Mesmo que ela queira alguma coisa contigo, tem a velha como seu obstáculo.
Peguei
o endereço e fui. Ela morava numa pequena casa em Mutuá, em São Gonçalo. Como
Gomes disse, tive que transportar um paredão. Pela vontade da tia Dália, eu nem
passava do muro. Mesmo com a caixa de bombons que levei de presente para ela,
Dália não deu o braço a torcer, e acredito, se pudesse jogava o embrulho para
presente na minha cara. Enquanto eu tentava dizer porque eu tinha ido
visita-las, ouvi uma doce voz atrás da velha:
-
Deixa ele entrar, tia.
Com
certa relutância e com uma expressão no rosto que dizia claramente: "estou
de olho em você!", Angélica me convidou para entrar.
E
foi o início de um namoro patrulhado pela tia e às vezes por outros parentes de
Angélica. Foi namoro na sala, vendo filmes na televisão, comendo pizza e no
máximo um beijinho no portão quando eu ia embora. Namoro do século retrasado,
mas que funcionou. Eu percebi que não podia mais viver sem Angélica, queria me
casar com ela.
Vou
pular o noivado para não alongar muito. O casamento foi na Igreja Matriz, e
nossa lua de mel passamos em Cabo Frio.
Nunca
experimentei tanta felicidade como nos primeiros anos de casamento. Os elogios
que fiz no início se consolidaram nos dois primeiros anos. Como era maravilhoso
quando eu acordava e a via ainda dormindo, seus cabelos esparramados no
travesseiro, sua respiração silenciosa, sua pele tão branca... Eu me portava
como um garoto de quinze anos, extremamente apaixonado. Angélica não tinha
defeitos, não falava alto, era discreta, companheira, cúmplice. Posso até estar
exagerando, mas pra mim ela era uma santa.
Quando
ela me deu a notícia da gravidez, me senti o homem mais sortudo do planeta.
Nesse tempo já havia me afastado dos meus antigos colegas de copo, de farra. No
trabalho, melhorei meu desempenho no escritório. Recebi elogios do meu chefe,
que uma época atrás pensou em me demitir. Mudei da água para o vinho.
Com
o nascimento de Isabella, vi outro anjo dentro de casa. Angélica, como mãe, era
dedicada, amorosa, zelosa com nossa filha. Se vocês perceberem, vão ver o
retrato em cima escrivaninha da sala, onde registrei o momento de Angélica e
Isabella, com dois anos, sentadas em um banco no Campo de São Bento, enquanto
jogavam miolo de pão para os patos na lagoa. Se prestarem atenção, vão notar a aura
em cima delas. Não digam que sou exagerado, eram duas santas.
Como
na vida existe seus prós e contras, houve a tragédia. Todo dia de manhã
agradecia a Deus pela minha plena felicidade. Era tanta felicidade dentro da
nossa casa que às vezes achava que estávamos roubando um pouquinho de cada
pessoa. Porque nossa casa sempre era sol, nunca houve tempestades.
Mas
parece que Deus viu que não era justo só uma família ser feliz. Ele deve ter
visto nossa harmonia, apontou seu dedo e deve ter pensado: "Vou fazer que
eles conheçam o sofrimento. Vamos ver se mantém a união depois disso!"
Só
pode ser isso. Isabella tinha três anos e fazia natação no clube, e Angélica
sempre a acompanhava. Uma vez também fui, tinha sido feriado pros funcionários
públicos, e aproveitei e fiquei assistindo minha Bela e suas amigas na aula de
natação. Comentei pra Angélica que nossa filha parecia uma sereia. Admirei
minha menina lourinha nadando de um lado ao outro, na maior desenvoltura. E
ainda pensei: Essa vai ser campeã olímpica!
Ninguém
soube me explicar direito o que realmente aconteceu. Só sei que estava no trabalho e
recebi uma ligação de um homem que não conhecia. Ele se identificou como um
funcionário do clube, e me avisou que Angélica estava no hospital com minha
filha.
Quando
cheguei na clínica, Angélica estava sendo amparada por sua tia Dália. Até seu
choro era silencioso. As lágrimas corriam pelo seu rosto oval, os olhos ficavam
vermelhos, mas ela não gritou, esperneou, nem fez escândalo.
Soube
que elas estavam no clube, e que Bela disse para a mãe que queria mostrar seu
novo mergulho na piscina. Angélica bebia um refrigerante e disse: Quero ver.
Só
não sabia que o ralo estava sem tampa. E não havia nenhum funcionário perto
para dizer que estavam trocando a água. Bela mergulhou e seus cabelos foram
sugados para o ralo. Angélica pulou na piscina, mas como não sabe nadar, quase
se afogou também. E só aí que apareceram dois funcionários. E só aí que eles
primeiro tiraram Angélica da piscina, e tiveram que desligar os equipamentos
para tirar Bela do fundo.
No
momento que a vi dentro do caixão branco, me descontrolei, queria quebrar tudo
que via na minha frente. Tiveram que me sedar para continuar no velório. Nessa
hora vi Angélica serena, sentada na sua cadeira olhando para nossa filha sem
dizer um ai. Ela que me deu força, segurou minha mão e seu silêncio me acalmou.
Os
primeiros meses foram terríveis para mim. Não conseguia entrar no quarto dela, olhar sua cama e suas bonecas me angustiavam. Comecei a beber com esperança de
apagar na minha memória a tragédia. Angélica continuou com sua vida, serena,
me apoiando, mesmo quando eu era ríspido e chegava bêbado em casa.
Angélica
nunca disse nada. Com paciência esteve no meu lado, e com serenidade, me
compreendia.
Foi
difícil, mas superei a dor da perda. Claro que a dor nunca foi embora por
completo, mas pude aguentar sem precisar mais beber.
E
durante meu período de sofrimento, percebi que não prestava mais atenção em
Angélica. Decidi que íamos voltar a ser como antes, e quem sabe teríamos outro
filho para alegrar nossa casa.
A
harmonia e a plenitude da nossa felicidade nunca mais voltou o que foi antes,
mas seguíamos com nossa vida, mesmo com a profunda cicatriz que ficou em nós.
Eu
sei que mudei, mas via Angélica agindo como sempre agiu em casa. Ela não baixou
a cabeça, não mostrou sofrimento, e falava comigo como antes. Me surpreendi com
sua força interior, e meu amor por ela reacendeu. Eu era a parte fraca na casa,
e me sustentei com sua força para me erguer novamente.
E
novamente quando pensei que nossa vida entraria nos eixos, veio aquilo.
Como
escrevi acima, depois da morte de Isabella entrei em tamanha depressão que não
enxerguei o que acontecia à minha volta.
Foi
no jantar que a verdade berrou diante dos meus olhos. Eu e Angélica
costumávamos comer na mesa da cozinha, e quando eu preparei meu prato, ouvi:
-
Você tem que comer tudo - Angélica disse, às minhas costas.
-
Eu vou comer - eu disse, e quando me virei para sentar, vi que ela olhava para
o seu lado.
Ela
olhava para a cadeira que Isabella sentava nas refeições.
Nem
mexi na comida. Fiquei prestando atenção nos movimentos de Angélica. Enquanto ela
ia comendo, dizia para a cadeira vazia:
-
Não pode deixar nada no prato, hein. Assim não vai ficar bonita.
Seus
olhos azuis, placidamente fitavam a cadeira vazia. E ela sorria.
-
Com quem está falando? - Perguntei.
Angélica
virou seu rosto na minha direção, e era um rosto sereno, os olhos brilhavam.
-
Ora essa... com nossa filha, claro!
E
entendi. Durante meu processo de luto, Angélica seguiu normalmente com sua
vida. Para ela, nossa filha estava viva. Por isso arrumava o quarto de Bela
diariamente, lavava suas roupinhas e as passava. Por isso que a via rindo,
como estivesse conversando com alguém.
Não
sei explicar se Angélica enlouqueceu depois da morte de Bela ou se ela sempre
foi louca e nunca percebi. Talvez toda santidade dela fosse... nem sei dizer
direito.
E
nem sei se vão acreditar nisso. Talvez digam que o louco fui eu. Mas precisei
fazer isso. Não ia suportar viver vendo a mulher, que idolatrei, santifiquei,
piorar a cada dia que passava.
Ontem
de noite acordei e não a vi deitada ao meu lado. Fui procura-la e a achei na
cozinha. Angélica segurava uma faca.
Eu
disse para ela largar a faca, mas ela disse:
-
Tenho que preparar o almoço de Bela...
Eu
cheguei perto dela, e Angélica foi para a pia. Vão achar que a empurrei, só segurei sua mão, ia tentar tirar a faca, mas ela tropeçou do nada e caiu. E caiu em cima da faca que
empunhava.
Fiquei
estático, olhando minha mulher morta. Não sei se ela fez de propósito, ou se o
tombo foi casual.
Pode
ser que em um momento de lucidez, ela tenha visto que era uma saída digna para
o inferno que se transformou nossa vida.
Eu
ainda a amo, mesmo com tudo isso.
E
não ia aguentar outro luto.
Por
isso, quando entrarem aqui em casa, vão nos encontrar, Angélica na cozinha e eu na
cama.
Estou
pronto para engolir todos comprimidos que comprei na época da minha depressão.
São mais de quarenta, e quando derem por nossa falta, já terei morrido.
Meu
gesto é covarde, mas não ia suportar viver sem Angélica ao meu lado.
Espero
que entendam isso.
Não
sei se existe vida depois da morte, mas se houver, espero reencontra-las.
Assinado: .....................
Rogerio
de C. Ribeiro
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