COMO É BOM JANTAR JUNTO COM A FAMÍLIA
Grata a surpresa que teve quando
chegou em casa e viu Lizaura arrumando a mesa da sala para o jantar; tinha
tanto tempo que Eunásio não sabia mais o que era jantar junto com sua família.
Enquanto tomava banho, podia escutar Lizaura cantarolando na cozinha, Valdo
falando no celular e Cininha reclamando da programação da tevê. Quando chegou
na sala todos o esperavam sentados na mesa.
No período que ficou desempregado
se acostumou em jantar sozinho no sofá equilibrando o prato na mão e com a
televisão ligada na frente enquanto Lizaura comia na pequena mesa da cozinha às
vezes acompanhada por Valdo ou Cininha. Mas agora parecia que sua vida familiar
voltava ao que era antes. Tudo graças ao novo emprego.
A cadeira na ponta da mesa foi reservada
para ele. Desajeitado, sentou-se com as costas retas e no momento que pegou o
guardanapo de pano esbarrou no copo de vidro vazio que balançou, rodopiou e
caiu para fora da mesa. Valdo, que estava sentando à sua direita, ágilmente
pegou o copo vazioo no ar.
Agora é a vez da bronca, Eunásio pensou.
- Isso acontece - Lizaura, sentada
na outra ponta da mesa, comentou, indiferente.
- Quanta agilidade - Cininha se
espantou.
- Ora - Valdo se gabou. - Não é a
toa que sou o goleiro do time do colégio.
Eunásio estava estupefato. Ninguém
comentou do esbarrão no copo. Ninguém ironizou o quanto ele era desastrado.
Não, nada de ironias. Agiram como se aquilo fosse um acidente corriqueiro,
normal.
Mas até ontem, se ele fizesse
qualquer coisinha do tipo: Perguntar o que havia para o jantar; como foi seu
dia na escola, filha?; você chegou de madrugada, filho; tropeçar na dobra do
tapete; insinuar que a conta do salão de beleza chegara num nível
estratosférico... Bem, em todos casos acima seria repreendido pela esposa,
escarnecido pela filha e ouviria de Valdo que já tinha dezessete anos e era
dono do próprio nariz. Agora, se tivesse esbarrado no copo, mesmo com a
agilidade de Valdo e salvando Lizaura em varrer os cacos de vidro, bem,
provavelmente seria expulso da mesa e ficaria sem jantar naquela noite.
Nesse momento, a cena beirava ao surreal.
Valdo e Cininha conversavam amigavelmente como dois irmãos civilizados e o mais
surpreendente... a televisão estava sintonizada no jornal e nenhum deles
disputava o controle remoto para assistir uma partida de futebol ou um filme.
Mas o que o surpreendeu mesmo foi
ter ouvido Lizaura, em pé com um prato vazio na mão olhando diretamente para
ele e perguntando:
- Como está sua fome, Eunásio?
Quer muito ou pouco - Lizaura apontou para as panelas em cima da mesma.
Aí já é demais, pensou Eunásio de queixo caído. Há quanto tempo que
ela não fazia seu prato? Buscou na memória e concluiu: Nunca!
A comida era simples; arroz
branco, feijão manteiga, carne assada recheada com calabreza, batatas coradas,
salada de alface e tomates. Tudo delicioso. A cada garfada, Eunásio mastigava
lentamente, esperando que aquele momento durasse o maior tempo possível;
curtindo cada momento mágico desse jantar em família.
O som do toque de celular quebrou
o silêncio reconfortador. Eunásio procurou de onde vinha o som; Lizaura sorriu
(um sorriso cândido!), Valdo bebeu um gole de mineirinho e atacou seu prato,
mudo.
Cininha pronunciou quando cessou
os toques do celular:
- Avisei a Beto do nosso jantar. Vive
pegando no meu pé...
Beto... O namorado da semana, Eunásio concluiu.
- Pai - Após esvaziar seu prato,
Valdo falou. - Tio Ambrósio ligou hoje pra mim. Tá querendo que eu trabalhe no
escritório dele em Bonsucesso.
- É mesmo? - Eunásio se espantou
com aquela notícia. Não sabia se o espantava mais do fato de Ambrósio ter
arrumado um emprego para o sobrinho que tinha fama de vagabundo ou de Valdo se
mostrar interessado em trabalhar. Todos sabiam que o Ambrósio patrão era
completamente tirano com seus funcionários.
- Sabe que o convite do tio tem um
dedinho do Pedrinho - Cininha sugeriu. Havia uma ponta de maldade nas palavras.
- Que tenha, Cininha - Valdo se
defendeu. - Pedrinho é mais que um primo. Considero ele como irmão.
- Irmão - Cininha riu.
Lizaura interveio.
- Chega, Cininha. Se Pedrinho
interferiu ou não a favor do Valdo, isso não interessa. O importante é que
Ambrósio está se preocupando com o futuro do sobrinho.
- Depois de tudo que ele fez com a
gente - Cininha reclamou. Ela afastou o seu prato da sua frente e pegou o copo
de refrigerante mineirinho. - Mãe, tio Ambrósio nunca olhou para a gente. A
senhora é única irmã dele, e o que ele fez para ajuda-la? Nada. Simplesmente
ignorava.
Os novos cabelos de Lizaura, de um
azul piscina, brilhava com o reflexo da lâmpada de cem velas, suspensa em um
fio acima dela.
- Não exagera, Cininha. Pode até
ser que no tempo do desemprego do seu pai ele estivesse nos evitando sim. Mas
mesmo assim ele se lembrava da gente nas datas especiais...
Eunásio perguntou:
- E quando começa, Valdo? - Aquele
emprego era um suspiro de esperança para ele. Valdo trabalhando significava que
ele teria alguma coisa útil para ocupar a cabeça, e quem sabe se afastasse
também daqueles garotos da rua? Corria um boato entre alguns moradores da rua
que esses garotos andavam praticando pequenos delitos. Era boato, mas sempre
existia um fundo de verdade nesses falatórios. Por mais que Valdo fosse
rebelde, não queria acreditar que ele também participava daqueles delitos.
Valdo coçou a cabeça e respondeu:
- Bem, ainda não respondi. O lance
é a distância.
- Distância é o de menos. Aqui na
Alameda passa um ônibus que vai até Madureira, e passa em Bonsucesso.
- Ônibus? Tá zoando com minha
cara! - Valdo fez uma careta de repulsa. - O senhor acha que tenho estrutura de
pegar aquele ônibus que vem de Alcântara lotado de pobres? Ele sempre vem
lotado. É ruim viajar em pé, espremido...
Eu ando e não acho ruim, pensou Eunásio.
- Andar de ônibus cheio não tira
pedaço de ninguém. Além do mais, da Alameda até a ponte são duas paradas, e
depois que chega no Rio, pega a Brasil e já entra em Bonsucesso...
Valdo reclamou.
- Não nasci para isso, pai.
- Ambrósio comprou um carro para
Pedrinho - interveio Lizaura na conversa dos dois.
Eunásio a fitou. Finalmente o jantar
entrava nos eixos.
- Foi? Pedrinho já tem dezoito
anos?
- Você sabe muito bem que ainda
não. Mesmo assim o pai pensou no conforto do filho e comprou um Ranger. -
Lizaura respondeu com desprezo.
Eunásio preferiu não comentar
nada. O que dissesse não ia adiantar muito. Agora estava explicado aquele
inusitado jantar. Lizaura queria alguma coisa, e alguma coisa dizia que era
bomba.
Lizaura pousou o garfo no seu
prato quase vazio, passou o guardanapo por cima do espesso buço descolorido e
disse:
- Espero que não tenha esquecido
do aniversário de Valdo.
- Não esqueci - Eunásio disse
quando engoliu um pedaço de carne. - É dentro de três meses. Deu uma olhada
rápida no filho.
Valdo era um rapaz espigado, cabeludo
e com uma barbicha rala no pequeno queixo. Tinha sobrancelhas grossas que puxou
aos da mãe e olhos castanhos pequenos e juntos. Estava usando uma camiseta
preta que tinha uma estampa de uma horrorosa caveira sorrindo. Para Eunásio,
seu filho sempre usava a mesma camisa. Podia notar que estava puída nas mangas.
- É, pai - disse Valdo sorrindo um
sorriso metálico. Graças ao seu tio Ambrósio fez tratamento dentário e agora
exibia um aparelho para corrigir a arcada superior. - Queria que o senhor me
desse um presente antecipado. Estive dando uma olhada na concessionária e um
amigo meu que trabalha lá me garantiu um preço camarada na moto. Pode ser
financiada em tantos meses pagando uma merreca.
Dessa vez Eunásio levantou o rosto
do prato. Franziu o cenho e perguntou:
- Uma moto?
- Isso. Só assim posso trabalhar
em Bonsucesso na boa.
Antes que Valdo respondesse,
Lizaura se intrometeu.
- É o mínimo que pode dar ao nosso
filho, Eunásio. Ele merece muito mais.
- Isso, pai - disse Valdo ao mesmo
tempo. - Olha que nem é a mais cara! Dá pro senhor pagar na boa.
Eunásio olhou sua mulher e depois
virou o rosto para a direita e mirou seu filho. Cininha levantou-se sem pedir
licença, pegou seu celular e conferiu quem tinha ligado para ela. Ela pareceu
zangada com o que viu. Era uma menina bonitinha, muito branca e com olhos
cinzentos e arregalados. Seus cabelos chegavam nos ombros e eram louros. Do
jeito que balançava a cabeça significava insatisfação.
- Valdo, não captei o que falou...
Você quer que eu faça um financeamento para comprar uma moto para você?
Valdo continuava com aquele
sorriso metálico.
- Isso aí, pai.
- Garanti a ele que você vai dar
esse presente antecipado - Lizaura disse, enfática.
Sentindo uma sensação de
impotência o corroendo por dentro, Eunásio não podia acreditar naquela
conversa. Era completamente surrealista.
Afastou o prato com as duas mãos,
pegou uma garrafa d'agua e encheu o seu copo. Deu dois goles e pousou
delicadamente o copo na mesa. Sentiu a raiva o minando por dentro e não queria
perder a cabeça. Lizaura falava, Valdo também falava, Cininha resmungava, mas
Eunásio não ouvia nenhuma palavra; o som que chegava aos seus ouvidos eram
confuso, como um estranho dialeto alienígena.
- Valdo é um filho maravilhoso...
- Pai, a moto é vermelha sangue...
- Em quê Pedrinho é melhor que
Valdo?
- Gente, quero sair, minhas
amigas...
- Meu amigo facilita...
- Honre as calças que veste,
porra!
- Basta - disse Eunásio, dando um
tapa mesa. Todos ficaram em silêncio, mas não mostravam medo e tampouco
respeito. Lizaura tinha os úmidos lábios cerrados e gotinhas de suor brilhavam no
buço descolorido; Valdo permanecia com aquele sorriso metálico zombeteiro e
batucava a mesa com os dedos da mão direita; Cininha, sentada no sofá com as
pernas cruzadas para cima e com o celular grudado na orelha largou um imenso
bocejo para mostrar quanto estava entendiada com aquela conversa toda. Sob a
lâmpada de sessenta velas, o ambiente estava amarelado, e todos pareciam sofrer
de hepatite.
Lizaura o encarou com olhos frios.
- Olhem aí - Lizaura aplaudiu. A
voz dela era cortante, como uma navalha rasgando a pele. - Depois de tantos
anos esse grande homem resolveu ter voz ativa aqui em casa, cantar de galo.
Como mudou depois que conseguiu o emprego que o meu irmão arrumou para ele!
Uma leve dor de cabeça misturada
com uma intensa nausea tomou conta de Eunásio. Ele encheu mais um copo de água
e esvaziou em dois goles.
- Desculpe, fiquei nervoso...
Lizaura tinha apoio dos filhos,
tanto que Cininha interveio:
- Não admito que o senhor berre
com a minha mãe.
- Eu não berrei...
- Grande merda de homem que dorme
comigo - zombou Lizaura. Ela pegou um pedaço de pão e limpou o restante de
molho no seu prato. Enquanto mastigava, disse, ferina: - Durante três anos a tua
família te apoiou incondicionalmente enquanto ficou desempregado. Agora que
arrumou um emprego, graças à generosidade do meu irmão, quer dar uma de
pão-duro e economizar alguns reais. Nem quando trabalhou naquela empresa você
foi tão ganinha assim. Lembro muito bem que seu salário vinha pra minha mão, e
você nunca reclamou por causa disso.
Sim, Lizaura, está coberta de razão. Tirando a parte que eu
depositava na nossa poupança conjunta, entregava o resto do dinheiro pra você.
E deu no que deu...
- ... agora se faz de rogado
quando é dar um presente para seu filho. - Lizaura continuava desfiando o
rosário de lamentações. - Eunásio, cada vez mais você decepciona a sua família.
- Não é isso, Lizaura. Ainda estou
em experiência. Sabe que esse trabalho não é garantido.
- Crianças - Exclamou Lizaura, -
vejam como seu pai é pessimista!
Eunásio massageou as têmporas com
as pontas dos dedos. Aquilo tudo estava errado.
- Não é pessimismo, Lizaura. É ser
realista. Nossa situação não é igual há três anos. Naquele tempo recebia ótimo
salário e viviamos muito bem. Mas tudo isso mudou.
Valdo ficou e reclamou:
- Não vou ficar aqui escutando
isso, pai. Já tô de saco cheio das suas lamentações. Mãe, eu falei com a
senhora. O trabalhão todo que a senhora teve para preparar esse jantar só foi
perda de tempo. Meu pai prefere me ver desempregado do que comprar uma moto pro
meu emprego. Depois não reclamem se eu continuar chegando tarde em casa..
- Calma, filho - Lizaura disse,
angustiada. - Eu prometi...
- Uma promessa que nunca pode ser
paga - Valdo reclamou. - Vou sair.
- Eu também vou - Cininha
aproveitou a deixa.
- Se demorarem muito liguem me
avisando - pediu Lizaura. E olhando diretamente para o filho, prometeu: - Juro que
terá sua moto. Não sei de que jeito, mas vai ter. Palavra da mãe.
Valdo inclinou e beijou Lizaura na
testa.
- Quem sabe, mãe.
Depois que os dois saíram de casa,
Lizaura pegou os pratos da mesa, pôs tudo na pia e voltou na sua cadeira.
Eunásio tinha uma aparência cansada, abatida, mas a mulher não se comoveu.
- Bem, agora é a nossa vez. Acabou
seu espetáculo de merda. Não adianta nada ficar dando uma bambambam da casa. Tua
moral aqui dentro de casa é zero idiota. Já te falei, pra cima de mim você
nunca vai cantar de galo.
Eunásio não retrucou. Apenas
olhava para o novo corte no cabelo de Lizaura. Dessa vez ela pintara o cabelo
de azul piscina.
- Foi no salão hoje de novo... -
Eunásio não conseguiu controlar a pergunta;
- Fui. Por quê? Agora sou proibida
de querer ficar bonita... Bonita pra mim mesma?
- Com que dinheiro? Não recebi o
pagamento ainda...
Lizaura balançou a mão mostrando
indiferença à pergunta.
- Sempre dou meu jeito.
Eunásio teve um pressentimento
nada bom.
- Lizaura. Sei que não temos
nenhum centavo na poupança e também sei que não escondemos dinheiro debaixo do
colchão.
- Se dependesse só de você, nunca
teríamos um centavo em casa.
- Você juntou esse dinheiro?
- E sou mulher pra juntar alguma
coisa? Olha, vou falar logo pra você. Pode ficar despreocupado, ainda não
gastei por conta da miséria que chama de salário. Não. Isso foi presente de
Ingrid.
Ingrid, a nova namorada oficial de
Ambrósio.
- E por quê ela te deu esse
presente?
Lizaura sorriu. Era um sorriso
cruel.
- Ingrid está organizando a pedido
do Ambrósio, claro, uma recepção na casa de Teresópolis. Segundo ela, meu irmão
chamou alguns empreiteiros para estreitar mais os laços de amizade...
Que nesse caso são negócios... Tipo de negócio não tenho
ideia e nem quero saber...
- Então - Lizaura continuou
dizendo. Enquanto falava, passava a mão nos cabelos azuis-piscina orgulhosa. -
Minha nova cunhada Ingrid pediu minha ajuda nessa recepção. Como vai ter um
serviço de buffet, e ela sabe muito bem que sou ótima para organizar tudo, nos
chamou pro fim de semana em Teresópolis.
- Esse fim de semana? - Cada vez
menos Eunásio gostava do que ouvia.
- Não, pedro-bó, no ano que vem -
Lizaura rosnou. - Claro que é. Ela vai passar aqui em casa para nos levar... -
Ela se lembrou de algo e consertou: - A carona é para mim, Cininha e Valdo.
Você tem que ir de ônibus.
Eunásio suplicou:
- É melhor ficar aqui em casa
mesmo...
Lizaura deu um tapinha no braço do
marido e falou:
- Enxergue o futuro, paspalho.
Pára um minuto com esse pensamento pobre. Já te disse. Se fosse mais esperto,
estaríamos ricos e não nessa merda hoje. Meu irmão vai receber gente de grana,
de muita grana. Até seu patrão vai, Ingrid me disse. É sua chance de mostrar
seu talento a essa gente. Eunásio, não acredito que está satisfeito com a nossa
condição. Não acredito mesmo. Volte a ser o Eunásio que conheci, o Eunásio
ambicioso... burro, mas ambicioso. Não erre mais como errou naquela vez. Acerte
uma vez na vida, merda.
Ele escutou. Mas sua vontade era
mudar. Mudar para melhor, acertar suas dívidas (que Lizaura fez, mas em seu
nome), trabalhar em paz, não ficar com medo de um telefonema, de uma ameaça...
Queria deixar o passado para bem longe... Se possível, esquecer de um certo dia
que dormiu empregado e acordou desempregado.
Mas agora tinha essa recepção. E
com certeza o final de semana seria bem longo...
Continua...
No próximo capítulo
FIM DE SEMANA EM TERESÓPOLIS PARTE
1
Rogerio de C. Ribeiro