Se
perguntassem, ninguém ia saber responder do dia exato que Lilico
apareceu na rua. Mais exatamente, o dia que surgiu sentado, de frente de um muro
alto e pichado, que cercava um terreno baldio, coberto de mato.
Lilico
era do tipo que não fazia mal a ninguém. A princípio, chegava pela manhã,
sempre antes das sete horas, colocava sua vasilha de plástico aos seus pés, organizava
e separava um maço de papéis rabiscados e depois, com os dedos calejados e unhas
sujas, criava origamis. Das folhas de papéis gerava patinhos, cachorros, gatos,
tudo que viesse na sua cabeça
No
início, os moradores do bairro estranharam que aquele homem magro, barbudo, que
mantinha a cabeça baixa, com os olhos sempre fixos no chão, pudesse criar
maravilhas de pedacinhos de papéis. Lilico mantinha um hábito: Durante o final
da tarde, ia com sua sacola esfarrapada jogada em cima do ombro, vasculhava lixeiras e
aproveitava os papéis intactos. Guardava-os com cuidado e porquê não dizer, com
muito carinho, a papelada na sacola, e quando ia dormir, na marquise do prédio
no centro da cidade, verificava tudo, desamassava e depois dobrava os papéis
para no dia seguinte, voltar a criar.
Quem
adorava os origamis era a criançada. Ficavam fascinadas pela habilidade e
rapidez com que ele fazia com pedacinhos inúteis de papéis, que logo se
transformavam no que quisessem. Então a criançada pedia e para elas, Lilico
dava de graça os origamis.
No
começo, os pais receavam que seus filhos ficassem perto de um mendigo, mas com
o correr do tempo, viram que era indefeso, tinha uma alma infantil, sem maldade
nenhuma.
Ainda
não sabiam como se chamava. Quando perguntaram, o mendigo respondeu, sempre com
um sorriso iluminando seu rosto:
-
Lilico.
Dias,
semanas, meses depois, as pessoas que passavam em frente ao muro do terreno
baldio, e viam Lilico, entretido com seus origamis, saudavam:
-
Bom dia, Lilico!
-
Bom dia, dona Luiza. - Ele sabia o nome de todo mundo.
-
E como vai, Lilico?
-
Vou bem, Graças a Deus.
-
Pega essa quentinha, Lilico.
-
Muito obrigado, dona Dayse.
-
Quanto custa o origami, Lilico?
-
Quanto o senhor quiser pagar, Seu Celso.
Era
assim todo dia.
De
vez em quando, dormia na calçada em frente do muro pichado. Alguns moradores
levavam cobertor, roupas usadas, sobras de comida. E Lilico retribuía dando um
origami em troca.
Às
vezes, Lilico sumia. Quando isso acontecia, alguns comentavam que sentiam falta
daquele homem com alma de criança, entretido com seus patinhos, gatinhos,
galinhas de papel. Mas não demorava muito e ele voltava.
-
Por onde andou, Lilico?
-
Uma moça muito simpática me levou num lugar onde cortei o cabelo e tiraram
minha barba. Ah, e ganhei roupas novas!
De
vez em quando, assistentes sociais circulavam pelo centro e levava os mendigos
a abrigos da prefeitura. Muitos fugiam quando viam as kombis estacionando na
avenida. Menos Lilico. Até sabia o nome de uma das assistentes.
-
Olá, dona Márcia. A senhora vai bem? - Sempre com seu sorriso inocente.
-
Vou sim, Lilico. Quer ir comigo para cortar seu cabelo e fazer a barba?
-
Quero, dona Márcia! Vai ser bom!
-
Por quê fugiu do abrigo, Lilico? Pensei que estava sendo bom para você...
Lilico
foi andando ao lado da assistente, entrou na Kombi e disse:
-
Agradeço muito a senhora por me levar e se preocupar comigo. Lá só é bom quando
corto meu cabelo. Depois, sinto falta do ar livre, dona. É aqui que acho meus
papéis para fazer os bichinhos para as crianças!
E
lá ia ele. Ficava dois dias, no máximo três, e voltava para a rua. Para o seu
lar de verdade.
Um
certo dia, enquanto Lilico se entretinha criando mais bichinhos em origamis,
sentado em frente ao muro pichado, caminhões estacionaram na rua em frente.
Homens surgiram com carrinho de mão, picaretas, enxadas; passaram por Lilico,
concentrado no cisne de papel que criava, rodearam o muro pela lateral e por
uma abertura, entraram no terreno baldio.
Enquanto
os homens limpavam o terreno, Lilico conversava com a criançada, rindo muito
das piadas que elas contavam.
No
dia seguinte, caminhões carregando toneladas de areia estacionaram na lateral
do muro. Era um vai e vem das caçambas levantando, areia caindo, e Lilico
fazendo seus origamis, tranquilamente, no mesmo lugar de sempre.
Operários
iam e vinham, ignorando o mendigo que tirava papéis dobrados de uma sacola
esfarrapada. Agora vinham caminhões trazendo tijolos, telhas, cimento,
pedras...
E
Lilico na frente do muro, ainda pichado.
Mais
uma vez a assistente social levou Lilico ao abrigo municipal. E dessa vez ele
ficou duas semanas lá.
Quando
voltou para o seu espaço de sempre, notou o muro, antes pichado, agora
completamente branco.
E
visualizou a ponta do telhado, com suas telhas vermelhas e uma antena
parabólica, atrás do muro.
Na
lateral do muro, um imenso e pesado portão foi posto onde antes era a abertura
do terreno baldio.
E
logo, Lilico ia descobrir que por detrás do muro, agora imaculado, também havia
moradores.
Lilico
sentou no lugar de sempre, colocou uma vasilha aos seus pés, organizou os
papéis dobrados e começou com seu trabalho.
Ouviu
o portão sendo aberto, e um carro saiu de dentro. O carro contornou a esquina,
parou com uma freada brusca, e o motorista abriu a porta.
-
O que você está fazendo aqui, sentado na frente do meu muro? - Perguntou o
motorista.
Lilico
levantou o rosto e viu um homem gordo, bem vestido, de cabelos curtos e grisalhos.
Sorriu e respondeu:
-
Olá! Sou Lilico.
O
motorista, que mais tarde se identificaria pelo nome de Antero Alves, berrou,
apoplético.
-
Saia daí, agora! - Ele saiu do carro e ficou de pé, com os punhos fechados.
-
Aqui é o lugar do Lilico. - Disse o mendigo de alma pura e inocente, ainda
manuseando os papéis no seu colo.
-
Que ... que lugar? Você está sentado na calçada em frente do meu muro!
-
Sempre sentei aqui.
Uma
mulher ia caminhando na calçada, viu o que estava acontecendo, e foi até o novo
morador da rua.
-
Com licença, vizinho... O Lilico é quase patrimônio da nossa rua...
Antero,
mais furioso ainda:
-
Tá protegendo esse mulambo, senhora? Não sabe o risco que passa? Isso aí é um
desocupado, um vagabundo...
Lilico
mostrou o origami que acabara de fazer, na forma de um gato, e disse:
-
Lilico não é vagabundo não, moço. Olha aqui, fiz pro senhor...
Estendeu
a mão com o gatinho de papel, mas Antero ignorou. Aproximou-se e chutou a
fileira de origamis que Lilico tinha feito desde que chegara. A moça disse:
-
Para de ser cruel! O Lilico é bom de coração. Não faz mal a nenhuma mosca!
Lilico
ficou de joelhos e catou os origamis espalhados. Ele disse:
-
Lilico fez com carinho e o moço chutou tudo!
Antero
limpou o suor brotando da sua testa e disse:
-
Olha, presta atenção... Daqui a pouco tô voltando... Espero que quando chegar,
não encontre mais você, nem os mulambos que carrega. É melhor você fazer o que
eu tô mandando... Vai ser melhor...
A
moça ajudou Lilico a catar os origamis amassados, e Antero voltou para o seu
carro e disparou em seguida.
No
fim da tarde, voltou e ficou satisfeito que o local onde estivera o mendigo,
agora estava vazio.
Comentou
com Soraia, sua esposa:
-
É mole! Acredita nisso? Nosso terceiro dia na casa, e me aparece um
vagabundo fazendo bichinhos com pedaços de papéis...
-
Origami - acrescentou Soraia. Ela estava sentada no sofá com Lucinha, filha de
5 anos do casal.
-
Que seja, Soraia. Não corte minhas palavras! E você não sabe da maior. Me
apareceu uma vizinha dizendo que o vagabundo era patrimônio da rua! Que
absurdo! - Ele abriu os braços e quando berrou de novo, Lucinha tampou os
ouvidos: - PATRIMÔNIO DA RUA!!!!
Quando
saiu de casa no dia seguinte, viu o vagabundo e seus origamis sentado na frente
do muro da sua casa. Enfurecido, freou bruscamente e pulou do carro.
-
Agora é demais! Pensei que tivesse entendido o que te falei ontem!
Lilico
viu aquele grande homem bem vestido vindo na sua direção e disse:
-
Entendi. Mas sempre volto, seu moço.
A
vontade que Antero sentiu foi de esganar aquele sujeito mulambento, mas antes
que se aproximasse, vários moradores surgiram de suas casas em defesa de
Lilico.
-
O senhor não pode agir assim com ele - disse um.
-
Lilico não faz mal a ninguém.
-
Olha os origamis que ele faz. É coisa de artista!
-
A criançada adora ele.
-
E eu gosto de todo mundo - disse Lilico.
Vendo
que estava atraindo antipatia aos novos vizinhos, Antero tentou argumentar:
-
Mas ele está sentado na calçada em frente do meu muro...
-
Lilico gosta daqui - disse o mendigo, sorrindo. Ofereceu um cisne que acabara
de fazer. - Vi que o seu moço tem uma filhinha. Leva para ela...
-
Não quero nada dessas mãos imundas - gritou Antero. - Quero que suma daqui pra
sempre!
Um
sujeito alto e forte, com cara de poucos amigos, aproximou-se. Perto dele,
Antero era um baixinho:
-
Olha aqui! Nem esquentou a casa ainda e já tá arrumando um rebu na nossa rua!
Aqui todo mundo é amigo, inclusive esse aí sentado com seus artesanatos. -
Quando o sujeito se aproximou mais, fez-se sombra em Antero: - O melhor que o
senhor faz agora é entrar no seu carro, dar partida e ir trabalhar. Não queira
se passar por antipático, porque a gente não vai ter muita paciência com
isso...
Antero,
na última tentativa:
-
Mas ele está invadindo o meu espaço...
O
sujeito, agora zangado:
-
O senhor é surdo? Já disse pra vazar fora! Deixa Lilico em paz!
-
Lilico agradece sua preocupação, Montanha. - disse o mendigo, entretido em mais
um bichinho de papel dobrado.
Sentindo-se
excluído pelos vizinhos, Antero pegou no volante e partiu.
Mas
no caminho, ele pensou:
-
Como pode! Se esse povo gosta tanto do molambento, por quê não dão uma casa,
roupas decentes ou um emprego para ele? O cara conquistou a todos... A
criançada adora ele...
Antero
batucou no volante e disse pra si mesmo:
-
Pago meus impostos em dia, trabalho que nem um condenado pra sustentar minha família, e agora quase sou
escorraçado da casa que é minha de direito, por causa de um vagabundo que fica
fazendo origamis para crianças.
Entrou
no estacionamento que costumava deixar seu carro, e saiu caminhando devagar
pela calçada, matutando.
Para
não angariar mais antipatias, decidiu que ia ficar quieto. Mas só por um tempo,
até que surgisse uma oportunidade.
E
essa oportunidade não demorou muito para surgir.
Cada
dia que saía de carro para trabalhar, e via o mendigo rodeado de crianças, o
ódio aumentava. Mas nessa manhã, uma luz surgiu no fim do túnel.
Na
mesa do café da manhã, Antero bebia uma xícara enquanto lia o jornal da manhã. Soraia
acabara de arrumar Lucinha para a creche e foi preparar um Nescau para a filha.
Como era hábito, Lucinha correu em seu uniforme verde, passou o braço em torno
do pescoço engravatado do pai e o e abraçou, dando bom dia e um beijo molhado
no rosto recém escanhoado.
Antero
retribuiu o beijo, mas notou algo no braço da menina. Havia uma mancha roxa na
altura do antebraço.
-
O que é isso, princesa?
-
Nada não, papai. Ontem caí na creche.
-
Caiu? - Antero virou-se para Soraia, que vinha com a mamadeira, e gritou: -
Lucinha caiu na creche e ninguém me disse nada? Que droga de colégio é esse que
não comunicam nenhum acidente aos pais?
Com
toda tranquilidade, Soraia respondeu.
-
Me avisaram sim, Antero. Lucinha é muito branca, qualquer coisinha mancha a
pele. Graças a Deus, ela não quebrou nada.
-
Tava brincando de amarelinha, papai.
Antero
abraçou a filha e disse, carinhosamente:
-
Desculpe, princesa, papai ficou preocupado - Lucinha era a única privilegiada
da família que não recebia grosserias de Antero. - Nem quero imaginar como eu
ficaria se minha menina tivesse agora usando uma tala...
Enquanto
ele acariciava o braço de Lucinha, teve uma ideia.
Virou-se
para Soraia e disse:
-
Deixa nossa princesa bebendo o Nescau e vem aqui comigo, Soraia.
Na
cozinha, ele disse:
-
Já sei como vou tirar aquele mulambo da nossa calçada!
-
Ainda não desistiu disso, Antero? O pobre coitado nem está sentado em
nossa calçada! A calçada fica na garagem, e onde ele senta, é na lateral do
muro...
-
Não amole - rugiu Antero, grosseiro. - Vou mandar que você faça uma coisa, e
vai ter que fazer muito bem feito!
Soraia
conhecia o marido. Quando seus olhos brilhavam, coisa boa que não era!
Era
assim também nos negócios. Se tivesse chance, passava a perna nos colegas para
ganhar um cliente. O apelido dele era Antero, o Voraz.
-
Dessa vez quero ver se algum babaca vai passar a mão na cabeça piolhenta
daquele verme!
-
Antero... Toma cuidado com o que...
-
Ah, Soraia! - Ele se controlou o tom da voz, e ameaçou: - Não se preocupe, que
o papel principal não vai ser seu! Soraia, contente-se com a figuração no
teatrinho... O papel principal é da nossa princesa!
-
Não estou entendendo nada desse negócio de teatro...
Antero
bufou:
-
Claro que não tá entendendo. Você é burra! Tapada! Essa parede da cozinha é
mais culta que você!
Soraia
nem ligou. Todos dias era chamada de burra. E ela sabia que era mesmo. Começou
a emburrecer no dia que conheceu Antero.
-
O teatro é o seguinte... Lucinha só precisa dizer que foi ele. Só isso. Nada
demais. - Antero riu. Um riso demoníaco. Imitou uma voz infantil - "Foi
ele, papai, foi ele!"
Era
uma manhã de sol entre nuvens. Lilico, conhecedor da meteorologia, sabia que
mais tarde ia cair uma tempestade. Por isso, decidiu que não ia fazer muitos
origamis, para não estragar seus papéis. Dona Alzira, moradora de uma casa ao
lado, veio lhe trazer uma caneca de café com leite, com o pão com margarina
embrulhado em um guardanapo. A criançada passava de uniforme a caminho dos seus
colégios e cumprimentavam o mendigo artista. Lilico sabia o nome de todos,
acena e desejava um ótimo dia para todos.
E
no meio desse vai e vem dos moradores, Antero apareceu, dessa vez a pé,
segurando a mão de Lucinha e com Soraia vindo atrás deles. Dona Alzira, ciente
da implicância do novo morador com Lilico, avisou:
-
Senhor, pensei que tivesse entendido que...
Antero
levantou a mão, que exibia anéis ornamentando três grossos dedos, e disse,
agora com a voz suave:
-
Minha senhora, sei que posso ter errado com esse meu jeito explosivo, mas tinha razão em uma coisa.
Antero
apertou a mãozinha de Lucinha, que disse:
-
Ai, tá doendo...
Dona
Alzira, preocupada, perguntou:
-
O que houve com sua filha?
Lilico,
sentado na calçada, observava tudo em silêncio.
-
Olha o bracinho da minha filha - e Antero mostrou a marca roxa.
-
Meu Deus! - Dona Alzira ficou horrorizada com o tamanho do machucado. -
Tadinha...
Pessoas
que passavam pela calçada pararam. Formou-se uma rodinha em torno da família da
casa nova. Só Lilico continuou no mesmo lugar, com alguns origamis organizados
em fileiras ao seu lado.
Antero
aproveitou a plateia que se formou, e deu início à sua peça teatral:
-
Minha esposa... Pra aqueles que ainda não nos conhece, o nome dela é Soraia - apontou
para a esposa, escondida atrás do seu corpanzil. - Soraia só me contou ontem à
noite, quando cheguei do trabalho. Claro que na hora, explodi de raiva. Qual
pai não ia se desesperar depois que escutasse o que ouvi ontem? - Manteve o
suspense no ar. Sem que ninguém notasse, novamente apertou a mãozinha de
Lucinha, que fez uma careta de dor. - Minha vontade era catar o responsável
pelo ferimento para quebrar o pescoço dele.
Além
de dona Alzira, em frente do muro onde Lilico estava sentado, sem entender
direito o que acontecia, tinha mulheres que levavam seus filhos para o colégio,
homens a caminho do ponto de ônibus para o trabalho, e todos, curiosos, olhavam
o braço da menina, e instintivamente, concordavam com as palavras de Antero,
que prosseguiu:
-
Não quero ser injusto com ninguém, quero deixar isso bem claro! Minha esposa,
Soraia, tem um pequeno defeito. Ela aumenta as coisas. Por isso esperei que
Lucinha acordasse para perguntar o que de fato havia acontecido.
Mais
uma vez ficou quieto, atiçando a curiosidade dos outros. Ele era um vendedor,
daqueles que iam com voracidade em cima dos clientes para efetuar um negócio. E
nos vinte anos de venda, nunca perdeu uma batalha. E como vendedor, agora
vendia uma ideia, e aos poucos ia conquistando sua clientela nova...
-
Lucinha só tem cinco anos. Cinco aninhos! Ontem, vinha da creche com Soraia e
parou aqui - apontou Lilico, que fazia outro origami. - Imaginem a inocência de
uma criança quando vê um bichinho desses feitos de papel... Ela pediu um, e
esse coitado (firmou bem a palavra coitado. Era uma técnica de venda; você
frisa uma palavra, e ela gruda na cabeça do provável comprador) ofereceu um
gatinho. Mas minha filha não queria um gato. Ela queria um patinho. E pegou um
que estava numa fila. Só que sem querer, derrubou os outros origamis. E esse
"coitado"... eu não quero dizer retardado, é uma palavra forte...
agarrou o bracinho dela com força e disse que não era pra desmanchar a fileira
que tinha feito!
-
Senhor - disse uma moça, com seu filho ao lado. - Conhecemos Lilico, ele
nunca mexeu numa criança daqui da rua!
-
Conhecem mesmo? Nunca o viram de mau humor?
-
Lilico não fez nada - disse o mendigo, aparvalhado. - Lilico nunca falou com a menina...
-
Olha, não quero perder minha paciência com você. É melhor ficar quieto.
-
Lilico não machuca criança! - disse, desesperado.
Antero
virou-se para sua filha e disse:
-
Fala, minha princesa, pode falar!
Quando
estava em casa, orientara Lucinha:
-
Vamos brincar de teatro, filha?
-
Oba! - Lucinha pulara de alegria.
-
Eu sei que adora, filha. Por isso, eu, você, mamãe e aquele moço dos bichinhos
que fica sentado lá fora, todo mundo vai brincar de teatrinho agora.
-
E vou ser a princesa, pai?
-
Você sempre é a princesa. Quando formos lá fora, eu vou dizer 'fala, minha
princesa', e você só tem que dizer "foi ele, pai, foi ele!"
-
Só isso? - Ela pareceu desapontada.
-
Isso vai ser muito, filha!
E
nesse momento, na calçada em frente do muro que protegia sua casa, cercado por
uma multidão de curiosos, Antero repetiu:
-
Fala, minha princesa...
Lucinha,
desempenhando seu papel, apontou Lilico e gritou:
-
Foi ele, papai! Foi ele!
Choque
geral entre a multidão. Só Lilico que não parecia entender o que acontecia. A
expressão no rosto da menina, um misto de dor e sofrimento, abalou todos.
Dona Alzira, desconfiada, perguntou:
-
Minha filha... O que Lilico fez?
Antero
apertou mais ainda a mãozinha da menina. Talvez os dedinhos da sua filha
ficassem vermelhos depois disso, mas era por uma boa causa!
Por
causa da dor que sentia na mão, seus olhos marejaram. Lucinha fez um beicinho e
murmurou:
-
Foi ele.
Foi
a gota d'água. Mães afastaram seus filhos do mendigo; os homens que iam
trabalhar confabularam entre si. Antero disse:
-
O pobre coitado não tem culpa se é retardado. O que não podemos admitir é
deixarmos ele junto dos nossos filhos. Ontem fez isso no braço da minha filha,
mas amanhã pode fazer coisa pior com uma dessas crianças...
-
Lilico não fez nada! - defendeu-se o mendigo. Ele abraçou sua sacola
esfarrapada, ficou de pé e continuou: - É mentira desse moço! Lilico só faz
origamis para as crianças ficarem feliz!
-
Sai daqui - disse uma mulher, que agarrava seu filho, protegendo-o. - Seu
monstro! O que mais fez com outras crianças?
Antero
soltou uma palavra:
-
Vai ver, enquanto oferecia um gatinho, um patinho, alisava a perna de um, ou
fazia cafuné em outra...
Dona
Alzira, horrorizada:
-
Então foi isso! - Perguntaram o que era, e ela continuou. - Letícia... minha
neta... na semana passada chegou com o joelho arranhado...
Outra
mulher:
-
Meu filho também estava machucado!
Outras
foram se lembrando de um caso que aconteceu com seus filhos. O que era normal
para uma criança sadia, que brincasse no recreio do colégio e se machucasse
naturalmente, agora se transformou em uma paranóia coletiva. Um sujeito moreno,
que vestia uniforme de operário, agarrou Lilico pelos colarinhos, puxou-o
contra si e berrou:
-
Safado! Vou levar minha filha pro médico agora mesmo! Se ele descobrir que você
abusou dela, eu vou te matar!
Lilico
deu tapinhas inofensivos nos braços musculosos do operário e disse:
-
Bira, Lilico não fez nada com Tininha...
Outro
homem, esse com um jornal embaixo do braço, chutou as pernas de Lilico, que
dobrou os joelhos e ficou pendurado no ar, ainda com seu colarinho agarrado
pelo operário:
-
Ele tem que levar uma surra!
Outros
sujeitos arrancaram a sacola das mãos de Lilico. Pegaram os papéis,
cuidadosamente dobrados em tamanhos e cores, e começaram a rasga-los.
-
Não façam isso! - Gritou Lilico, desesperado. - É do Lilico! Para fazer cisnes,
gatos, patinhos...
-
E aliciar nossos filhos! - Gritou o operário, que esmurrou Lilico.
O
soco atingiu a boca do mendigo. A barba preta ficou rubra com o sangue que
jorrava do lábio cortado.
-
Tarado! Monstro! - A multidão gritava.
As
crianças choravam de medo. Lilico ficou deitado, em posição fetal, os braços na
cabeça, se defendendo dos pontapés.
Viu
consternado a fileira de origamis chutadas e pisoteadas. Lilico chorou.
Surgiu
uma patrulha da polícia. Os PM's afastaram a turba em cima do mendigo e pediram
explicação para o que estava acontecendo. Várias vozes ao mesmo tempo ecoaram:
-
Ele é tarado!
-
Machucou minha neta!
-
Alisou meu filho!
-
Estragou a inocência das crianças!
O
sargento pediu:
-
Calma, calma... - olhou Lilico, que continuava deitado, coberto de escoriações.
- Um de cada vez!
Antero
pediu a palavra. Com o dom da oratória, explicou ao policial o que havia
acontecido à sua filha. Quando o sargento olhou a escoriação no braço da
menina, seus olhos no mendigo deixaram de ser de comiseração, para se
transformar em raiva.
-
Inadmissível! - O sargento, pai de duas meninas pequenas, pensou nelas quando
ouviu a narrativa do vendedor. Tomou as dores daquele pai, e disse: - Vamos
leva-lo agora. E, senhor - aproximou-se de Antero e disse no ouvido: - pode
deixar que ele nunca mais vai pisar os pés aqui na rua. Nem aqui, nem em outro lugar qialquer.
-
Tomara - disse Antero. - Com ele perto, não posso dormir direito...
-
Pode deixar comigo, senhor. Nunca mais vai ver esse tarado. - O sargento
sorriu para a menina e disse: - Melhoras, neném.
O
sargento e o soldado pegaram Lilico e o jogaram na patrulha. Antes que o carro
desse partida, ouviram Lilico gritando:
-
Lilico não fez nada! Lilico quer sua sacola e seus papéis! Lilico tem que fazer
mais bichinhos...
O
carro saiu cantando os pneus, e a voz de Lilico se perdeu no ar. A multidão
voltou para seus afazeres, e alguns ligaram para os médicos para agendar uma
consulta com eles.
Antero
voltou para casa, satisfeito. Atingiu o ponto fraco das pessoas. Eram pais, e pais
sempre se preocupavam com seus filhos à respeito dos estupradores, dos
maníacos, dos sequestradores.
Na
sala, Antero avisou que não ia trabalhar naquele dia, que queria desfrutar pela
primeira vez, da sua casa. E Lucinha podia ver televisão, também não ia a
creche.
Soraia,
que nesse tempo todo ficou muda, à sombra do seu marido, finalmente abriu a
boca e disse:
-
O que fez foi horrível, Antero. Como consegue conviver com tanta maldade
no coração?
Antero
jogou-se no sofá, esticou as pernas e disse, sem o menor remorso:
-
Você é burra mesmo! Tudo que fiz foi pelo bem da nossa família! Tudo que fiz
foi para proteger o nosso lar. E se você não notou, agora sim, a casa é só
nossa. Só nossa!
Rogerio
de C. Ribeiro