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segunda-feira, 30 de junho de 2014

O PRÊMIO CAPÍTULO 18

No capítulo anterior: O limite da paciência começou a se esgotar. Mônica se abaixou para pegar as alças da sacola abarrotada de pacotes de figurinhas, quando escutou:
- Mas de tardinha fiquei sentada na minha cadeirinha na calçada em frente da minha casa.
- Dona Amélia, tá ameaçando um toró e...
- E sabe o que eu não vi? - Foi impressão sua ou vislumbrou os olhinhos da velha brilhando?
- O que a senhora não viu, dona Amélia?
- Guiomar. - A dentadura voltou para o seu lugar.


Capítulo 18

Mônica fingiu que não tinha entendido. Se a velha é esperta, eu também sou, pensou.
- Hã... E daí?
- Você não acha estranho? - Dona Amélia inclinou a cabeça para o lado direito, outro cacoete que tinha.
- Eu não acho nada estranho - respondeu Mônica, secamente.
Dona Amélia torceu sua boca para baixo, e voltou com a mastigação da dentadura.
- O que estou estranhando, é que nos vinte e tantos anos que conheço Guiomar, ela vem com sua vassoura para tirar as folhas da calçadas. É um ritual que ela segue de domingo a domingo, mesmo debaixo de sol ou de chuva...
- Dona Amélia, não sei do que a senhora tá dizendo. A senhora conhece a mim e a Adroaldo, não somos o tipo de vizinhos que ficamos vendo os passos que os outros dão ou fazem...
- Mas eu não estou fazendo nenhuma fofoca! - Quando ela disse a última palavra, quase cuspiu a dentadura para fora. - É que Guiomar, mesmo doente, sempre arruma uns minutos para varrer as folhas. É uma mania que ela tem...
- Vai ver que ela saiu, foi na cidade resolver alguma coisa, sei lá. Pode ter ido na casa de um parente.
- Ela nunca vai em casa de parentes, e nem eles vem para cá para vê-la.
"Isso é bom", pensou Mônica.
- Era sobre isso que eu ia te perguntar, Mônica. Na hora que saiu, não viu Guiomar na casa dela?
- Na casa dela?
- É, lá - a dentadura subia e descia, e o pescoço continuava deitado de lado.
- E o que eu ia fazer na casa dela?
Dona Amélia balançou os ombros.
- Sei lá... é que ontem você entrou lá.
- Entrei com ela, dona Amélia.
- Eu sei, eu vi... O que houve com ela ontem?
- Acho que eram os joelhos... estavam doendo...
Agora foi por pouco que a dentadura não escapou e escorregou pelos lábios; automaticamente dona Amélia empurrou-a com o dedo indicador.
- Sinto muita pena dela... aquilo deve doer à beça. Graças a Deus que não tenho nada de ruim nas articulações...
- Bem, dona Amélia, quem sabe a dona Guiomar pode ter ido ao médico para ver os joelhos. Não somos obrigados em saber o que nossos vizinhos fazem ou deixam de fazer. Por mais que a senhora seja vigilante, sempre existe um detalhezinho que pode escapulir da sua vista. Agora preciso ir mesmo. Tchau dona Amélia.
Mônica levantou a sacola, mas com o peso, a parte de cima virou e alguns pacotes de figurinhas caíram na calçada.
- Droga - reclamou Mônica.
Dona Amélia foi mais rápida. Contrariando sua idade, abaixou-se lépida e pegou os pacotes em uma tacada só. Deveria ter quinze ou vinte pacotes na sua mão. Curiosa, leu o verso:
- Cromos ilustrativos do corpo humano! Há quanto tempo que não vejo um desses!
- Comprei para os meninos - disse Mônica, tentando pegar os pacotinhos da mão da vizinha. Mas dona Amélia protegeu as mãos virando para o lado e continuou lendo:
- Em cada pacote vem três cromos... na época que meus filhos eram crianças, o nome era figurinha e precisava de cola para botar no álbum... Osmarino, meu falecido marido - que Deus o guarde bem - sempre disse que esse negócio de álbum de figurinha era o melhor modo de jogar dinheiro fora.
- Adroaldo fala a mesma coisa. Mas sempre compra. Os meninos adoram - mentiu Mônica.
- Esse álbum é novo? É do corpo humano... interessante... vou comprar pro meu neto, Gustavo... é o que tem 8 anos, quando vem me visitar, brinca com seus filhos. Ele vai gostar.
(Viu só, Mônica, fica aí perdendo seu tempo com essa esclerosada... vai acabar sendo mais uma concorrente para faturar o prêmio...)
- Não! - Mônica gritou. - O seu neto não vai gostar... esse álbum é muito erudito pra idade dele... Crianças com essa idade gostam de futebol, heróis em quadrinhos...
- Ora essa! Seus filhos não gostam? Qual é a diferença deles para o meu neto? Além do mais, podem trocar as figurinhas... Os meninos sempre gostaram disso!
"Tenho mais de 600 figurinhas repetidas, vamos ver se vão trocar todas", pensou Mônica, aproveitando para pegar os pacotinhos da mão de dona Amélia.
Jogou-as na sacola e a pôs no ombro. Quando se afastava, ainda ouviu dona Amélia dizendo:
- Se ver Guiomar, diz a ela que estimo as melhoras...
"Vou ver sim, mas não agora..."
Atravessou a rua em passos rápidos, abriu o portão e deixou-o aberto; pegou as chaves e abriu a porta. Entrou e viu Mateus rabiscando uma revista velha.
- Cadê Felipe? - Perguntou Mônica, ajeitando a alça da sacola pesada no seu ombro.
Mateus sacudiu os ombros e continuou com suas obras de artes na revista; Mônica passou por ele e entrou na cozinha. Largou a sacola em cima da mesa e foi beber água. Quando deixou o copo em cima da pia viu uma sombra na área de serviços.
Correu para lá e viu Felipe sentado ao lado da máquina de lavar com as pernas cruzadas e mexendo em várias figurinhas dentro do saco plástico que ela esquecera na noite anterior.
- O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AÍ????? - Mônica gritou, paralisada com que viu.
Felipe pulou com o susto que levou e várias figurinhas que tinha nas mãos se espalharam pelo chão. Aterrorizado, viu sua mãe parada ao lado da porta da cozinha.

Continua...

No próximo capítulo: Mônica pegou Felipe no flagrante, e precisa pensar rápido. O que ela fará?

Rogerio de C. Ribeiro

sábado, 28 de junho de 2014

RELEMBRANDO OS CONTOS

Sábado, 28 de junho. Hoje tem Brasil e Chile pelas oitavas de final na Copa do Mundo. Quem perder, volta para casa. Se for o Brasil (não creio que seja agora), a maioria dos jogadores voltam para SUAS mansões, ou regressam para a Europa.
Mas não serei pessimista. O Brasil passa e pronto, depois pega outro sul-americano e dá prosseguimento à sua campanha do hexa.
Mas o assunto de hoje não é sobre a Copa do Mundo. São dos contos que venho publicando nesses dois meses de blog.
Um dia, pesquisei pelo Google sobre blog's de contos e encontrei vários, mas não achei um igual ao meu. Pode ser que até tenha, mas não vi. Os que apareceram foram contos esporádicos, resenhas de livros de autores iniciantes, matérias sobre como criar um conto, um argumento, a forma como DEVE ser escrito uma obra de ficção.
Escrevi a palavra "deve" em maiúsculas de propósito, porque o que notei foi muito blá-blá-blá. Até aceito que alguns escritores iniciantes necessitem de uma orientação para desenvolverem suas histórias. Mas ou estou errado, ou sou egocêntrico demais, mas não compro uma ideia de pessoas que nunca escreveram um romance, ou um conto. Vi que muitos são jornalistas, fizeram zil cursos de técnica de escrita, se consideram phd, analisam detalhadamente uma obra, mas são incapazes de contar uma história.
Para mim, a melhor aula para aprender o básico para escrever, que seja uma obra prima ou um lixo, primeiro de tudo é ler. Ler bastante. Começar a ler (ou no meu caso, antes de aprender a ler, olhar as figurinhas), um livro infantil ou um gibi da Turma da Mônica ou revista da Disney.
Vou falar do meu caso. Meu primeiro contato com um livro, foi no jardim de infância. Eu tinha cinco anos, estudava(?) no colégio Júlia Cortines, que fica ao lado do Campo de São Bento, em Niterói. O livro era Alice no País da Maravilha, e o que me fascinou foi o desenho do gato listrado que sumia e aparecia (não sei o nome dele até hoje). Lembro que pedi aos meus pais mais livros, mas meu pai não comprou nenhum livro, mas me apareceu com revistas do Riquinho, Brotoeja, Bolota, Brasinha... Isso foi em 1968.
Em 1970, conheci a revista Mônica. Nesse ano já sabia ler. Viciei nos quadrinhos. Lia de tudo, principalmente as revistas Mônica, Cebolinha, Luluzinha, Bolinha...
O bom de ler gibis é você acompanhar aquelas pequenas aventuras de seis, dez páginas. Entender o enredo. O começo, meio e fim. Viajar com os personagens.
A influência do gibi era tão grande em mim que, nos meus 12 anos, quis escrever uma história. O nome era Joca, sobre um bandido. Comecei escrevendo, mas na altura da página 5, decidi transforma-lo em quadrinhos. Desenhava e escrevia as falas nos balões dos personagens. Naquela época, era minha praia.
Desenhava (ou rabiscava) cadernos com aventuras de personagens que eu criava. Me divertia com aquilo.
Fora as histórias que eu criava na minha cabeça. Imaginava que eram novelas de trocentos capítulos, inventava personagens e enredo, por mais esdrúxulo que fosse!
Minha primeira lembrança de livro que li foi As Caçadas de Pedrinho. Monteiro Lobato. E sabem de uma coisa? Na época não gostei. Mas li.
Depois vieram as coleções de livros de bolso da Ediouro. Eram livros infanto - juvenis maravilhosos. Tinha um que eu adorava, eram as aventuras de Bira e Calunga. Sobre um menino órfão e seu cachorro que viviam no Rio de Janeiro, sempre se metendo em confusão. Me lembro de um que era sobre uns bandidos que fabricavam salsicha de cachorro! Eu tinha dez anos quando li, e nunca mais me esqueci desse fato!
Com quinze anos, li Dom Quixote. Leitura difícil, mas juro que li ele todo. Logo em seguida li Germinal, de Émile Zolá. Um livro que já li umas três vezes. E depois li O Processo, de Kafka, muito doido para a cabeça de um jovem adolescente.
E confesso: Graças ao estilo naturalista de Germinal, ao absurdo de O Processo, às aventuras de um louco em Dom Quixote, que me deram coragem, e escrevi em 1978, Eu Sou Brasileiro, sobre um nordestino que sonha com o sucesso financeiro na cidade grande. Foi o primeiro manuscrito meu que teve começo, meio e fim, e com lógica.
Voltando ao que dizia lá em cima sobre ensinar a escrever: Isso não funciona para mim. Meus professores foram os milhares de gibis que li, que estimularam minha imaginação, e o contexto de começo, meio e fim de um enredo. Claro que o principal é gostar, e muito, de escrever, criar situações, pensar nos nomes dos personagens, escrever um conto de 7 páginas que tenha sentido... ou escrever um de cento e lá vai fumaça, como agora, que estou publicando em capítulos no blog, as loucuras de Mônica. Meus insistentes leitores que acompanham a série, tenham calma que ainda tem muita coisa aí pela frente!
E para não perder o hábito dos sábados, vou comentar os contos completos que publiquei nessa semana.
DUAS PALAVRAS APENAS, E ADEUS = Conto que publiquei na terça. História que criei nessa semana agora. A  princípio, o título seria  Uma palavra apenas e adeus, mas precisei mudar para duas. Um detalhe sobre o processo desse conto: Pensei no título, escrevi as primeiras palavras, e confesso de coração, não tinha a mínima ideia do que viria em seguida. Fui escrevendo, as palavras foram criando um cenário, daqui a pouco foi o personagem, e logo visualizei o caráter dele. De pronto, como uma psicografia, depois escrevi rápido, em duas horas já estava pronto.
LILICO = Conto de quinta-feira. Essa história também escrevi nessa semana. Só que foi diferente a de cima. Esse conto chegou pra mim completo, e só depois pensei no título. O que me inspirou: Nasci e vivi quase minha vida inteira em Niterói, RJ, e hoje moro no Litoral do Paraná. Pois bem, moro numa casa, com muros de palito de cimento e portão PVC. Todo dia de manhã (isso quando faz sol, claro), sento na minha cadeira, fumo meu cigarro, troco o jornal da gaiola do meu calopsita de 11 anos e brinco com o cão pastor alemão, que pertencia à minha cunhada, mas que adotou minha casa como sua moradia. Bem, estava eu lagarteando no sol (ainda com um pouco de cerração), observando os quero-quero berrando na rua em frente, quando vi um sujeito todo agasalhado sentado em frente do muro numa casa vizinha, no outro lado da rua. E o sujeito se levantou, veio andando em direção do meu portão (e imaginei Bento, o pastor alemão, latindo para ele) e perguntou se eu sabia das horas. A voz dele era infantil, e eu respondi que não sabia, ele deu tchau, meia volta e foi caminhando pela rua de areia e grama, em direção da estrada.
E o jeito dele me inspirou na hora. Pensei: Um mendigo com alma infantil, com habilidade de fazer arte ( o origami veio quando comecei a escrever), primeiro as pessoas desconfiavam dele, depois a criançada ficava amiga dele, e tinha um muro, claro, um muro cercando um terreno baldio, até que certo dia chega operários e constroem uma casa. E o novo morador, quando vê um mendigo sentado na frente do seu muro, faz de tudo para tira-lo dali.
Como disse, esse conto veio com o início, meio e fim. Quando escrevi a primeira palavra, já sabia da última. E foi prazeroso. Quem não leu, leiam. Não é um "era uma vez e todos viveram felizes para sempre", infelizmente a realidade não é um conto de fadas.
Posso estar errado ou sou egocêntrico. Estou repetindo isso porque para escrever não precisa de aulas teóricas, tem que ir logo pra ação. E se sua história vai ser uma obra prima, um best-seller, vai ser adaptado para um filme ou tv, bem, isso não depende só para quem escreve. Depende daqueles que gostam de ler, seja um gibi ou um livro, e que acreditem no seu potencial. Ou na sua diversão!

Rogerio de C. Ribeiro


sexta-feira, 27 de junho de 2014

O PRÊMIO CAPÍTULO 17

No capítulo anterior: Seu coração batia descontrolado dentro do seu peito. Um nó apertou sua garganta.
Fingiu que se mostrava desinteressada, tediosa, enquanto aguardava. E na tela surgiu:
SENHA INCORRETA.
Agora, além do coração dando cambalhotas feito louco dentro dela, eram as pernas bambas. O suor que escorria pelo rosto deixou rastros da maquiagem, mas ela nem sentiu. Respirou fundo, pegou novamente o papel e foi digitando cada número pausadamente...
TEMPO ESGOTADO. - Apareceu na tela.


Capítulo 17

Já não sentia mais o ar condicionado central; o suor escorria pelas costas, mãos, e agora tinha certeza que, de alguma forma, a portuguesa desgraçada conseguiu se soltar das amarras e chamou a polícia. Sua vontade agora era de fugir dali, ir o mais longe possível dos olhos acusadores que as pessoas no banco lançavam, e se esconder em qualquer buraco. O papel que segurava desmanchava-se aos poucos pelo suor. Mônica sentiu-se atordoada, acuada, e nesse momento, só queria era estar em casa, ali se sentia protegida...
(Calma, Mônica, o que tá havendo é que você está muito nervosa! Respira fundo, conte até dez e digite novamente. Essa é sua última chance...)
Mônica fechou os olhos. Sua cabeça era massacrada por uma forte dor aguda que vinha da nuca. Fez o que a voz mandou (Será que a voz da caveira tem nome? É do Damiano? Só podia ser, claro!), respirou fundo e depois contou até dez. Quando abriu os olhos, sua dor de cabeça diminuiu, e ela então enfiou o cartão na máquina, escolheu saque e aguardou. Digitou os números devagar, repetindo a senha em voz baixa, e fixou os olhos na máquina. Na tela, apareceu TECLE AS LETRAS, e ela digitou, agora com seu dedo mais firme, a combinação das letras.  Um instante depois, e veio na tela: VALOR.
Mônica digitou R$ 1.000,00. Ouviu um som de notas se agitando dentro da caixa automática e leu a mensagem: AGUARDE ENQUANTO AS NOTAS SÃO CONTADAS.
O compartimento abriu exibindo várias notas. Mônica pegou-as sem conferir e colocou na sua bolsa, junto do cartão e o papel com a senha. Apressou os passos, mantendo a cabeça baixa, e saiu da agência. O sol da tarde ofuscou sua visão. Ela se misturou à multidão que ia e vinha, e parou ao lado de desconhecidos, e esperou que o sinal de pedestres ficasse verde. Ela sentia sua adrenalina fervendo dentro dela, e uma leve tontura. Mal o sinal abriu, foi a primeira que atravessou a rua, correndo. No outro lado, havia uma banca de jornais.
- Oi, tem a figurinha do corpo humano? - Perguntou ela ao jornaleiro, atropelando as palavras.
- Tem sim.
- Quero duzentos pacotes.
O jornaleiro, um careca de óculos, assobiou:
- Puxa... se me aparece outros fregueses iguais a senhora, estou feito!
Ela puxou duas notas de cinquenta reais da bolsa e exigiu:
- Mais rápido aí, moço...
- Sim senhora, um minutinho só! Não é toda hora que conto duzentos pacotinhos!
Contou e tirou de um bolo, a quantidade pedida. Entregou e Mônica jogou todas dentro da bolsa. Saiu sem dizer nem boa tarde.
Até o terminal de ônibus ela fez uma peregrinação; passou em mais de dezesseis bancas de jornais, foi comprando todo estoque que conseguia nelas. O dinheiro que sacou, gastou tudo em dois mil pacotes; ela comprou uma sacola grande de plástico em uma banca de camelô na Coronel Gomes Machado e jogou os pacotes lá dentro. Por causa da costela machucada pela cotovelada que levou de Guiomar, carregou a sacola pesada com dificuldade; principalmente enquanto caminhava pelas ruas do Centro: esbarrou nas pessoas apressadas, e uma vez, correu o risco de ser atropelada pelos carros, por causa das barracas dos camelôs que tomavam as calçadas na Rua da Praia.
Quando chegou no terminal, logo conseguiu pegar seu ônibus. Olhou as horas no seu pequeno relógio de pulso, e se deu conta que passava das quatro horas da tarde. O corpo todo doía, a têmpora direita latejava. Seu dia estava sendo atarefado, mas que não acabou ainda. Tinha que dar um jeito de entrar em casa com a sacola, sem que seus filhos vissem.
O ponto do ônibus em seu bairro ficava a dois quarteirões de sua casa. Ela viu um céu carregado de nuvens pretas, e após mais um dia beirando quarenta graus, o final da tarde prometia com uma tempestade daquelas de alagar as ruas.
Andou rápido pela calçada, e viu os mesmos vizinhos, os mesmos parasitas que  se enraizaram ali, e que nunca mais sairiam daquele bairro deplorável. Mesmo com seu ombro ardendo, apoiava as alças da sacola pesada ali. No momento que foi atravessar a rua para o lado onde ficava sua casa, uma mulher beirando 70 anos, estacionou na sua frente. A última figura que queria ver agora! Era dona Amélia, a moradora mais antiga do bairro.
- Oi, Mônica, pera um pouco... Posso te fazer uma pergunta?
- Ah, dona Amélia, agora não! Estou com bastante pressa e...
Os vizinhos diziam que dona Amélia, surda nos dois ouvidos, tinha ganho dos filhos no seu último aniversário, um aparelho de surdez, mas tinham dúvidas quando ela os usava ou não.
Quando Mônica disse que tinha pressa, dona Amélia utilizou o benefício da dúvida e fingiu que não tinha ouvido. Era uma das suas artimanhas para poder manter uma pessoa conversando com ela.
- Querida, não ouvi o que você disse...  - Ela pôs a mão na orelha, e continuou, - mas posso te fazer uma pergunta?
Mônica tirou a sacola pesada do ombro dolorido, e colocou no chão. Nervosa, olhou seu relógio de pulso. Impaciente, disse:
- Tá, dona Amélia, qual pergunta?
Dona Amélia mantinha um cacoete que enojava Mônica. Tinha mania de mastigar sua dentadura superior. Havia pessoas que desviavam a cara para o lado, quando os dentes postiços dançavam pelos lábios murchos da velha.
Mônica nunca desviou o rosto, mas nesse momento seria bem capaz de enfiar a mão na boca da velha se presenciasse aquela dentadura dançando na sua frente.
- Sabe o que é, Mônica... estou estranhando uma coisa... - enquanto ela falava, a dentadura subia e descia. - sabe que conheço todos moradores da nossa rua, e alguns deles, desde que eram crianças...
- Dona Amélia, meus filhos estão me esperando, tenho que dar o lanche deles e...
Dona Amélia atropelou as palavras de Mônica, fingindo que não a ouviu.
- Hoje o calor foi de rachar, fiquei lá em casa o dia inteiro com o ventilador em cima de mim... Dizem que o vento quente faz mal, mas nem tô aí... Pelo menos aproveitei para por minhas costuras em dia...
O limite da paciência começou a se esgotar. Mônica se abaixou para pegar as alças da sacola abarrotada de pacotes de figurinhas, quando escutou:
- Mas de tardinha fiquei sentada na minha cadeirinha na calçada em frente da minha casa.
- Dona Amélia, tá ameaçando um toró e...
- E sabe o que eu não vi? - Foi impressão sua ou vislumbrou os olhinhos da velha brilhando?
- O que a senhora não viu, dona Amélia?
- Guiomar. - A dentadura voltou para o seu lugar.

Continua...

No próximo capítulo: O ponto de vista de dona Amélia e sua dentadura bailarina.

Rogerio de C. Ribeiro

quinta-feira, 26 de junho de 2014

LILICO

Se perguntassem, ninguém ia saber responder do dia exato que Lilico apareceu na rua. Mais exatamente, o dia que surgiu sentado, de frente de um muro alto e pichado, que cercava um terreno baldio, coberto de mato.
Lilico era do tipo que não fazia mal a ninguém. A princípio, chegava pela manhã, sempre antes das sete horas, colocava sua vasilha de plástico aos seus pés, organizava e separava um maço de papéis rabiscados  e depois, com os dedos calejados e unhas sujas, criava origamis. Das folhas de papéis gerava patinhos, cachorros, gatos, tudo que viesse na sua cabeça
No início, os moradores do bairro estranharam que aquele homem magro, barbudo, que mantinha a cabeça baixa, com os olhos sempre fixos no chão, pudesse criar maravilhas de pedacinhos de papéis. Lilico mantinha um hábito: Durante o final da tarde, ia com sua sacola esfarrapada jogada em cima do ombro, vasculhava lixeiras e aproveitava os papéis intactos. Guardava-os com cuidado e porquê não dizer, com muito carinho, a papelada na sacola, e quando ia dormir, na marquise do prédio no centro da cidade, verificava tudo, desamassava e depois dobrava os papéis para no dia seguinte, voltar a criar.
Quem adorava os origamis era a criançada. Ficavam fascinadas pela habilidade e rapidez com que ele fazia com pedacinhos inúteis de papéis, que logo se transformavam no que quisessem. Então a criançada pedia e para elas, Lilico dava de graça os origamis.
No começo, os pais receavam que seus filhos ficassem perto de um mendigo, mas com o correr do tempo, viram que era indefeso, tinha uma alma infantil, sem maldade nenhuma.
Ainda não sabiam como se chamava. Quando perguntaram, o mendigo respondeu, sempre com um sorriso iluminando seu rosto:
- Lilico.
Dias, semanas, meses depois, as pessoas que passavam em frente ao muro do terreno baldio, e viam Lilico, entretido com seus origamis, saudavam:
- Bom dia, Lilico!
- Bom dia, dona Luiza. - Ele sabia o nome de todo mundo.
- E como vai, Lilico?
- Vou bem, Graças a Deus.
- Pega essa quentinha, Lilico.
- Muito obrigado, dona Dayse.
- Quanto custa o origami, Lilico?
- Quanto o senhor quiser pagar, Seu Celso.
Era assim todo dia.
De vez em quando, dormia na calçada em frente do muro pichado. Alguns moradores levavam cobertor, roupas usadas, sobras de comida. E Lilico retribuía dando um origami em troca.
Às vezes, Lilico sumia. Quando isso acontecia, alguns comentavam que sentiam falta daquele homem com alma de criança, entretido com seus patinhos, gatinhos, galinhas de papel. Mas não demorava muito e ele voltava.
- Por onde andou, Lilico?
- Uma moça muito simpática me levou num lugar onde cortei o cabelo e tiraram minha barba. Ah, e ganhei roupas novas!
De vez em quando, assistentes sociais circulavam pelo centro e levava os mendigos a abrigos da prefeitura. Muitos fugiam quando viam as kombis estacionando na avenida. Menos Lilico. Até sabia o nome de uma das assistentes.
- Olá, dona Márcia. A senhora vai bem? - Sempre com seu sorriso inocente.
- Vou sim, Lilico. Quer ir comigo para cortar seu cabelo e fazer a barba?
- Quero, dona Márcia! Vai ser bom!
- Por quê fugiu do abrigo, Lilico? Pensei que estava sendo bom para você...
Lilico foi andando ao lado da assistente, entrou na Kombi e disse:
- Agradeço muito a senhora por me levar e se preocupar comigo. Lá só é bom quando corto meu cabelo. Depois, sinto falta do ar livre, dona. É aqui que acho meus papéis para fazer os bichinhos para as crianças!
E lá ia ele. Ficava dois dias, no máximo três, e voltava para a rua. Para o seu lar de verdade.
Um certo dia, enquanto Lilico se entretinha criando mais bichinhos em origamis, sentado em frente ao muro pichado, caminhões estacionaram na rua em frente. Homens surgiram com carrinho de mão, picaretas, enxadas; passaram por Lilico, concentrado no cisne de papel que criava, rodearam o muro pela lateral e por uma abertura, entraram no terreno baldio.
Enquanto os homens limpavam o terreno, Lilico conversava com a criançada, rindo muito das piadas que elas contavam.
No dia seguinte, caminhões carregando toneladas de areia estacionaram na lateral do muro. Era um vai e vem das caçambas levantando, areia caindo, e Lilico fazendo seus origamis, tranquilamente, no mesmo lugar de sempre.
Operários iam e vinham, ignorando o mendigo que tirava papéis dobrados de uma sacola esfarrapada. Agora vinham caminhões trazendo tijolos, telhas, cimento, pedras...
E Lilico na frente do muro, ainda pichado.
Mais uma vez a assistente social levou Lilico ao abrigo municipal. E dessa vez ele ficou duas semanas lá.
Quando voltou para o seu espaço de sempre, notou o muro, antes pichado, agora completamente branco.
E visualizou a ponta do telhado, com suas telhas vermelhas e uma antena parabólica, atrás do muro.
Na lateral do muro, um imenso e pesado portão foi posto onde antes era a abertura do terreno baldio.
E logo, Lilico ia descobrir que por detrás do muro, agora imaculado, também havia moradores.
Lilico sentou no lugar de sempre, colocou uma vasilha aos seus pés, organizou os papéis dobrados e começou com seu trabalho.
Ouviu o portão sendo aberto, e um carro saiu de dentro. O carro contornou a esquina, parou com uma freada brusca, e o motorista abriu a porta.
- O que você está fazendo aqui, sentado na frente do meu muro? - Perguntou o motorista.
Lilico levantou o rosto e viu um homem gordo, bem vestido, de cabelos curtos e grisalhos. Sorriu e respondeu:
- Olá! Sou Lilico.
O motorista, que mais tarde se identificaria pelo nome de Antero Alves, berrou, apoplético.
- Saia daí, agora! - Ele saiu do carro e ficou de pé, com os punhos fechados.
- Aqui é o lugar do Lilico. - Disse o mendigo de alma pura e inocente, ainda manuseando os papéis no seu colo.
- Que ... que lugar? Você está sentado na calçada em frente do meu muro!
- Sempre sentei aqui.
Uma mulher ia caminhando na calçada, viu o que estava acontecendo, e foi até o novo morador da rua.
- Com licença, vizinho... O Lilico é quase patrimônio da nossa rua...
Antero, mais furioso ainda:
- Tá protegendo esse mulambo, senhora? Não sabe o risco que passa? Isso aí é um desocupado, um vagabundo...
Lilico mostrou o origami que acabara de fazer, na forma de um gato, e disse:
- Lilico não é vagabundo não, moço. Olha aqui, fiz pro senhor...
Estendeu a mão com o gatinho de papel, mas Antero ignorou. Aproximou-se e chutou a fileira de origamis que Lilico tinha feito desde que chegara. A moça disse:
- Para de ser cruel! O Lilico é bom de coração. Não faz mal a nenhuma mosca!
Lilico ficou de joelhos e catou os origamis espalhados. Ele disse:
- Lilico fez com carinho e o moço chutou tudo!
Antero limpou o suor brotando da sua testa e disse:
- Olha, presta atenção... Daqui a pouco tô voltando... Espero que quando chegar, não encontre mais você, nem os mulambos que carrega. É melhor você fazer o que eu tô mandando... Vai ser melhor...
A moça ajudou Lilico a catar os origamis amassados, e Antero voltou para o seu carro e disparou em seguida.
No fim da tarde, voltou e ficou satisfeito que o local onde estivera o mendigo, agora estava vazio.
Comentou com Soraia, sua esposa:
- É mole! Acredita nisso? Nosso terceiro dia na casa, e me aparece um vagabundo fazendo bichinhos com pedaços de papéis...
- Origami - acrescentou Soraia. Ela estava sentada no sofá com Lucinha, filha de 5 anos do casal.
- Que seja, Soraia. Não corte minhas palavras! E você não sabe da maior. Me apareceu uma vizinha dizendo que o vagabundo era patrimônio da rua! Que absurdo! - Ele abriu os braços e quando berrou de novo, Lucinha tampou os ouvidos: - PATRIMÔNIO DA RUA!!!!
Quando saiu de casa no dia seguinte, viu o vagabundo e seus origamis sentado na frente do muro da sua casa. Enfurecido, freou bruscamente e pulou do carro.
- Agora é demais! Pensei que tivesse entendido o que te falei ontem!
Lilico viu aquele grande homem bem vestido vindo na sua direção e disse:
- Entendi. Mas sempre volto, seu moço.
A vontade que Antero sentiu foi de esganar aquele sujeito mulambento, mas antes que se aproximasse, vários moradores surgiram de suas casas em defesa de Lilico.
- O senhor não pode agir assim com ele - disse um.
- Lilico não faz mal a ninguém.
- Olha os origamis que ele faz. É coisa de artista!
- A criançada adora ele.
- E eu gosto de todo mundo - disse Lilico.
Vendo que estava atraindo antipatia aos novos vizinhos, Antero tentou argumentar:
- Mas ele está sentado na calçada em frente do meu muro...
- Lilico gosta daqui - disse o mendigo, sorrindo. Ofereceu um cisne que acabara de fazer. - Vi que o seu moço tem uma filhinha. Leva para ela...
- Não quero nada dessas mãos imundas - gritou Antero. - Quero que suma daqui pra sempre!
Um sujeito alto e forte, com cara de poucos amigos, aproximou-se. Perto dele, Antero era um baixinho:
- Olha aqui! Nem esquentou a casa ainda e já tá arrumando um rebu na nossa rua! Aqui todo mundo é amigo, inclusive esse aí sentado com seus artesanatos. - Quando o sujeito se aproximou mais, fez-se sombra em Antero: - O melhor que o senhor faz agora é entrar no seu carro, dar partida e ir trabalhar. Não queira se passar por antipático, porque a gente não vai ter muita paciência com isso...
Antero, na última tentativa:
- Mas ele está invadindo o meu espaço...
O sujeito, agora zangado:
- O senhor é surdo? Já disse pra vazar fora! Deixa Lilico em paz!
- Lilico agradece sua preocupação, Montanha. - disse o mendigo, entretido em mais um bichinho de papel dobrado.
Sentindo-se excluído pelos vizinhos, Antero pegou no volante e partiu.
Mas no caminho, ele pensou:
- Como pode! Se esse povo gosta tanto do molambento, por quê não dão uma casa, roupas decentes ou um emprego para ele? O cara conquistou a todos... A criançada adora ele...
Antero batucou no volante e disse pra si mesmo:
- Pago meus impostos em dia, trabalho que nem um condenado pra  sustentar minha família, e agora quase sou escorraçado da casa que é minha de direito, por causa de um vagabundo que fica fazendo origamis para crianças.
Entrou no estacionamento que costumava deixar seu carro, e saiu caminhando devagar pela calçada, matutando.
Para não angariar mais antipatias, decidiu que ia ficar quieto. Mas só por um tempo, até que surgisse uma oportunidade.
E essa oportunidade não demorou muito para surgir.
Cada dia que saía de carro para trabalhar, e via o mendigo rodeado de crianças, o ódio aumentava. Mas nessa manhã, uma luz surgiu no fim do túnel.
Na mesa do café da manhã, Antero bebia uma xícara enquanto lia o jornal da manhã. Soraia acabara de arrumar Lucinha para a creche e foi preparar um Nescau para a filha. Como era hábito, Lucinha correu em seu uniforme verde, passou o braço em torno do pescoço engravatado do pai e o e abraçou, dando bom dia e um beijo molhado no rosto recém escanhoado.
Antero retribuiu o beijo, mas notou algo no braço da menina. Havia uma mancha roxa na altura do antebraço.
- O que é isso, princesa?
- Nada não, papai. Ontem caí na creche.
- Caiu? - Antero virou-se para Soraia, que vinha com a mamadeira, e gritou: - Lucinha caiu na creche e ninguém me disse nada? Que droga de colégio é esse que não comunicam nenhum acidente aos pais?
Com toda tranquilidade, Soraia respondeu.
- Me avisaram sim, Antero. Lucinha é muito branca, qualquer coisinha mancha a pele. Graças a Deus, ela não quebrou nada.
- Tava brincando de amarelinha, papai.
Antero abraçou a filha e disse, carinhosamente:
- Desculpe, princesa, papai ficou preocupado - Lucinha era a única privilegiada da família que não recebia grosserias de Antero. - Nem quero imaginar como eu ficaria se minha menina tivesse agora usando uma tala...
Enquanto ele acariciava o braço de Lucinha, teve uma ideia.
Virou-se para Soraia e disse:
- Deixa nossa princesa bebendo o Nescau e vem aqui comigo, Soraia.
Na cozinha, ele disse:
- Já sei como vou tirar aquele mulambo da nossa calçada!
- Ainda não desistiu disso, Antero? O pobre coitado nem está sentado em nossa calçada! A calçada fica na garagem, e onde ele senta, é na lateral do muro...
- Não amole - rugiu Antero, grosseiro. - Vou mandar que você faça uma coisa, e vai ter que fazer muito bem feito!
Soraia conhecia o marido. Quando seus olhos brilhavam, coisa boa que não era!
Era assim também nos negócios. Se tivesse chance, passava a perna nos colegas para ganhar um cliente. O apelido dele era Antero, o Voraz.
- Dessa vez quero ver se algum babaca vai passar a mão na cabeça piolhenta daquele verme!
- Antero... Toma cuidado com o que...
- Ah, Soraia! - Ele se controlou o tom da voz, e ameaçou: - Não se preocupe, que o papel principal não vai ser seu! Soraia, contente-se com a figuração no teatrinho... O papel principal é da nossa princesa!
- Não estou entendendo nada desse negócio de teatro...
Antero bufou:
- Claro que não tá entendendo. Você é burra! Tapada! Essa parede da cozinha é mais culta que você!
Soraia nem ligou. Todos dias era chamada de burra. E ela sabia que era mesmo. Começou a emburrecer no dia que conheceu Antero.
- O teatro é o seguinte... Lucinha só precisa dizer que foi ele. Só isso. Nada demais. - Antero riu. Um riso demoníaco. Imitou uma voz infantil - "Foi ele, papai, foi ele!"
Era uma manhã de sol entre nuvens. Lilico, conhecedor da meteorologia, sabia que mais tarde ia cair uma tempestade. Por isso, decidiu que não ia fazer muitos origamis, para não estragar seus papéis. Dona Alzira, moradora de uma casa ao lado, veio lhe trazer uma caneca de café com leite, com o pão com margarina embrulhado em um guardanapo. A criançada passava de uniforme a caminho dos seus colégios e cumprimentavam o mendigo artista. Lilico sabia o nome de todos, acena e desejava um ótimo dia para todos.
E no meio desse vai e vem dos moradores, Antero apareceu, dessa vez a pé, segurando a mão de Lucinha e com Soraia vindo atrás deles. Dona Alzira, ciente da implicância do novo morador com Lilico, avisou:
- Senhor, pensei que tivesse entendido que...
Antero levantou a mão, que exibia anéis ornamentando três grossos dedos, e disse, agora com a voz suave:
- Minha senhora, sei que posso ter errado com esse meu jeito explosivo, mas tinha razão em uma coisa.
Antero apertou a mãozinha de Lucinha, que disse:
- Ai, tá doendo...
Dona Alzira, preocupada, perguntou:
- O que houve com sua filha?
Lilico, sentado na calçada, observava tudo em silêncio.
- Olha o bracinho da minha filha - e Antero mostrou a marca roxa.
- Meu Deus! - Dona Alzira ficou horrorizada com o tamanho do machucado. - Tadinha...
Pessoas que passavam pela calçada pararam. Formou-se uma rodinha em torno da família da casa nova. Só Lilico continuou no mesmo lugar, com alguns origamis organizados em fileiras ao seu lado.
Antero aproveitou a plateia que se formou, e deu início à sua peça teatral:
- Minha esposa... Pra aqueles que ainda não nos conhece, o nome dela é Soraia - apontou para a esposa, escondida atrás do seu corpanzil. - Soraia só me contou ontem à noite, quando cheguei do trabalho. Claro que na hora, explodi de raiva. Qual pai não ia se desesperar depois que escutasse o que ouvi ontem? - Manteve o suspense no ar. Sem que ninguém notasse, novamente apertou a mãozinha de Lucinha, que fez uma careta de dor. - Minha vontade era catar o responsável pelo ferimento para quebrar o pescoço dele.
Além de dona Alzira, em frente do muro onde Lilico estava sentado, sem entender direito o que acontecia, tinha mulheres que levavam seus filhos para o colégio, homens a caminho do ponto de ônibus para o trabalho, e todos, curiosos, olhavam o braço da menina, e instintivamente, concordavam com as palavras de Antero, que prosseguiu:
- Não quero ser injusto com ninguém, quero deixar isso bem claro! Minha esposa, Soraia, tem um pequeno defeito. Ela aumenta as coisas. Por isso esperei que Lucinha acordasse para perguntar o que de fato havia acontecido.
Mais uma vez ficou quieto, atiçando a curiosidade dos outros. Ele era um vendedor, daqueles que iam com voracidade em cima dos clientes para efetuar um negócio. E nos vinte anos de venda, nunca perdeu uma batalha. E como vendedor, agora vendia uma ideia, e aos poucos ia conquistando sua clientela nova...
- Lucinha só tem cinco anos. Cinco aninhos! Ontem, vinha da creche com Soraia e parou aqui - apontou Lilico, que fazia outro origami. - Imaginem a inocência de uma criança quando vê um bichinho desses feitos de papel... Ela pediu um, e esse coitado (firmou bem a palavra coitado. Era uma técnica de venda; você frisa uma palavra, e ela gruda na cabeça do provável comprador) ofereceu um gatinho. Mas minha filha não queria um gato. Ela queria um patinho. E pegou um que estava numa fila. Só que sem querer, derrubou os outros origamis. E esse "coitado"... eu não quero dizer retardado, é uma palavra forte... agarrou o bracinho dela com força e disse que não era pra desmanchar a fileira que tinha feito!
- Senhor - disse uma moça, com seu filho ao lado. - Conhecemos Lilico, ele nunca mexeu numa criança daqui da rua!
- Conhecem mesmo? Nunca o viram de mau humor?
- Lilico não fez nada - disse o mendigo, aparvalhado. - Lilico nunca falou com a menina...
- Olha, não quero perder minha paciência com você. É melhor ficar quieto.
- Lilico não machuca criança! - disse, desesperado.
Antero virou-se para sua filha e disse:
- Fala, minha princesa, pode falar!
Quando estava em casa, orientara Lucinha:
- Vamos brincar de teatro, filha?
- Oba! - Lucinha pulara de alegria.
- Eu sei que adora, filha. Por isso, eu, você, mamãe e aquele moço dos bichinhos que fica sentado lá fora, todo mundo vai brincar de teatrinho agora.
- E vou ser a princesa, pai?
- Você sempre é a princesa. Quando formos lá fora, eu vou dizer 'fala, minha princesa', e você só tem que dizer "foi ele, pai, foi ele!"
- Só isso? - Ela pareceu desapontada.
- Isso vai ser muito, filha!
E nesse momento, na calçada em frente do muro que protegia sua casa, cercado por uma multidão de curiosos, Antero repetiu:
- Fala, minha princesa...
Lucinha, desempenhando seu papel, apontou Lilico e gritou:
- Foi ele, papai! Foi ele!
Choque geral entre a multidão. Só Lilico que não parecia entender o que acontecia. A expressão no rosto da menina, um misto de dor e sofrimento, abalou todos. Dona Alzira, desconfiada, perguntou:
- Minha filha... O que Lilico fez?
Antero apertou mais ainda a mãozinha da menina. Talvez os dedinhos da sua filha ficassem vermelhos depois disso, mas era por uma boa causa!
Por causa da dor que sentia na mão, seus olhos marejaram. Lucinha fez um beicinho e murmurou:
- Foi ele.
Foi a gota d'água. Mães afastaram seus filhos do mendigo; os homens que iam trabalhar confabularam entre si. Antero disse:
- O pobre coitado não tem culpa se é retardado. O que não podemos admitir é deixarmos ele junto dos nossos filhos. Ontem fez isso no braço da minha filha, mas amanhã pode fazer coisa pior com uma dessas crianças...
- Lilico não fez nada! - defendeu-se o mendigo. Ele abraçou sua sacola esfarrapada, ficou de pé e continuou: - É mentira desse moço! Lilico só faz origamis para as crianças ficarem feliz!
- Sai daqui - disse uma mulher, que agarrava seu filho, protegendo-o. - Seu monstro! O que mais fez com outras crianças?
Antero soltou uma palavra:
- Vai ver, enquanto oferecia um gatinho, um patinho, alisava a perna de um, ou fazia cafuné em outra...
Dona Alzira, horrorizada:
- Então foi isso! - Perguntaram o que era, e ela continuou. - Letícia... minha neta... na semana passada chegou com o joelho arranhado...
Outra mulher:
- Meu filho também estava machucado!
Outras foram se lembrando de um caso que aconteceu com seus filhos. O que era normal para uma criança sadia, que brincasse no recreio do colégio e se machucasse naturalmente, agora se transformou em uma paranóia coletiva. Um sujeito moreno, que vestia uniforme de operário, agarrou Lilico pelos colarinhos, puxou-o contra si e berrou:
- Safado! Vou levar minha filha pro médico agora mesmo! Se ele descobrir que você abusou dela, eu vou te matar!
Lilico deu tapinhas inofensivos nos braços musculosos do operário e disse:
- Bira, Lilico não fez nada com Tininha...
Outro homem, esse com um jornal embaixo do braço, chutou as pernas de Lilico, que dobrou os joelhos e ficou pendurado no ar, ainda com seu colarinho agarrado pelo operário:
- Ele tem que levar uma surra!
Outros sujeitos arrancaram a sacola das mãos de Lilico. Pegaram os papéis, cuidadosamente dobrados em tamanhos e cores, e começaram a rasga-los.
- Não façam isso! - Gritou Lilico, desesperado. - É do Lilico! Para fazer cisnes, gatos, patinhos...
- E aliciar nossos filhos! - Gritou o operário, que esmurrou Lilico.
O soco atingiu a boca do mendigo. A barba preta ficou rubra com o sangue que jorrava do lábio cortado.
- Tarado! Monstro! - A multidão gritava.
As crianças choravam de medo. Lilico ficou deitado, em posição fetal, os braços na cabeça, se defendendo dos pontapés.
Viu consternado a fileira de origamis chutadas e pisoteadas. Lilico chorou.
Surgiu uma patrulha da polícia. Os PM's afastaram a turba em cima do mendigo e pediram explicação para o que estava acontecendo. Várias vozes ao mesmo tempo ecoaram:
- Ele é tarado!
- Machucou minha neta!
- Alisou meu filho!
- Estragou a inocência das crianças!
O sargento pediu:
- Calma, calma... - olhou Lilico, que continuava deitado, coberto de escoriações. - Um de cada vez!
Antero pediu a palavra. Com o dom da oratória, explicou ao policial o que havia acontecido à sua filha. Quando o sargento olhou a escoriação no braço da menina, seus olhos no mendigo deixaram de ser de comiseração, para se transformar em raiva.
- Inadmissível! - O sargento, pai de duas meninas pequenas, pensou nelas quando ouviu a narrativa do vendedor. Tomou as dores daquele pai, e disse: - Vamos leva-lo agora. E, senhor - aproximou-se de Antero e disse no ouvido: - pode deixar que ele nunca mais vai pisar os pés aqui na rua. Nem aqui, nem em outro lugar qialquer.
- Tomara - disse Antero. - Com ele perto, não posso dormir direito...
- Pode deixar comigo, senhor. Nunca mais vai ver esse tarado. - O sargento sorriu para a menina e disse: - Melhoras, neném.
O sargento e o soldado pegaram Lilico e o jogaram na patrulha. Antes que o carro desse partida, ouviram Lilico gritando:
- Lilico não fez nada! Lilico quer sua sacola e seus papéis! Lilico tem que fazer mais bichinhos...
O carro saiu cantando os pneus, e a voz de Lilico se perdeu no ar. A multidão voltou para seus afazeres, e alguns ligaram para os médicos para agendar uma consulta com eles.
Antero voltou para casa, satisfeito. Atingiu o ponto fraco das pessoas. Eram pais, e pais sempre se preocupavam com seus filhos à respeito dos estupradores, dos maníacos, dos sequestradores.
Na sala, Antero avisou que não ia trabalhar naquele dia, que queria desfrutar pela primeira vez, da sua casa. E Lucinha podia ver televisão, também não ia a creche.
Soraia, que nesse tempo todo ficou muda, à sombra do seu marido, finalmente abriu a boca e disse:
- O que fez foi horrível, Antero. Como consegue conviver com tanta maldade no  coração?
Antero jogou-se no sofá, esticou as pernas e disse, sem o menor remorso:
- Você é burra mesmo! Tudo que fiz foi pelo bem da nossa família! Tudo que fiz foi para proteger o nosso lar. E se você não notou, agora sim, a casa é só nossa. Só nossa!


Rogerio de C. Ribeiro