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quarta-feira, 13 de maio de 2015

A CASA AMARELA CAPITULO 3

I
O primeiro do grupo que despertou do sono foi Sílvio. Quando abriu os olhos e viu o teto sem nenhuma lâmpada acima, ficou confuso. Por um momento não se lembrava onde estava. Mas aos poucos lembrou-se da clínica e do médico. Com dificuldade ergueu-se pelo cotovelo e conseguiu sentar na beirada do colchão. Toda vez que se levantava precisava de alguns segundos para relaxar as pernas, que sempre amanheciam rígidas e doloridas.
Ainda sentado estendeu as pernas para o alto e ia começar o mesmo processo de sempre que era massagear até que a câimbra sumisse quando percebeu, espantado, que podia movimentar as pernas para cima e para baixo e não havia um resquício de dor. Pôs os pés descalços no chão e se levantou. Deu dois passos e suas pernas continuavam firmes como uma rocha.
Esticou os braços para cima e espreguiçou-se. Mais uma vez ficou surpreso; sua coluna reagiu bem e até estalou. Parecia que as dores no corpo sumiram em questão de horas.
Caminhou para a janela e olhou o extenso campo que predominava depois da casa. Nenhum vento, nada de calor apesar do sol forte.
Sílvio retornou para a cama e ficou sentado. Depois de um momento olhando a parede branca na sua frente, balançou a cabeça e chegou a conclusão que era apenas imaginação sua.
As dores continuavam pelo seu corpo mas por uma autossugestão influenciado pela alegria de finalmente ter sido internado na clínica camuflava seu martírio de anos. Era como tivesse sido hipnotizado pelo médico e sua enfermeira.
Daqui a pouco elas virão com toda força e precisava estar preparado para que não o pegasse de surpresa. Um dia uma lancinante dor rasgou seus rins em plena calçada no centro da cidade, e ele ficou estirado com o rosto virado ao lado de um bueiro apertando seu quadril com o braço direito enquanto gritava por socorro. Formou-se uma multidão de curiosos à sua volta mas ninguém se prontificou em ajuda-lo; simplesmente assistiam seu sofrimento como se fosse um espetáculo teatral.
Para ele que se contorcia no chão, com vários pares de sapato na altura do seu rosto, até ouvir o som da sirene berrando da ambulância lhe pareceu que  levara horas, mas depois descobriu que não passara nem dez minutos. No hospital, depois de exames de raio X, a notícia que recebeu do plantonista não foi nada agradável.
- Sua dor foi derivada a gases presos, Sílvio. Vou receitar um remédio muito bom para aliviar...
- Gases? - Sílvio, que estava sentado na sala do médico, que devia ser residente por que parecia ser mais novo que ele e tinha espinhas na cara, pulou da cadeira furioso. - O senhor não trocou os exames com outra pessoa?A dor que senti foram nos rins, disso aí não tenho um pingo de dúvida. Eu conheço dor de gases presos, de vez em quando sempre tenho isso. E sei também diferenciar essa dor com a dos rins. Não preciso ser médico para eu mesmo diagnosticar meu problema.
O jovem e imberbe médico sacudiu a cabeça e o estetoscópio pendurado no seu pescoço balançou junto. Para Sílvio, aquele médico não conhecia nada sobre o que eram dores.
- Os exames não erram e não foram trocados com nenhum paciente, Sílvio. Seus rins estão em ótimas condições e não existe nenhum cálculo, pedra ou partícula de poeira neles.
Sílvio ficou em pé e ameaçou, apontando o dedo:
- Então se crê em alguma coisa reze muito pra que a dor não apareça mais. Se na hora que sair daqui tiver outra crise, processo você e esse matadouro que chamam de hospital.
Depois disso nunca mais teve nenhuma crise renal. Sílvio sabia que tudo era questão de tempo. Quando menos esperasse, viria outra crise e dessa vez podia ser fatal. Por isso se garantia tomando remédios para os rins, mesmo sem recomendação médica.
Sílvio novamente se levantou da cama e foi em direção da porta fechada. Antes que chegasse perto dela sentiu o cheiro. Fungou com o nariz no alto e procurou de onde vinha aquele fedor. Foi na janela e inspirou fundo. Lá fora continuava o mesmo, sem vento, sem som, sem odor.
Era dentro do quarto. Ou de outro quarto.
O cheiro que sentiu era de fumaça. Mas não durou muito tempo, logo voltou o odor antisséptico que tanto gostava.
Olhou de novo para a janela sem vidros e uma luz veio como resposta.
Sua vizinha de quarto era aquela moça que chegou por último. A que queria fumar. Era bem provável que de alguma forma deve ter conseguido um cigarro. E agora estava lá no quarto dela pendurada na janela com um cigarro grudado nos lábios. E jogando aquela fumaça venenosa para o quarto dele.
Isso não ia sair barato. Não entrou na clínica para pegar um câncer ou um enfisema por causa de uma viciada. Uma vez leu uma matéria de uma revista que a maior incidência para ter câncer de pulmão eram dos fumantes passivos. O doutor tinha que saber disso. Não podia permitir que todo mundo corresse esse risco tremendo.
A primeira coisa que faria quando saísse do quarto seria denunciar aquela fumante irresponsável.
II
Vitória... Vitória... Vitória...
Célia mal despertou do sono e um nome veio à sua cabeça. Vitória. Ainda deitada naquela cama que era parecida com a sua cama da infância, ela murmurou baixinho e repetiu:
- Vitória. Vitória. Vitória.
O que estava fazendo? Nunca foi de ficar repetindo nome, principalmente um nome que não tinha nenhum sentido para ela. Não conhecia ninguém que se chame Vitória. Ou conhecia?
Célia levantou-se  da cama  e ficou andando de um lado ao outro pelo quarto enquanto buscava um indício que levasse a esse nome.
- Vitória. Vitória. Vitória.
Foi até a janela. Janela? Um buraco quadrado que dava para um patético jardim. Acostumada com luxo e residindo em uma cobertura duplex de frente para a praia, Célia ainda não conseguia entender o motivo de estar naquele barraco. Por mais que tentasse se lembrar do motivo de ter ido para lá, a única coisa que lhe vinha na cabeça era aquele nome. Vitória.
Isso era coisa dele. Por alguma razão que ainda desconhecia, mas que logo ia descobrir, Alberto estava metido com a ida dela para essa miserável casa. Talvez até tivesse um dedo dele com a decoração do quarto.
Só ele sabia do seu passado. Dos tempos que chorava no travesseiro porque seu pai não tinha dinheiro para comprar um vestido novo para que fosse a um baile ou uma festa. A palavra que mais ouvia quando era adolescente era NÃO, NÃO, NÃO.
Como uma menina de treze, quatorze anos podia se contentar em usar um vestido velho e às vezes até remendado? Seu pai nunca enxergou que ela queria roupas novas, bonitas para não passar vergonha na frente das suas amigas. Seu pai nunca se esforçou para isso, por ele a única filha podia ficar trancada no quarto durante dias a fio que não se importava. "Quer ir no aniversário da Belinha? Use aquele vestido azul. Ele é velho? E daí. NÃO tenho dinheiro sobrando para comprar o vestido que quer. Viu o preço dele? O valor daquele pedaço de pano costurado é metade do salário que ganho. Se não quer vestir o que já tem, então fique em casa. Mas fique no teu quarto. Não quero ficar ouvindo choro de ninguém."
E ela perdeu muitas festas e bailes por causa de roupa. A sua época de adolescência só foi marcado pelas negativas do pai. Foi por isso que passou uma borracha imaginária no seu passado quando conheceu Alberto Bangstorm.
Vitória...
Novamente esse nome. Era como os antigos discos riscados. A agulha da vitrola parava ali e repetia a última palavra da música que se ouvia e se não empurrasse a agulha para a frente, o disco emperrava no mesmo lugar.
- Como se chamava mesmo a esposa do diretor do Banco do Brasil? A que promoveu a festa beneficente no Country Clube? O nome dele é Hermes, mas o dela me fugiu. Será que ela se chama Vitória? Mas por que eu ficar pensando nela? Só a vi nessa festa.
Célia Bangstorm massageou levemente as têmporas com as pontas dos dedos. Em um estalo, lembrou-se que o nome da anfitriã da festa se chamava Eunice.
Agora ficou confusa. E não gostava nem um pouco dessa sensação. Era conhecida na sociedade pela sua memória excepcional e da sua astúcia. Mas nesse momento sentia-se quase insignificante, tudo por causa do nome de uma pessoa que não tinha a mínima ideia de quem era.
Vitória. Vitória. Vitória.
III
Simone já tinha acordado há alguns minutos mas continuava deitada naquele maravilhoso colchão forrado com pétalas de rosas brancas. Sua vontade era de ficar ali para sempre. O delicioso aroma de perfume das flores, a cama que imaginou na noite da sua lua de mel, o arranjo dos buquês espalhados no quarto, tudo isso a deixava em completo estado de êxtase puro, uma sensação que nunca sentira antes na vida.
- Será que isso o que estou sentindo agora é igual a um orgasmo? - ela disse para as paredes do quarto. A ansiedade que sentia pelo dia do seu casamento era tanta que o simples fato de associar o que estava sentindo agora à perspectiva em perder a virgindade que prezava a deixou ruborizada.
Daqui a pouco aquela simpática mocinha que a recepcionou iria chama-la. Mas enquanto ela não vinha, não custava nada continuar ali na cama sonhando com a nova vida que teria ao lado de Gustavo.
Ainda bem que sua mãe não estava com ela. Já sabia de cor e salteado o que ela falaria se a visse ali no quarto:
- Acorda para a vida, menina! Ponha os pés no chão, para de sonhar. A vida não é nenhum mar de rosas ou cor de rosa como acha. A vida é dura, sofrida.
Enquanto sua mãe dizia essas palavras, que entravam por um ouvido e saíam no outro, seu pai vinha ajuda-la.
- Deixa a Simone enxergar a vida como ela quer. Ela tem uma alma pura e o coração bondoso. Não é pelo fato que ela não herdou sua amargura que vai se decepcionar. Não. Ela será muito feliz ao lado do Gustavo. Os dois nasceram um para o outro.
- Simone teve a quem puxar - sua mãe sempre dizia isso.
Talvez sua mãe tivesse um pouco de ciúmes do relacionamento dela com seu pai, principalmente pela ligação forte que os dois tinham. O papel que seu pai desempenhou para sua criação era um fator muito importante. Simone aprendeu com ele da importância de preservar sua integridade. Nunca foi como as colegas da escola que a cada semana tinham um namorado diferente e que antes dos quinze anos já tinham perdido a virgindade. Simone ouviu muitas piadas que as meninas faziam dela. A chamavam de santa, de freira, de burra. Quando alguém vinha lhe dizer o que as outras garotas falavam dela pelas costas, Simone dava de ombros e apenas sorria.
Desde o tempo que ainda estudava no primário já conhecia seu futuro noivo. Eram vizinhos do mesmo bairro e brincavam junto com outras crianças na rua de paralelepípedos. Ela sempre teve uma queda por aquele menino tímido, quieto, magrinho e com os cabelos sempre despenteados, mas nunca imaginaria que um certo dia, quando os dois tinham doze anos, ele fosse se declarar para ela gaguejando. Ela adorou aquela gagueira e aceitou o namoro. E desde então nunca mais se desgrudaram um do outro.
Os dois tinham muito em comum. Eram estudiosos, responsáveis, e acreditavam na virgindade antes do casamento. Gustavo fazia faculdade de administração à noite e durante o dia trabalhava no armarinho dos seus pais. Todo dinheiro que ganhava colocava na poupança e tinha dado entrada para comprar um apartamento. Simone também economizava um pouco do que ganhava como vendedora de uma loja de roupas femininas em um shopping no centro da cidade. Em frente da loja que trabalhava havia uma floricultura, e nos momentos ociosos que não aparecia nenhum cliente, ela sempre dava um pulinho ali para apreciar rosas, margaridas, orquídeas, e tantas outras espécies.
Simone sorriu com as lembranças. Resolveu que era hora de sair da cama, por mais agradável que fosse, e quando ficou em pé, de súbito sentiu uma pontada de dor no ombro esquerdo. Massageou o lugar que estava dolorido e foi até a janela aberta. Admirou o jardim florido ao lado da alameda e contraiu o rosto quando voltou a dor aguda no ombro. Esticou e recolheu o braço e a dor persistia.
- Acho que dormi em cima do braço - concluiu.
Daqui a pouco passaria a dor. Para se manter distraída e esquecer o ombro dolorido, voltou para a cama e para as pétalas de rosa branca. Não demorou muito e do jeito que a dor veio, sumiu de repente.
IV
Pensou que estivesse sonhando, mas quando despertou, a voz da menina parecia que estava no seu lado na cama:
- Mãe! Manhê! Tô aqui, me pega, tô aqui!
Jorge pulou da cama e correu para a janela. Meteu a cabeça para fora e olhou de um lado ao outro. O que via era apenas o mar de verde que se estendia até onde podia enxergar. Mas em algum lugar desse campo podia ouvir a criança berrando:
- Não quero ficar aqui sozinha, mãe! Tô com medo.
Jorge voltou para a cama e intrigado olhou as paredes. O silêncio pesado e absoluto foi quebrado com essa voz infantil. Mas era completamente impossível que tivesse uma menininha perdida naquele campo. O volume da voz era bem nítida. Se estivesse no jardim ele a teria visto. Como ela não estava ali fora, deduziu que a menina estava na casa.
- Mas o que uma criança faz sozinha aqui nessa casa?
Talvez a mãe tivesse vindo com ela e por algum motivo precisou dar uma rápida saída. Pelo tom de voz da menina devia ter três ou no máximo quatro anos. E a maioria das crianças com essa idade detestavam ficar na companhia de estranhos. E era esse o caso da menininha, o desespero de ficar longe da mãe.
- Cadê você, manhê, vem logo, me pega!
Por que aquela moça de uniforme branco não acalma a menina?
- MANHÊ!!!!
Dessa vez Jorge foi agir. Pegou a maçaneta da porta, girou e continuou parado no mesmo lugar.
A porta estava trancada.
Jorge esmurrou a porta e gritou:
- Ei, alguém aí fora, estou trancado, abram a porta!
Colou a orelha na porta e o único som que ouviu foi:
- Estou com medo, mãe...
E também ouviu:
- Papai, fica comigo, não me deixa sozinha...
O desespero tomou conta dele. Reconheceu aquela voz.
- Júlia?  
Novamente fez-se o silêncio. Jorge continuou colado na porta na esperança de ouvir a voz da menina. Mas o único som que ouviuo  foi de passos no corredor.
- Ei, abram a porta.
A maçaneta girou e a porta foi aberta. Jorge encarou a moça sorridente e perguntou:
- Por que trancaram a porta?
- A porta não estava trancada - respondeu a moça.
- Claro que estava. Escutei uma menina gritando e quando tentei abrir a porta ...
- Menina? - A expressão no rosto da moça de uniforme branco era de dúvida.
- Sim, chamando pela mãe.
A moça de branco alargou o sorriso e disse:
- Não tem nenhuma menina na casa, Jorge.
- Como não tem?
- Você devia estar sonhando.
- Sei muito bem que não era sonho. Já tinha acordado.
A moça apenas sorriu e avisou:
- Daqui a pouco vocês serão chamados pelo Doutor. Pergunte a ele sobre o que ouviu. Talvez ele te responda.
- Eu não vou esperar...
A moça pediu licença e fechou a porta. Furioso, Jorge agarrou a maçaneta para abrir a porta de novo.
Estava trancada.
V
Já se tornara hábito. Era despertar do sono e a primeira coisa que fazia era tatear o criado-mudo em busca do maço de cigarros e o isqueiro e antes de se levantar fumava dois ou três cigarros, um atrás do outro.
E foi isso que ela fez agora quando acordou daquele estranho e pesado sono. Com os olhos fechados tateou pela mesinha ao lado e seus dedos não encontraram nenhum cigarro, isqueiro ou o cinzeiro que vivia lotado de guimbas de filtros amarelos. Arregalou os olhos e entendeu que não estava no quarto do apartamento que morava com seus pais e nem em um quarto de motel com um cliente. Estava em uma casa estranha com pessoas estranhas que nunca vira antes e um médico e uma assistente mais estranhos ainda.
E o pior. Não tinha um cigarro para amenizar sua vontade de fumar.
Em um pulo ficou em pé e correu para a porta. Tinha que procurar um lugar que vendesse cigarros. E se não achasse, tinha que encontrar alguém pelas redondezas. Não é possível que estivesse em um lugar onde ninguém fumava!
Pôs a mão na maçaneta mas não teve coragem de abrir a porta. Andou para trás, os olhos fixos na porta e depois se virou e foi para a janela.
Lá fora o céu continuava azul, o sol brilhando e sem nenhum vizinho por perto.
Michelle ainda não entendia direito o porquê de estar em um lugar que não tinha nada a ver com ela. Que raios a prendia ali? E a súbita falta de coragem de fazer uma coisa simples que era abrir a porta para ir embora daquela casa?
Não encontrou respostas para essas perguntas. Quando entrou nesse quarto a mocinha de branco que a recebeu avisara que na hora certa os chamariam para conversar com o tal doutor.
Ficou debruçada na janela olhando o campo verde. Nunca gostou de campo, serra. Achava tudo tedioso, um marasmo. Gostava mesmo era de praia, sol, vinho, iate, cliente rico e generoso...
... mas amava seu noivo. Único a quem se entregou completamente, sem restrições.
A vontade de acender um cigarro diminuiu. Para quem fumava três maços por dia, era um sinal bom. Imaginou seus pais vendo-a agora, sem nada entre os dedos. Ficariam exultantes. Não era sua mãe que sempre dizia:
- Edinalva, larga o cigarro, menina. Você não para de tossir e vê como tá magra.
E ela prometia:
- Vou largar, mãe. Mas tem que ser aos poucos - a promessa era sempre em vão. Passava um dia e no outro ela acordava e fumava três cigarros na cama e abarrotava o cinzeiro de guimbas, que sua mãe limpava a contragosto.
Realmente o cigarro não andava fazendo bem à sua saúde. Mas o que ia fazer? Quando saía da faculdade sempre parava em uma boate da moda, e lá com seus amigos bebiam, fumavam, se drogavam. Isso quando um cliente não ligava para um programa. Aí mesmo que corria mais bebida, cigarro e às vezes drogas.
O que sua mãe falou da magreza dela era verdade. Até o último biquini que comprou ficara largo nela. Se olhava no espelho do armário e podia ver as costelas protuberantes e suas pernas afinando. Seu pai, preocupado, uma vez perguntou se ela sofria de anorexia. Claro que não, respondia enfática. Adorava comer a comida que a mãe fazia e sempre repetia o prato. Mas por mais que comesse, emagrecia na mesma proporção.
- Isso é uma fase - disse para si mesma, enquanto contemplava o campo verde na frente. - É minha genética. Uma hora engordo e tudo volta ao normal.
Pelo menos Eduardo não criticava sua magreza. E nem podia, também era magérrimo.
Escutou a porta sendo aberta atrás dela. Virou o rosto e a moça de branco tinha entrado no quarto.
- Vamos para a sala. O Doutor quer conversar com vocês.
VI
Pelo menos agora havia claridade no quarto. Aquela penumbra cinza dissipou enquanto dormia, mas lá fora o céu continuava na cor de chumbo.
Horácio contemplava o extenso campo e imaginava como podiam construir uma casa - que no caso era uma clínica - no meio do nada. E porque ele estava ali? Por mais que tentasse não conseguia se lembrar de ter agendado aquela visita. Aquele doutor não tinha o perfil dos seus clientes.
Esse doutor parecia honesto. E sem dinheiro.
Por alguma razão que ainda não sabia, foi encaminhado para essa casa. Mas jurava que sua visita nessa manhã seria com outro médico.
Mas se estava lá, com certeza era coisa boa para ele. Não era homem de perder tempo sem lucrar em algum negócio.
- Vou pagar pra ver até onde isso vai dar - ele disse. - Se não funcionar com esse doutor, vou investir em cima daquela velhota. Aquela sim tem grana. Fede a dinheiro.
Escutou a porta abrindo e se virou. Ao invés daquela mulher com olhos amarelos surgiu uma garota com uniforme branco.
- Acabou o plantão da outra enfermeira? - Horácio zombou.
- Que enfermeira?
- O tribufu de olhos amarelados e sem dentes.
A moça de branco estava parada no corredor enquanto ele continuava ao lado da janela. Ele percebeu a dúvida no rosto da garota.
- Aqui não tem ninguém com essa descrição, Horácio. - Antes que ele dissesse algo, ela completou: - O Doutor está chamando. Me acompanhe.
VII
Seis pessoas esperavam na sala, um ao lado do outro sentados em cadeiras. A moça de branco deixou-os lá e entrou em um aposento sem porta. Jorge, sentado na primeira cadeira, podia ver partes do aposento. O médico estava em pé enquanto falava algo com a moça.
- Não lhe disseram que fumar aqui dentro é proibido?
Jorge procurou quem falou aquilo e viu que era o jovem que se queixava de dores quando chegara antes. Sílvio, se não se enganava.
O rapaz apontava o dedo para a última moça que chegou. Ela o encarou e disse:
- É comigo que tá falando?
- Quem mais ficou pedindo cigarro quando chegou?
A moça riu.
- Seu trouxa. Você disse tudo. Eu pedi cigarro mas aqui ninguém fuma.
- Eu senti cheiro de fumaça no meu quarto - Sílvio disse, furioso. - E você estava no quarto ao lado.
A moça deu de ombros. Não parecia disposta em prolongar a discussão com ele.
- Benzinho, essa fumaça pode ter vindo de outro lugar. Vai ver que o doutor foi acender uma fogueira pra queimar mato seco. Pode ter sido mil coisas, mas uma coisa te garanto. Não acendi nenhum cigarro desde que cheguei aqui, não por consideração à você, é porque eu não tinha mesmo. Se tivesse um cigarrinho tinha ido lá fora pra não atrapalhar ninguém.
- Mentirosa - descontrolado, Sílvio gritou. - Conheço o tipo de garota como você.
- Conhece mesmo? Isso duvido. Tem todo jeito que nunca provou da fruta.
- Graças a Deus que não - disse Sílvio, nervoso. Ele torcia os dedos e seus joelhos tremiam como chocalhos.
Jorge decidiu que era hora de acabar com aquela discussão inútil.
- Sílvio, você pode ter se enganado. Como a moça ia fumar se não tem nenhum lugar aqui perto para comprar cigarros?
Sílvio torceu a boca e seus joelhos chacoalharam mais ainda.
- Obrigada. O senhor é muito sensato.
Jorge não sabia se ela agradecia ou apenas o ironizava. Preferiu ignorar qual das opções era a correta e perguntou:
- Alguém ouviu uma menina chamando pela mãe?
Jorge olhou de um a um, então a mulher mais velha que tinha ares esnobes, disse:
- Aqui na casa?
- Creio que sim - afirmou Jorge. - Ela chorava e berrava pela mãe.
- Eu não ouvi nada - disse a moça que se chamava Simone.
- Não vi nenhuma criança nessa casa - disse a mulher esnobe. - Se tivesse uma, com certeza já estaria correndo de um lado ao outro. Se não prestou atenção, essa casa carece de espaços maiores.
- O senhor não estava sonhando? - Simone perguntou.
- Não, estava bem acordado.
- Li em um artigo que algumas pessoas pensam que despertaram do sono mas ainda estão dormindo e acabam confundindo o sonho com a vida real - disse Sílvio. Ele tentava estalar os nós dos dedos, mas o máximo que conseguia era dobrar as falanges em vão.
- Não entendi o que você falou - disse Jorge.
- Chamou o senhor de sonâmbulo - disse a fumante, rindo.
- Não se meta onde não foi chamada - disse Sílvio, virando as costas para ela.
- O menino ficou magoado - ela zombou.
O único que não falou nada foi o gordo que se apresentou como advogado. Jorge tentou lembrar do nome dele. Haroldo... Haroldo...

- O Doutor pediu que entrasse, Horácio - avisou a moça de branco para o advogado.
Continua...

terça-feira, 12 de maio de 2015

A CASA AMARELA CAPÍTULO 2

I
Eles passaram pelo arco e caminharam pelo corredor, onde a moça de uniforme branco e sorridente os aguardava. Ela  apontava para as portas fechadas e dizia:
- Esse é seu quarto, Jorge, e aqui...
Foi orientando todos.
Dentro do quarto, Jorge viu uma cama de solteiro, uma pequena mesa ao lado e uma janela aberta que dava para a frente da casa. Era um quarto simples, muito parecido com aquele que dormia na chácara dos seus avós.
- Só espero que não tenha errado quando vim para cá.
Deitou na cama, sentindo o colchão de palha massageando suas costas.Até o cheiro da palha era igual à cama que dormia quando era criança. A cama não era forrada com lençol e nem tinha travesseiros, mas isso não fazia falta. De repente descobriu que estava cansado, um cansaço que nunca sentira antes na vida. Fechou os olhos e buscou algum som lá no jardim, mas novamente só ouviu o silêncio absoluto. E sem perceber, caiu no sono profundo sem sonhos.

II
Célia Bangstorm ficou paralisada quando entrou no quarto que lhe destinaram. Ela que sempre gabara da sua perfeita saúde, que sua pressão nunca subira ou descera, teve que se conter para não desabar no chão.
O que era aquilo? Que quarto era esse?
Célia não acreditava o que tinha diante dos seus olhos.
- Esse quarto... - ela disse num suspiro de voz - esse quarto é idêntico, uma cópia fiel, do quarto que tive quando tinha... tinha...
Não lembrava agora que idade tinha, mas fazia muito tempo com certeza.
E como era possível que nessa casa, lugar que nunca pisara antes, tivesse um quarto que foi destinado a ela, igual ao que teve na época que ainda era solteira?
A cama de solteiro tinha a cabeceira de madeira envernizada e colchão de molas. Ao lado, um criado-mudo com um abajur rosa, idêntico do presente que ganhou do seu pai. Era um quarto simples, pobre, mas antes de ser a senhora Bangstorm, sua vida não era nem um pouco luxuosa.
Esse tempo de escassez ela fez questão de apagar das suas memórias. E agora diante dela parecia que esse tempo reclamava pela lembrança.
Célia sentou-se na beirada da cama e até a sensação da maciez do colchão era a mesma.  Ela se recusava em deitar ali. Não podia. Não queria.
Mas o cansaço falou mais alto e tomou conta do seu corpo. Logo estava deitada mesmo sem o travesseiro de penas de ganso que costumava usar, e logo fechou os olhos e emergiu num sono profundo.
III
O quarto lembrava bastante ao primeiro quarto de motel que fora com seu noivo. Pelo menos a cama era parecida, Michelle pensou quando se aproximou do móvel. Era uma cama larga, sem lençol, e o colchão era macio e afundava com seu peso.
Sentia falta do cigarro entre os dedos, da fumaça queimando sua garganta, da nicotina correndo sua corrente sanguínea, mas ficou surpresa que dessa vez não estava tendo um acesso de abstinência como acontecia antes quando ficava sem cigarros. Tinha vontade de fumar sim, mas era uma vontade insossa, longínqua.
Até que horas ia ficar nessa casa? Nunca gostou de se atrasar em um compromisso marcado. Imaginou seu celular tocando várias e várias vezes escondido dentro da bolsa. E mensagens dos clientes irados pelo seu atraso.
Uma ideia passou pela sua cabeça e quis afasta-la para bem longe. E se esqueceu a bolsa em casa? O risco era se o celular tocasse e sua mãe ou seu pai abrisse a bolsa para atender a chamada. E ali ela guardava sua caderneta com os nomes dos clientes fieis. O que seus pais pensariam disso?
- Nem quero pensar - ruminou enquanto se deitava naquele macio colchão.
Por mais que tentasse explicar os verdadeiros motivos, seus argumentos dissipariam feito vapor aos ouvidos dos velhos. Por isso esperava que tivesse deixado a bolsa em outro lugar, até na casa de um cliente se fosse o caso.
- Não vou sofrer por antecedência - Michelle murmurou antes que caísse em um sono pesado.
IV

A primeira coisa que ele fez quando entrou no quarto foi conferir se a janela estava bem fechada. Para seu desespero, a janela estava aberta e pior, não tinha nenhum vidro para proteger dos ventos.
Sílvio correu de volta para a porta do quarto mas no instante que tocou na maçaneta, sentiu calor. Muito calor.
Largou a maçaneta e suspirou aliviado. Mesmo que a janela fosse apenas um quadrado escancarado para o lado da casa onde via um mar verde de mato, se estivesse ventando lá fora pelo menos não entrava ali.
Isso era bom. Sempre dizia para sua mãe que com saúde não se brinca. E como sabia que sua saúde era bem frágil, ele sempre procurou auxílio dos médicos para que descobrissem qual doença tinha.
Pelo menos agora se sentia mais protegido dentro da clínica. Finalmente entenderam que sua saúde era péssima e que precisava de um tratamento bem rigoroso.
O quarto era simples, tinha apenas uma cama e uma mesinha ao lado. Estranhou que não houvesse nenhum remédio na mesa, nem um simples comprimido para dor de cabeça. Julgou que a enfermeira viesse depois com os medicamentos;afinal, mal chegara na clínica e o doutor ainda tinha que ler nos relatórios que tipo de remédio podia administrar.
Deitou-se no colchão ortopédico, ótimo para sua coluna atrofiada, e cruzou os dedos em cima do peito. Logo a enfermeira vem com meus remédios, logo vou ser medicado corretamente, logo o médico vai dar seu diagnóstico, logo...
Caiu no sono.
V
O quarto estava escuro e encoberto por uma penumbra cinzenta. Horácio procurou o interruptor de luz, mas não encontrou em nenhum lugar naquelas paredes descascadas.
Além da penumbra, o quarto cheirava mal. Horácio foi até a janela aberta e inspirou o ar no lado de fora, mas não adiantou muito, ali também fedia.
A primeira providência que tomaria quando saísse do quarto seria fazer uma queixa formal a respeito daquele aposento sujo. A vista foi se acostumando com a escuridão e distinguiu teias de aranhas e buracos nos rodapés. Ratos, aranhas e com certeza baratas. Onde foi se meter.
Mas se eles achavam que ia desistir e ir embora da casa estavam completamente enganados. Não era um cheiro ruim ou insetos que o assustaria. Não...
Por que já passou por isso uma vez e sobreviveu.
Sentiu o corpo pesado, cansado. Engraçado, quando chegou na casa não se sentia tão cansado como agora. Provavelmente era o calor que fazia ali dentro. Pela janela escancarada não entrava nenhuma brisa. Via somente o jardim esturricado e o céu da cor de chumbo, mas sem nenhuma nuvem carregada.
Decidiu deitar um pouco naquela velha cama, e o contato dos estrados nas suas costas não o incomodou. Mesmo deitado arfava como estivesse correndo.
Sentiu o peso nas pálpebras e logo fechou os miúdos olhos e caiu em um sono pesado, sem sonhos.
VI

A alegria tomou conta de Simone quando viu seu quarto decorado com vários buquês de flores espalhados pelo aposento.
Quando chegara na casa já tinha tido a alegria de ver uma alameda florida e agora algumas flores do jardim estavam ali para recepciona-la.
E a cama... Simone pôs as mãos na boca para abafar o iminente grito. Centenas de pétalas de rosas brancas enfeitavam o colchão, e o perfume emanava no ambiente.
Tudo era um sonho, mas um delicioso sonho, pensou ela enquanto deslizava para a cama e se embrenhava nas pétalas, esfregando no rosto e nos braços. Uma vez sonhou que o noivo fazia essa surpresa para ela na noite de núpcias e esse agora o sonho era realidade.
Para que tudo ficasse perfeito só faltava o canto dos passarinhos, mas mesmo com o céu azul sem nuvens e o sol brilhando, o silêncio lá fora era perturbador.  
Não sabia por quanto tempo permaneceria na casa, mas só esses momentos mágicos bastariam para que se lembrasse para sempre dessas maravilhosas horas que esteve ali. Quando ela e seu futuro marido estivessem bem velhinhos, contaria aos seus netos e bisnetos da casa amarela, o lugar que descobriu sua felicidade.
Emaranhada de pétalas das rosas brancas pelo corpo inteiro, Simone pegou no sono e dormiu com um sorriso nos lábios.
VII
- Eles estão dormindo, Doutor - a moça de uniforme branco comunicou.
- Eu sei - comentou o Doutor. Os dois estavam em um aposento de paredes brancas onde só haviam duas cadeiras, uma em frente da outra, de mobília. A porta do aposento estava aberta e mostrava o corredor com seis portas fechadas. - A partir de agora algumas coisas vão acontecer com eles, e é claro que ficarão confusos.
- Mas o Doutor vai ajuda-los - disse a moça sorrindo.
O Doutor também sorriu.

- Claro que vou ajuda-los. É para isso que estou aqui. 

Continua...

segunda-feira, 11 de maio de 2015

A CASA AMARELA CAPÍTULO 1

I
Quando deu por si percebeu que estava parado em frente do pequeno muro branco que cercava a casa amarela. Por um momento continuou ali em pé, curioso com aquele local. Sentiu uma leve brisa refrescando seu rosto apesar do céu azul sem nuvens. Olhou para os lados e viu que não havia nenhuma casa vizinha. Tirando aquela casa amarela, um vasto campo de um verde vivo e fulgurante enfeitava o bucólico lugar.
O que mais chamava sua atenção era o silêncio que imperava no lugar. Não ouvia nenhum canto de pássaro, nem zumbido de inseto, nem o som do restolhar das folhas. O silêncio era absoluto, quase palpável.
Atravessou pelo portão aberto e caminhou lentamente pela alameda ornamentada por pedrinhas circulares que massageavam seus pés descalços. Do portão até a varanda da casa nem trinta metros chegava, e ele anotou mentalmente o mato que contornava a alameda. No decorrer dos seus passos a brisa no seu rosto cessou de repente. Mas apesar do sol não sentia calor.
Chegou no final da alameda e subiu os três degraus que levavam até a varanda aberta, desprovida de qualquer objeto e de móveis. Viu a porta da frente aberta e a moça de uniforme branco, sorrindo.
Calculou que ela não devia ter mais do que vinte anos. Não era bonita, mas tinha um luminoso sorriso. Quando ficaram frente a frente, a moça de uniforme disse:
- Seja bem vindo, Jorge. - Ela apontou para o interior da casa amarela. - Se acomode em qualquer cadeira. Os outros já estão vindo.
Ele continuou no mesmo lugar, surpreso.
- Fui o primeiro a chegar?
A moça de uniforme concordou.
- Dessa vez não vou ouvir Gilda reclamando dos meus atrasos. - Jorge riu e entrou na casa. Quando pisou na sala, o sorriso morreu nos lábios.
- Não é possível - Jorge murmurou, espantado com o que viu. - A sala é muito parecida... Não, quase idêntica à casa dos meus avós...
Diante dos seus olhos viu uma sala de tamanho médio com uma mesa de madeira no formato oval, cadeiras com encostos e assentos de palhas organizadas lado a lado pelas paredes nuas. No lado direito tinha um arco que dava para o corredor com várias portas fechadas. O cheiro de casa antiga instigou suas memórias afetivas.
Ouviu a moça de uniforme falando atrás dele:
- Pode escolher qualquer dessas cadeiras, Jorge. Quando todo mundo chegar, o Doutor virá atende-los.
- Essas cadeiras me lembram tanto quando visitava a chácara dos meus avós. Estou impressionado com a semelhança delas - Jorge divagou. A moça não comentou nada, ela voltou para o seu lugar na varanda, deixando ele sozinho.
Ouviu a moça falando da varanda:
- Por aqui, seja bem vinda, Simone.

II
Quando ela atravessou o portão e pisou na alameda em direção da casa amarela, colocou as mãos na boca para conter o grito e fascinada, arregalou os olhos. Seu fascínio era tanto que sentiu uma leve e doce tontura. Mesmo com as pernas tremendo foi andando pelo jardim da alameda.
Havia uma infinidade de flores que não sabia qual ia admirar primeiro. A variedade era imensa em cores e fragrâncias. Simone viu rosas vermelhas, rosas amarelas e brancas, camélias, margaridas do campo, orquídeas, crisântemos, e mais um tanto, tão bela como todas, que precisaria de uma enciclopédia botânica para poder distingui-las uma a uma.
Simone não  se conteve e ajoelhou-se ao lado de um buquê de chuva de prata, flor com pequenos botões branco, fina, delicada, muito usada para dar acabamento em buquês e arranjos de casamento. Passou levemente os dedos pela flor e ficou inebriada. Estava tão compenetrada que mal ouviu seu nome sendo chamado. A contragosto ergueu os olhos e viu uma moça que devia ter sua idade na varanda da casa acenando para ela.
Simone levantou-se bem devagar e mesmo de pé continuou admirando a pequena flor. Só depois que ouviu a moça a chamando novamente seguiu em frente. Quando se aproximou dos degraus que levavam à varanda virou o rosto para trás para dar mais uma olhada nas flores.
Ela subiu os degraus e a moça de branco disse:
- Seja bem vinda, Simone, por favor, entre e sente-se, assim que todos chegarem, Dr. Carlos virá recebê-los.
- Essas flores - disse Simone, - são fantásticas!
- São seus olhos.
- Não, é verdade. Nunca vi tantas espécies diferentes juntas no mesmo lugar.
A moça de uniforme branco sorriu e apontou para dentro. Simone entrou pela porta e viu um homem sentado em uma cadeira. Ao lado dele tinha uma mesa forrada com uma toalha rosa clara com flores campestres desenhados à mão. Sobre a mesa, um vaso vazio.
 Cumprimentou o homem com um simples e tímido aceno e sentou-se na cadeira ao lado.
Estudou a sala. Gostou da cor das paredes, de um creme discreto, do quadro pendurado que mostrava um campo de margaridas e das cortinas nas janelas.
- Já veio aqui antes? - O homem sentado ao seu lado quebrou o silêncio.
- Não - Simone respondeu, mantendo a voz em um tom baixo. - Mas se soubesse que tinha esse lindo jardim, teria vindo.
- Para mim é um jardim igual a tantos outros. - O homem comentou.
Quando Simone ia replicar, ouviu vozes no lado de fora da casa.

III
Célia torceu o nariz quando atravessou o portão. Pisava com cuidado enquanto caminhava naquela alameda forrada de pedras sujas, e esnobou o pequeno jardim que tentava a todo custo enfeitar aquela casa horrorosa. Quando subiu os degraus para a varanda, deu uma parada para pegar seu lenço de seda na bolsa. Viu que não tinha bolsa pendurada no seu ombro. Estranho. Nunca saía de casa sem a bolsa e seus documentos. 
Na sua frente viu a moça de uniforme branco sorrindo para ela. Célia fechou a cara, contrariada.
- Seja bem vinda... - disse a menina, mas foi cortada abruptamente:
- Pode anunciar que Célia Bangstorm chegou?
- O doutor está aguardando a senhora. - disse a moça sorridente, não parecendo contrariada de ter sido cortada.
Célia olhou-a de cima para baixo e avaliou-a como se fosse um objeto sem valor. Achou que fosse a criada da casa, mas o modo dela ali, sorrindo, não lhe agradou. Se fosse sua empregada, a primeira providência seria que nunca, mas nunca mesmo, devia exibir os dentes para um convidado.
- Mas como não se faz mais empregados como antigamente... - disse Célia, passando pela moça, exibindo sua elegância e altivez.
Avaliou o casal na sala e mais uma vez fechou a cara.
- Onde fui me meter..., pensou em voz alta.
- A senhora pode escolher uma cadeira... - comunicou a moça.
- Essas cadeiras estão limpas? Pelo jeito...
A moça não respondeu, teve que voltar logo para a porta da frente.
Ainda em pé, Célia avaliou aquela sala. Uma mesa comum com uma montanha de revistas em cima. Nem precisava pegar um exemplar para saber que a edição mais nova de uma dessas revistas devia ter uns cinco anos. Um arco levava para um corredor escuro com várias portas enfileiradas fechadas.
- Desde que me dou por gente não pisava mais nessas clínicas populares.
Se dirigiu até uma cadeira, a mais afastada daquele casal estranho que não tirava os olhos em cima dela. Automaticamente pôs a mão no braço e mais uma vez percebeu que estava sem bolsa.
Deu uns tapinhas no assento da cadeira para tirar qualquer partícula imunda de poeira e só depois que julgou estar aceitável sentou-se empertigada com o queixo levantado e os olhos analisando o estranho ambiente.
O silêncio reinava na sala até o momento que ouviu a voz rouca falando alto lá fora na varanda.
IV
- Horácio, seja bem vindo - disse a mulher de uniforme branco.
Ele ainda se sentia meio atordoado. Não lembrava que tinha marcado uma visita nessa casa. Quando viu, atravessava o portão enferrujado pendurado toscamente pelo muro de cimento cru e depois caminhou lentamente por aquela alameda cinza, de terra batida, com plantas amareladas e murchas.
O céu acima também estava da cor de chumbo, mas não tinha nenhuma nuvem carregada. Depois que atravessou, subiu os degraus de madeira podre e parou, ofegante, diante de uma mulher de cabelos oleosos e olhos amarelados como se tivesse icterícia
- Aqui? - ele perguntou com sua voz de barítono. - Tem certeza que não errei de casa?
Horácio se contraiu quando a mulher sorriu. Faltavam-lhe três dentes na frente e o resto eram amarelados e cobertos de tártaros.
- Aqui mesmo. O Doutor está à sua espera.
- Me disseram que era uma mansão. E isso aqui é uma casa caindo aos pedaços... e amarela! Olha essas paredes descascando. Deve estar infestado de aranhas e ratos. Não, com certeza errei. Vou conferir na minha agenda, vou te mostrar.
Levantou as mãos e olhou-as, mais assustado ainda.
- Onde está minha pasta? - Horácio perguntou, irritado. Mas não obteve nenhuma resposta vinda daquela mulher estranha.
Como ela apenas se limitou a sorrir, ele passou rápido e por pouco não esbarrou nela.
Horácio irrompeu na sala, e seu desagrado aumentou. Onde estava os móveis da casa? O que via ali era apenas uma velha e carcomida mesa e cadeiras espalhadas pelo sala. E três pessoas que nunca viu na vida.
- Acho que vim no endereço errado - repetiu, nervoso. - Não me lembro que tenham me falado que era nesse casebre.
A mulher sorridente e banguela disse atrás dele:
- O senhor está no lugar certo, Horácio.
Ele se virou para ela e ergueu o indicador.
- Não me lembro se dei permissão pra que me trate com essa intimidade, senhora. Prefiro que me trate como doutor. Sou advogado e só estou à espera da minha nomeação para Procurador do Estado para...
A moça de uniforme branco o interrompeu:
- Pode escolher uma cadeira, tenho que receber outra pessoa.
Ela deu as costas e foi para a varanda. Uma coisa que Horácio mais odiava era ser interrompido enquanto falava. Observou as três pessoas sentadas no canto da sala. Tinha um homem com cara simplória, com todo jeito de ser um zero à esquerda. Ao seu lado uma mocinha o encarava com curiosidade.Parecia zangada com ele. Vai ver que não gostou do meu jeito, pensou. Em uma cadeira mais afastada uma velha olhava para o teto. Essa tinha jeito de ter muito dinheiro. Horácio aproximou-se dela, puxou a cadeira ao lado e disse educadamente:
- Com licença.
A velha nem se deu ao trabalho de responder, continuou fitando o teto como se não estivesse ali.
Sem sua pasta ele se sentia perdido. Se ao menos tivesse a agenda com ele poderia puxar assunto com a ricaça. Sabia que era bom de papo e pessoas caíam na sua lábia, e provavelmente essa velha também cairia na sua rede. Horácio vislumbrou a chance de faturar em cima dela.
- Vamos ver aonde isso vai dar - disse para si mesmo.

V
Sílvio estava confuso. Nunca foi convidado para uma festa de aniversário, para ir ao cinema com uma garota ou para passar um final de semana na casa de praia de algum amigo ou parente. Na verdade, nunca teve um amigo de verdade ou uma namorada. E nunca foi convidado para nada, já que sua vida só se resumia a uma coisa: Visitar médicos ou ficar internado por conta do plano de saúde.
Mas para sua surpresa era esperado na casa que  à sua frente. Indeciso, não sabia se precisava tocar a campainha ou bater palmas. Nem precisou nada disso; o portão estava aberto. Mais adiante, no fim de uma pequena alameda, uma bonita moça de jaleco branco acenava para ele. Ficou em dúvida se era para entrar ou não. Apontou para si e perguntou:
- Eu?
A moça concordou com a cabeça. Receoso, atravessou a alameda em passos tímidos e nervosos e observou o jardim em volta. Ficou preocupado com tanta vegetação. Com tantas plantas e flores era o refúgio perfeito para todos tipos de insetos. Coçou o braço nervoso. Só em pensar nisso começava sua alergia.
 Chegou na varanda e ansioso, perguntou:
- A casa é bem protegida?
- Protegida como? - Perguntou a moça.
- Tenho alergia ao vento e a mosquitos.
- Não se preocupe com isso, Sílvio.
- Como não vou me preocupar? É minha saúde que está em jogo. Por isso sempre ando com um antialérgico...
Sílvio ficou mudo. E com falta de ar. Não viu o estojo de remédios que levava sempre a tiracolo. Apavorado, gemeu:
- Sem meus remédios posso ter um ataque cardíaco ou um derrame... Não sei onde posso ter deixado meu estojo!
A moça de jaleco branco apontou a sala e sorrindo disse:
- Não fique preocupado, Sílvio. Se acomode em uma das cadeiras; assim que o Doutor chegar, poderá falar com ele sobre isso
- Quem é esse doutor?
A moça sorriu.
- Ele vai lhe dizer.
Sílvio sentiu uma ponta de alívio quando soube que falaria com um médico. Sua memória andava falhando. Como foi se esquecer que iria para uma clínica de repouso?
Sílvio entrou na sala e gostou do que viu e cheirou. O ambiente era claro e antisséptico, com uma mesa forrada de toalha de linho branca, cadeiras também brancas e um leve aroma de éter.
Fiscalizou, temeroso, os quatro pacientes que chegaram antes dele. Não pareciam tão doentes como ele. Mas doenças são traiçoeiras, ficam escondidas esperando o momento de distração para se declarar. As pessoas podiam parecerem saudáveis, mas se estavam ali na clínica, com certeza queriam se precaver como ele.
 Puxou a cadeira ao lado de um sujeito que devia sofrer de obesidade mórbida e sentou com as mãos entrelaçadas e os joelhos tremendo.
- Espero que à noite não faça muito frio. Me resfrio facilmente.
O sujeito obeso lhe lançou um olhar estranho. Sílvio não gostou nada disso. Abaixou a cabeça, juntou as mãos em punho na testa e balançou mais ainda os joelhos, a ponto de chocarem um ao outro.
VI
Michelle avaliou a casa amarela. Era cercada por um muro que devia medir um metro ou menos e tinha um portão de madeira aberto que dava para uma trilha calçada de terra marrom e seca. Pisou com cuidado para não levantar nenhuma poeira e sujar sua roupa, mas conforme ia pisando a terra continuava incólume, firme. Caminhou com desenvoltura pelo caminho, como sempre decidida, confiante que fazia sempre o melhor.
Normalmente os encontros eram em lugares mais discretos, bem longe de olhares curiosos. Verificou se havia outras casas vizinhas e não viu nenhuma por perto. Até onde sua vista alcançava era um mar verde de capim rumo ao infinito.
O sol resplandecia mas ela não sentia calor. O clima era agradável, com um vento suave tocando seus cabelos castanhos que tanto admirava.
Procurou seu espelho para certificar que sua maquiagem não tinha borrado, mas não encontrou espelho e nem sua bolsa. Olhou para trás, além do portão de madeira, para ver se sua bolsa tinha caído, mas não vislumbrou nada, só o mar de grama sacudida pelo vento que corria.
Michelle deu de ombros. Tinha mais coisas para se preocupar do que um simples borrão de batom ou um risco errado de lápis nos olhos. O tempo para ela significava dinheiro, e não ia perder muito tempo nessa casa.
Subiu os degraus gingando as cadeiras até a varanda onde uma garota, quase da sua idade, a aguardava sorrindo.
- Seja bem vinda, você pode entrar e sentar que o Doutor ...
Michelle ajeitava os cabelos quando cortou-a:
- Queridinha, não vou poder demorar muito porque tenho outros clientes para atender.
- Bem, quanto a isso, o Doutor...
- Então o chame logo que estou com pressa - Michelle cortou-a novamente e quando passou pela porta, estancou.- Ué? Quem são aquelas pessoas na sala? - perguntou quando viu três homens e duas mulheres sentados em cadeiras de couro.
A moça sorridente respondeu:
- Também esperam o Doutor.
- E vou fazer programa com eles? - Michelle perguntou, assustada.
- Aqui ninguém vai fazer programa, Michelle.
- Me disseram que...
- Entre e sente naquela cadeira que está vaga, por favor. - A moça de sorriso fácil disse gentilmente, mas Michelle percebeu um tom firme na voz e resolveu obedecer sem retrucar mais.
Michelle atravessou a sala e passou pelas pessoas sentadas com seu jeito desenvolto. Estudou um a um e percebeu que não tinham perfil de quem faziam programas. Sentou-se na cadeira vazia ao lado do sujeito com cara de honesto, cruzou as pernas e tateou os lados do corpo, onde sempre guardava um maço de cigarros nos bolsos da calça comprida. Mais uma vez não achou nada.
- Droga, esqueci meus cigarros - disse para si mesma. Virou-se para o sujeito ao lado e perguntou: - O senhor fuma?
O homem respondeu, seco:
-  Nunca fumei.
- E espero mesmo que ninguém fume aqui dentro - disse outro sujeito, esse mais novo. - Além de ser proibido fumar em lugar fechado, tenho alergia a fumaça de cigarro.
- Pela ausência de cinzeiros, com certeza ninguém pode fumar aqui dentro - opinou a mulher que parecia ser a mais velha do grupo.
- Sem estresse. Vou lá fora e fumo - disse Michelle. - Algum de vocês sabem me informar onde posso comprar cigarros?
A moça sentada depois do sujeito com cara de honesto respondeu:
- Não vi nenhum bar e nem padaria aqui perto.
- Só vi um grande descampado. Sem nenhum sinal de vizinhos - disse o homem gordo.
- Tem razão, só vi um campo - disse o rapaz alérgico.
- Tirando essa casa, não vi mais nada a não ser o campo de flores - disse a moça.
- Droga - disse Michelle. - É mesmo. Quando fui ver se tinha esquecido minha bolsa, também não vi nada.
O homem gordo exclamou:
- Como isso pode ser explicado? Estamos isolados no meio do nada?
A moça sorridente veio da varanda e anunciou:
- O Doutor está chegando.
Seis pessoas olharam curiosas ao mesmo tempo na direção da porta da frente.
VII
O Doutor era alto e magro e tinha os cabelos grisalhos. Grossas sobrancelhas enfeitavam olhos claros e vestia camisa e calça branca como a moça sorridente que os recepcionou na varanda. Ele bateu palmas e disse, alegre:
- Muito bom que já chegaram. Estou feliz com a presença de vocês.
A impressão que o Doutor  causou em Jorge era de um homem simples, franco, simpático.
Já Simone achou-o atraente e bonito.
Célia torceu o nariz. Ele podia ser tudo, menos um doutor.
Haroldo analisou o homem como um provável cliente.
Sílvio teve esperança que ele fosse um bom médico.
Michelle se decepcionou. Aquele homem não tinha nenhum jeito de que fazia programas.
O Doutor estendeu a mão para apertar as mãos do grupo sentado nas cadeiras, mas Célia se recusou a dar a sua. O Doutor não se mostrou chateado com aquela recusa e se apresentou:
- Eu me chamo Carlos.
Jorge ergueu o dedo.
- O senhor me desculpe, mas não conheço...
Carlos levantou as palmas para cima,  sorriu e respondeu:
-  Eu sei que vocês não me conhecem. Ainda - enfatizou. - O importante é que eu os conheço.
- Sério? - Sílvio perguntou. - O senhor é médico em que especialidade?
Ainda parado no mesmo lugar e com a moça sorridente ao seu lado, o Doutor disse:
- Vou responder a todas perguntas que queiram me fazer, mas isso será mais tarde. Vocês devem estar cansados da viagem que fizeram. Precisam descansar um pouco, por isso mandei que preparassem seus quartos.
- Xiii... - fez Michelle, balançando a cabeça. Olhou seu pulso para ver as horas e notou que também esquecera do relógio. - Não sei se vou poder ficar tanto tempo aqui, eu...
Com uma voz suave, mas ao mesmo tempo autoritária, o Doutor disse:
- Você tem todo tempo do mundo. Eu só quero agora é que descansem da viagem. Acreditem, vocês tem que repousar.  Depois vou conversar com vocês.
- Aqui é uma clínica de repouso? - Perguntou Sílvio, esperançoso.
O Doutor não respondeu. Apontou o corredor e disse:
- Vão para os seus quartos agora e se acomodem. Logo vou chamar  um em um para conversarmos.

Continua...