-Papai, quero fazer xixi.
Egídio, o motorista, me entregou a identidade e a certidão e disse:
- Boa viagem para vocês.
- Obrigado.
Entramos, nos acomodamos nas nossas poltronas, e levei minha filha no banheiro do ônibus. Depois, fiquei sentado ainda na expectativa de que ia sair errado. Não acharia nada anormal se no último instante a polícia viesse em comboio e invadisse o veículo com fuzis, pistolas, para minha prisão. Mas o que aconteceu mesmo foi o ônibus começar a rodar devagar, saindo da rodoviária, e dando início a nossa fuga.
Estavam parados num congestionamento que chegava a dez quilômetros, na estrada
para Itarantitim. Roberta acordou e agora chorava de fome. O choro dela
estava deixando Júlio nervoso. Quase todos passageiros do ônibus tinham
descido, e tirando eles, só duas pessoas continuavam em seus lugares. Um deles era um
homem de uns quarenta anos, com um chapéu enfiado na cabeça e um rádio de pilha
colado no ouvido e outra uma mulher de meia-idade, que estava em pé no
corredor. Ela viu Júlio e aproximou-se. Era uma mulata de quadris largos, e
pelo jeito, muito falante:
-
Que coisa, senhor. Vira e mexe sempre acontece alguma coisa nessa estrada.
Júlio
deu um sorriso anêmico, tentando explicar que não queria conversa com ninguém.
-
E o pior que não passa nenhum ônibus na pista do lado. Se pelo menos passasse,
eu voltava para a rodoviária...
Roberta
disse:
-
Pai, estou com sede.
Antes
que Júlio falasse, a mulata disse:
-
Tadinha da sua filha. Também, com o calorão aqui dentro! Eu tenho um pouco de
água, sempre carrego uma garrafa de um litro e meio. Espera que titia vai
pegar, minha linda.
Ela
foi e voltou com uma garrafa pela metade. Júlio agradeceu, e Roberta fez o
mesmo. A mulata riu e disse:
-
Como sua filha é linda. Tem quantos anos, meu bem? Aposto que tem cinco, é
a idade da minha neta mais nova...
Júlio
interrompeu:
-
Muito obrigado pela água, senhora, mas eu queria dormir um pouco.
-
Ah, como sou inconveniente. Desculpa, sei que gosto de falar, e às vezes falo
bastante...
Roberta
riu. A mulata completou:
-
Ainda bem que sua filha está bem protegida aqui com o senhor. Soube do caso de uma menininha da idade dela que foi sequestrada? A polícia está caçando o
desgraçado. Espero que ele não tenha feito nada de mal com ela. Hoje de manhã, vi a mãe da menina no Cidade Cidadão. Pobre moça. Como está sofrendo com
esse sequestro. Meu coração se despedaçou quando ela suplicou para que o
bandido não fizesse nenhum mal a pobrezinha...
Júlio
perguntou, assustado.
-
Mãe da menina?
-
Isso, moço. Ela deu uma entrevista no hospital. Levou um tiro, mas o desgraçado
não acertou nenhum órgão vital. Ela disse que foi o homem que vivia com ela
que cometeu essa atrocidade. Falou que descobriu que o safado abusava da sua
filha, e que ia denuncia-lo quando levou o tiro. Estou rezando que esse
desgraçado seja preso logo. Na cadeia, os presos vão saber tratar dele.
-
Onde foi isso?
-
Lá no Rio de Janeiro.
-
E essa reportagem saiu hoje?
-
Foi - disse a mulata, sentando-se no braço da poltrona vizinha - Fiquei chocada
com a pobrezinha suplicando, chorando, rogando que sua filha Roberta volte para casa. Até para quem
levou um tiro está bem. Mas ainda está no hospital. Eliana, Eliane, Elaine...
esse é o nome dela...
-
É o nome da minha mãe - disse Roberta.
-
Que coincidência - disparou Júlio, cortando sua filha. - Eu acho que li algo
no jornal...
-Está
em todos noticiários. O safado não vai escapar.
- Hoje não assisti o noticiário.
-
Não? Passou em todos jornais. Olha, sempre digo: quando um crime é desvendado,
aparece outro pior que antes. Mas com certeza esse vai entrar na história, pela
barbaridade...
E
Júlio ouviu a narração da mulata e visualizou toda cena, pelo teatro encenado
por Elaine:
Nesse momento, um canal de TV
exibia a reprise da entrevista dentro do programa Cidade Cidadão - o jornal que preserva seu povo.
A repórter Clarice Nunes estava no
quarto do hospital municipal ao lado da vítima, Elaine Berilo. A vítima estava
sentada numa poltrona, de camisola, mas era visto a atadura em volta do seu
tórax, na altura dos seios. Tinha olheiras fundas, e ainda se recuperava do
tiro que levara.
Repórter:
- A senhora teve sorte de ter
escapado com vida.
Elaine:
- Se tive! Sabe o que é olhar para
o cano de uma pistola e sentir que a morte quer te abraçar?É uma sensação
horrível, e isso aconteceu comigo, vindo de um homem que nunca imaginei o
monstro que era.
R:
- Nunca suspeitou do seu
companheiro?
E:
- Nunca. Sabe o tipo de homem
romântico, que manda flores, liga toda hora? Era ele. Tudo disfarce.
Enquanto eu recebia buquês de rosas no meu trabalho, ele ficava em casa
abusando da minha filha.
R:
- Então ele não é o pai biológico?
E:
- Não, quando fomos morar juntos,
já estava grávida.
R:
- E o pai?
E:
-Não tive mais notícias dele.
Parece que voltou para o Norte, sua terra natal. Mas Júlio sabia da minha gravidez,
e me prometeu que cuidaria da criança como se fosse sua. Eu (lente da câmera
focando os olhos dela, as lágrimas escorrendo lentamente)agradeci a Deus pelo
homem que entrava na minha vida. Minha família gostou dele de cara, e ele se
mostrava o pai dedicado. Durante esses anos eu era a mulher mais feliz do
planeta.
R:
- E o que a fez desconfiar do seu
companheiro?
E:
- Minha filha. (O foco é só na
entrevistada. A lente da câmera mostra uma mulher frágil, que segura um terço,
com olhos de desespero. Na tela azul no canto da tela, está escrito: MULHER
ESCAPA DA MORTE E MONSTRO SEQUESTRA MENINA DE CINCO ANOS) Na semana passada,
Júlio teve um problema de família e precisou viajar. Quando fui dar banho na
minha filha, percebi uma manchinha roxa na coxa direita dela. Perguntei o que
era, mas ela não queria me responder. Pensei que ela tivesse caído da gangorra
no parquinho do bairro, mas ela só balançava a cabeça. Tive um pressentimento
horrível, e perguntei se era o papai. Ai, meu Deus, ela só me olhou, e quando
vi os olhinhos dela cheios de lágrimas, também chorei.
R:
- Por quê a senhora não ligou ou
foi para a polícia quando viu as manchas?
E:
- Eu ia fazer isso, mas na hora
fiquei em dúvidas. Pensei; vivo com uma pessoa que nunca se mostrou um monstro.
Preferi então espera-lo para perguntar. Esse foi o meu erro. Quando perguntei a
ele sobre a mancha, claro que ele negou. Mas minha filha teve a coragem de
acusa-lo, na lata. Ele ficou nervoso, me ameaçou, mas eu disse que ia
denuncia-lo. E foi aí que ele mostrou a face do monstro que é. Pegou uma arma,
que eu nem sabia que tinha aqui em casa, e atirou em mim. Eu tive que fingir
que havia morrido, pensando que o covarde ia fugir, mas ele pegou Roberta e
levou. Agora, estou apavorada com a ideia que ele possa estar fazendo com ela
agora. Se ela... se ela estiver viva (mais lágrimas) peço que ele a solte, a
deixe em algum lugar para que alguém a ache e ela volte para casa. Infelizmente
essa é minha esperança, mas acredito que ele esteja abusando dela e ... nem
quero pensar no pior...
Muda a cena. Entra o apresentador
do programa, que berra, revoltado:
- A polícia precisa encontrar esse
monstro o mais rápido possível, cada minuto que está passando é mais um risco
de encontrarmos a pobre refém morta... Esse monstro merece a pena de morte, ele
não é humano, nem era para ter nascido... (parou de falar, como se estivesse
ouvindo algo no seu ponto eletrônico. Sorriu e voltou a berrar)Tive informações
agora que ele foi localizado. Uma testemunha que não quer se identificar com
medo de represálias garante que o viu, junto com Roberta, em um ônibus que
seguia para Santopolis, cidade no interior da Bahia. Ela desconfiou dele, mas o
desgraçado notou e na primeira parada pegou um ônibus para Itarintitim, conforme
registros das passagens compradas. E esse ônibus está preso em um
congestionamento por causa de um acidente entre dois caminhões. Uma força
policial foi designada a ir para o local, e já avisou a polícia rodoviária...
Júlio
ouviu barulho de sirenes vindo de fora. A mulata ainda falava do
programa que tinha visto, e ele olhou a estrada pela janela ao lado do assento
de Roberta. A sensação que sentiu foi confirmada agora. O pegaram. Não tinha
como escapar dali, preso no engarrafamento, e não ia colocar sua filha em
risco. Principalmente agora que soube que Elaine sobrevivera ao tiro.
Continua: Amanhã, último capítulo da série.
Rogerio de C. Ribeiro
Continua: Amanhã, último capítulo da série.
Rogerio de C. Ribeiro