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quinta-feira, 31 de julho de 2014

DESTINO:INCERTO CAPÍTULO 4

No capítulo anterior: Ao que Roberta levantou a cabeça para mim e disse:
-Papai, quero fazer xixi.
Egídio, o motorista, me entregou a identidade e a certidão e disse:
- Boa viagem para vocês.
- Obrigado.
Entramos, nos acomodamos nas nossas poltronas, e levei minha filha no banheiro do ônibus. Depois, fiquei sentado ainda na expectativa de que ia sair errado. Não acharia nada anormal se no último instante a polícia viesse em comboio e invadisse o veículo com fuzis, pistolas, para minha prisão. Mas o que aconteceu mesmo foi o ônibus começar a rodar devagar, saindo da rodoviária, e dando início a nossa fuga.


Estavam parados num congestionamento que chegava a dez quilômetros, na estrada para Itarantitim. Roberta acordou e agora chorava de fome. O choro dela estava deixando Júlio nervoso. Quase todos passageiros do ônibus tinham descido, e tirando eles, só duas pessoas continuavam em seus lugares. Um deles era um homem de uns quarenta anos, com um chapéu enfiado na cabeça e um rádio de pilha colado no ouvido e outra uma mulher de meia-idade, que estava em pé no corredor. Ela viu Júlio e aproximou-se. Era uma mulata de quadris largos, e pelo jeito, muito falante:
- Que coisa, senhor. Vira e mexe sempre acontece alguma coisa nessa estrada.
Júlio deu um sorriso anêmico, tentando explicar que não queria conversa com ninguém.
- E o pior que não passa nenhum ônibus na pista do lado. Se pelo menos passasse, eu voltava para a rodoviária...
Roberta disse:
- Pai, estou com sede.
Antes que Júlio falasse, a mulata disse:
- Tadinha da sua filha. Também, com o calorão aqui dentro! Eu tenho um pouco de água, sempre carrego uma garrafa de um litro e meio. Espera que titia vai pegar, minha linda.
Ela foi e voltou com uma garrafa pela metade. Júlio agradeceu, e Roberta fez o mesmo. A mulata riu e disse:
- Como sua filha é linda. Tem quantos anos, meu bem? Aposto que tem cinco, é a idade da minha neta mais nova...
Júlio interrompeu:
- Muito obrigado pela água, senhora, mas eu queria dormir um pouco.
- Ah, como sou inconveniente. Desculpa, sei que gosto de falar, e às vezes falo bastante...
Roberta riu. A mulata completou:
- Ainda bem que sua filha está bem protegida aqui com o senhor. Soube do caso de uma menininha da idade dela que foi sequestrada? A polícia está caçando o desgraçado. Espero que ele não tenha feito nada de mal com ela. Hoje de manhã, vi a mãe da menina no Cidade Cidadão. Pobre moça. Como está sofrendo com esse sequestro. Meu coração se despedaçou quando ela suplicou para que o bandido não fizesse nenhum mal a pobrezinha...
Júlio perguntou, assustado.
- Mãe da menina?
- Isso, moço. Ela deu uma entrevista no hospital. Levou um tiro, mas o desgraçado não acertou nenhum órgão vital. Ela disse que foi o homem que vivia com ela que cometeu essa atrocidade. Falou que descobriu que o safado abusava da sua filha, e que ia denuncia-lo quando levou o tiro. Estou rezando que esse desgraçado seja preso logo. Na cadeia, os presos vão saber tratar dele.
- Onde foi isso?
- Lá no Rio de Janeiro.
- E essa reportagem saiu hoje?
- Foi - disse a mulata, sentando-se no braço da poltrona vizinha - Fiquei chocada com a pobrezinha suplicando, chorando, rogando que sua  filha Roberta volte para casa. Até para quem levou um tiro está bem. Mas ainda está no hospital. Eliana, Eliane, Elaine... esse é o nome dela...
- É o nome da minha mãe - disse Roberta.
- Que coincidência - disparou Júlio, cortando sua filha. - Eu acho que li algo no jornal...
-Está em todos noticiários. O safado não vai escapar.
- Hoje não assisti o noticiário.
- Não? Passou em todos jornais. Olha, sempre digo: quando um crime é desvendado, aparece outro pior que antes. Mas com certeza esse vai entrar na história, pela barbaridade...
E Júlio ouviu a narração da mulata e visualizou toda cena, pelo teatro encenado por Elaine:

Nesse momento, um canal de TV exibia a reprise da entrevista dentro do programa Cidade Cidadão - o jornal que preserva seu povo.
A repórter Clarice Nunes estava no quarto do hospital municipal ao lado da vítima, Elaine Berilo. A vítima estava sentada numa poltrona, de camisola, mas era visto a atadura em volta do seu tórax, na altura dos seios. Tinha olheiras fundas, e ainda se recuperava do tiro que levara.
Repórter:
- A senhora teve sorte de ter escapado com vida.
Elaine:
- Se tive! Sabe o que é olhar para o cano de uma pistola e sentir que a morte quer te abraçar?É uma sensação horrível, e isso aconteceu comigo, vindo de um homem que nunca imaginei o monstro que era.
R:
- Nunca suspeitou do seu companheiro?
E:
- Nunca. Sabe o tipo de homem romântico, que manda flores, liga toda hora? Era ele. Tudo disfarce. Enquanto eu recebia buquês de rosas no meu trabalho, ele ficava em casa abusando da minha filha.
R:
- Então ele não é o pai biológico?
E:
- Não, quando fomos morar juntos, já estava grávida.
R:
- E o pai?
E:
-Não tive mais notícias dele. Parece que voltou para o Norte, sua terra natal. Mas Júlio sabia da minha gravidez, e me prometeu que cuidaria da criança como se fosse sua. Eu (lente da câmera focando os olhos dela, as lágrimas escorrendo lentamente)agradeci a Deus pelo homem que entrava na minha vida. Minha família gostou dele de cara, e ele se mostrava o pai dedicado. Durante esses anos eu era a mulher mais feliz do planeta.
R:
- E o que a fez desconfiar do seu companheiro?  
E:
- Minha filha. (O foco é só na entrevistada. A lente da câmera mostra uma mulher frágil, que segura um terço, com olhos de desespero. Na tela azul no canto da tela, está escrito: MULHER ESCAPA DA MORTE E MONSTRO SEQUESTRA MENINA DE CINCO ANOS) Na semana passada, Júlio teve um problema de família e precisou viajar. Quando fui dar banho na minha filha, percebi uma manchinha roxa na coxa direita dela. Perguntei o que era, mas ela não queria me responder. Pensei que ela tivesse caído da gangorra no parquinho do bairro, mas ela só balançava a cabeça. Tive um pressentimento horrível, e perguntei se era o papai. Ai, meu Deus, ela só me olhou, e quando vi os olhinhos dela cheios de lágrimas, também chorei.
R:
- Por quê a senhora não ligou ou foi para a polícia quando viu as manchas?
E:
- Eu ia fazer isso, mas na hora fiquei em dúvidas. Pensei; vivo com uma pessoa que nunca se mostrou um monstro. Preferi então espera-lo para perguntar. Esse foi o meu erro. Quando perguntei a ele sobre a mancha, claro que ele negou. Mas minha filha teve a coragem de acusa-lo, na lata. Ele ficou nervoso, me ameaçou, mas eu disse que ia denuncia-lo. E foi aí que ele mostrou a face do monstro que é. Pegou uma arma, que eu nem sabia que tinha aqui em casa, e atirou em mim. Eu tive que fingir que havia morrido, pensando que o covarde ia fugir, mas ele pegou Roberta e levou. Agora, estou apavorada com a ideia que ele possa estar fazendo com ela agora. Se ela... se ela estiver viva (mais lágrimas) peço que ele a solte, a deixe em algum lugar para que alguém a ache e ela volte para casa. Infelizmente essa é minha esperança, mas acredito que ele esteja abusando dela e ... nem quero pensar no pior...
Muda a cena. Entra o apresentador do programa, que berra, revoltado:
- A polícia precisa encontrar esse monstro o mais rápido possível, cada minuto que está passando é mais um risco de encontrarmos a pobre refém morta... Esse monstro merece a pena de morte, ele não é humano, nem era para ter nascido... (parou de falar, como se estivesse ouvindo algo no seu ponto eletrônico. Sorriu e voltou a berrar)Tive informações agora que ele foi localizado. Uma testemunha que não quer se identificar com medo de represálias garante que o viu, junto com Roberta, em um ônibus que seguia para Santopolis, cidade no interior da Bahia. Ela desconfiou dele, mas o desgraçado notou e na primeira parada pegou um ônibus para Itarintitim, conforme registros das passagens compradas. E esse ônibus está preso em um congestionamento por causa de um acidente entre dois caminhões. Uma força policial foi designada a ir para o local, e já avisou a polícia rodoviária...


Júlio ouviu barulho de sirenes vindo de fora. A mulata ainda falava do programa que tinha visto, e ele olhou a estrada pela janela ao lado do assento de Roberta. A sensação que sentiu foi confirmada agora. O pegaram. Não tinha como escapar dali, preso no engarrafamento, e não ia colocar sua filha em risco. Principalmente agora que soube que Elaine sobrevivera ao tiro.

Continua: Amanhã, último capítulo da série. 

Rogerio de C. Ribeiro

quarta-feira, 30 de julho de 2014

DESTINO; INCERTO CAPÍTULO 3

No capítulo anterior: Em cima da pia, encontrei algo que me assustou: Um envelope com um adesivo escrito "Da Boa, CV". Era um sacolé de cocaína.
Foi a gota d'água. Podia permitir que Elaine me humilhasse, me xingasse, me fizesse seu escravo. Mas agora existia minha filha, e ela precisava de mim. Escutei barulho de gemidos vindo do nosso quarto. Quase que derrubo a porta pelo pontapé que dei.
E lá vi Elaine, deitada na nossa cama, nua , com um dos caras que frequentavam nossa casa.
E quando ela me viu, simplesmente riu. Riu de gargalhar.

No ônibus que pegara para Itarantitim, Júlio concluiu que o cerco fechava contra ele. Aproveitou que Roberta pegara no sono novamente para escrever. As letras saíam em garranchos por causa do movimento do ônibus, mas era necessário esclarecer, para quem lesse, o verdadeiro motivo daquela fuga. E agora mais que nunca, já que foi taxado de bandido. Coisa que nunca fora na vida.
Seu único erro foi ter comprado a pistola. Se não fosse por isso, nada disso estaria acontecendo.
Mas também não ia ver mais sua filha. E foi por isso que agiu daquela maneira. Foi um momento de desespero, mas ele não se arrependia de nada.
Escrevia com uma caneta Bic em uma caderneta, apoiando no braço da poltrona.
O ônibus diminuiu de velocidade. Júlio, que sentava na penúltima cadeira, espichou o pescoço e olhou para a frente.
O ônibus parou. O motorista levantou-se do seu assento. Júlio olhou a estrada pela janela. Viu carros da polícia rodoviária.
Suou frio. Ajeitou a cabeça da sua filha para o banco, e sentou-se reto, com as costas eretas.
Deixou sua caderneta com a caneta em cima das bagagens de mão que descansavam ao lado dos pés, e levantou a camisa. Pôs a mão no cabo da pistola.
Não permitiria que levassem sua filha tão fácil assim. Puxou a arma e colocou-a no colo.
A porta do ônibus abriu. E dois policiais rodoviários entraram.

Querem saber o que fiz quando flagrei minha mulher na cama com outro homem?
Nada. Simplesmente, nada.
Fechei a porta e fui para a sala como se fosse um robô movido a controle remoto. Sentei-me ao lado da minha filha e fiquei olhando para a tela da tevê, mas não vendo nada o que passava no momento.
Eu só pensava. Pensava na minha vida, e o que ela se transformou depois que conheci Elaine.
Quando era menino, nunca fui de ter uma turma de amigos. Nem era popular na escola. Na maior parte do tempo, ficava sentado na minha carteira, com a cara enfiada nos cadernos e livros, sempre com um lápis bem apontado e uma borracha no lado. Enquanto os outros alunos faziam badernas mesmo nas aulas, eu ficava quieto. Já com seis, sete anos tinha um objetivo na minha vida: Crescer, ter um bom emprego e cuidar da minha mãe.
Como fui uma criança magra, que usava óculos de grau, era também a diversão dos valentões. Nos intervalos das aulas, era uma constante ser cercado pelos grandalhões que exercitavam seus punhos em mim. Sofria essas violências constantes, e nunca nenhum professor ou monitor veio ao meu auxílio. Mais tarde compreendi que sou o que muitos falam: um insignificante. Invisível para a maioria das pessoas.
Escrevi esses parágrafos para que alguém, caso leia minha caderneta de anotações, possa entender como sou de verdade. Meus sonhos de criança evaporaram-se com o tempo, primeiro quando larguei a faculdade de direito para trabalhar em tempo integral; mamãe começou a adoecer e diminuiu seu ritmo de trabalho. Depois, quando eu chegava em casa muito tarde, e com medo de ser assaltado e que me acontecesse algo, comprei uma pistola de um primo meu, que vou omitir seu nome para não complica-lo depois do que aconteceu. Mamãe era contra a arma, e me fez jurar que nunca andaria com ela na rua. Violência gera violência, dizia. De tanto insistir, guardei-a na minha gaveta da cômoda, e esqueci dela por um tempo.
Quando conheci Elaine, achava que ela seria mais um amor platônico na minha vida. Mas quando ela anunciou aos nossos conhecidos que éramos mais que amigos, achei que Deus resolvera ser generoso comigo. Depois que mamãe morreu, fomos morar na minha casa.
E o resto já escrevi.
Mas como dizia antes, esperei que o cara que estava fodendo minha mulher saísse para ter uma conversa definitiva com ela.
O cara passou por mim, e tenho certeza que havia um sorriso naquela boca de lábios grossos. Elaine veio em seguida, vestida com uma camisola. Pedi que Roberta fosse ao quarto dela, para que o papai pudesse conversar com a mamãe.
Quando ficamos a sós, Elaine explodiu:
- Agora o corno quer começar uma cena. O marido traído teve sua honra arranhada!
- Isso não se faz, Elaine. Transar na nossa casa, e com Robertinha aqui na sala.
- Ah, ela já está acostumada.
-Acostumada? Como assim?
Elaine pegou um cigarro e acendeu.
- Ah, Júlio, larga de ser inocente. Por isso que é o corno do bairro, e nunca desconfiou. Então você acha que me satisfaz na cama? Que tenho centenas de orgasmos quando você me enfia esse pauzinho de merda? Gosto é de homem de verdade, que me trata como fêmea na cama. Esses sim, me fazem chegar até a lua...
- Sua devassa. Quero que saia da minha casa. Faça suas malas e suma daqui.
- Já estou cansada mesmo dessa vidinha de merda que me arrumou. Sou livre, Júlio, e quero minha liberdade sim. Posso até sair daqui, mas vou levar Roberta.
- Ela fica.
- Ah, quer que a menina fique? E pra quê?
- Não vou permitir que leve minha filha.
- De onde tirou essa coragem? Sempre foi, e ainda é um cagão, um fraco.
- Não vou permitir que leve minha filha - repeti.
- Júlio, tenho pena de você. Então nunca percebeu, nem desconfiou?
- De quê?
Elaine apagou o cigarro no cinzeiro.
- Roberta nunca foi sua filha. Foi por isso que eu queria abortar. Roberta é filha de algum amante que arrumei, debaixo do seu nariz, nesses anos todos que estamos juntos. Roberta é filha de uma trepada bem dada que tive. Só não posso te dizer quem é o pai, porque aí você vai fazer uma pergunta difícil.
- Está mentindo. Fala assim para me afetar...
- Afetar o que. Vamos fazer um teste de DNA. Dessa forma vai se convencer que você não tem nenhum direito sobre ela.
- Roberta é minha filha.
- Bem, só se for de consideração. Porque biológico...
Soltei um tapa que estalou na face dela. Elaine passou a mão em cima da bochecha, que tinha marcas dos meus dedos, olhou-me furiosa e ameaçou:
- Seu idiota, corno filho da puta. Presta atenção, nunca mais verá a minha filha. Vou botar a boca no mundo dizendo que sou mãe solteira, que tive uma produção independente. Vou ao juiz pra pedir o exame de DNA. E quando sair o resultado... Pode apagar na sua agenda que um dia conheceu uma criancinha inocente que assiste a mamãe dela fodendo com homens gostosos, porque farei de tudo pra que você sofra, morra de saudades dela, pode apostar tudo que farei...
A empurrei, e Elaine desabou em cima do sofá. Fui até o quarto que dormíamos. O lençol na cama estava amarrotado, e os travesseiros tinham caído debaixo da cama. Fui até a cômoda, abri a gaveta e peguei a pistola que havia comprado séculos atrás. Quando voltei para a sala, Elaine estava sentada, com as pernas cruzadas, e debaixo da camisola vi que não usava calcinhas. Apontei a arma. Ela fumava outro cigarro. Quando me viu armado, riu. Riu alto e disse:
- Quer mostrar sua masculinidade me apontando essa arma? Vai tomar uma ducha fria, se contente que estou com você. Se não sou eu, você ia ficar na bronha até hoje, pelo menos sou boazinha e te deixo me comer...
- Sua puta...
- Sem elogios - ela tragou fundo o cigarro. - Me poupe. Sua honra já foi pro escanteio a muito tempo...
Apertei o gatilho. O tiro atingiu o peito dela. Ela caiu para trás, e o cigarro voou da sua mão para perto da porta.
Ouvi Roberta me chamando. Não podia deixa-la ver essa cena. Pus a arma na minha calça, peguei Elaine e levei-a ao nosso quarto. Ela continuava imóvel, e um filete de sangue escorria de um furinho chamuscado da sua camisola. Sem pensar muito, peguei duas bagagens de mão, enfiei algumas roupas dentro, sai e fechei a porta do quarto. Fui ao quarto de Roberta e enchi a outra bagagem com roupas dela. Peguei a certidão de nascimento e meus documentos, peguei-a pela mão e saí.
Na rua, não havia nenhum conhecido perto. Chamei um táxi que vinha passando e disse ao motorista:
- Rodoviária, por favor.
E teve meu início da fuga em ônibus, até a hora que...

O motorista conversava com os dois policiais, que olhavam para os passageiros sentados. Júlio continuou em silêncio, segurando a pistola. Roberta ainda dormia. Ele encolheu-se na poltrona, e lançava olhares para a estrada. Não passava nenhum carro no sentido contrário. Ficou encolhido, escondendo a pistola encobrindo com a mão.
Dentro dele sentiu seu estomago revirando de pavor. Não do que pudesse acontecer a ele, mas pela sua filha. Roberta dormia o sono dos anjos e puros, indiferente ao que acontecia naquele momento.
Os dois policiais terminaram de falar com o motorista, deram uma olhada para o interior do ônibus e para os passageiros e desceram. O motorista subiu o degrau que dava no seu compartilhamento e avisou:
- Teve um acidente com dois caminhões a quinhentos metros daqui. Vamos ter que esperar removerem, e isso vai levar tempo.
Alguns passageiros desceram do ônibus, mas Júlio continuou sentado, sentindo escorrer pelo seu rosto um rastro de suor.
Roberta ainda dormia. Isso era bom para ela. Ele estava tendo uma estranha sensação de que aquilo que fazia não ia dar certo. Lutou contra essa ideia que teimava dentro da sua cabeça. Elaine conseguiu destruir muita coisa da vida dele, inclusive seu caráter. Pela primeira vez, estava agindo com hombridade. Lutava para proteger sua filha das mãos daquela desgraçada, que a essas horas devia estar bem enterrada.
Só de se lembrar que matou uma pessoa, logo ele que nunca matara nem uma formiga, sentiu ânsias de vômito, mas controlou-se.
Colocou a pistola no cós da calça, ajeitou a camisa em cima para esconde-la, e pegou a caderneta e a caneta para escrever. Queria completar as anotações antes que sua filha acordasse. Porque ela, acordada, ia reclamar do calor que os torrava dentro daquela lataria velha, e ele teria que se dedicar só a ela, ignorando tudo que estivesse fazendo.

-Duas passagens para São Paulo, por favor - Pedi para a atendente da Viação Cometa, na Rodoviária Novo Rio. Eram sete e meia da noite, e só consegui passagem para oito horas.
Paguei pelas passagens pelo cartão de crédito, e quando ia ao setor de embarque, lembrei-me que era arriscado usar cartão na jornada que viria em frente. Podia ser rastreado. Roberta choramingava ao meu lado, chamando pela mãe. Tive vontade de dizer: sua mãe morreu, meu bem, a malvada da sua mãe teve um fim que mereceu. Claro que não falei isso, o que disse foi:
- Mamãe viajou antes da gente, e está nos esperando na casa de praia que papai comprou - Detestei aquela mentira sem sentido, mas Roberta com cinco anos acreditava em tudo que papai e mamãe falavam.
Ela me olhou com aqueles olhinhos inocentes e disse:
- É mesmo, papai? Vamos para a praia? Posso usar meu biquini novo?
Menti de novo.
- Está aqui guardado na sua mala, meu amor.
Fomos até um caixa eletrônico, e saquei o limite do dia, mil reais. Escondi o dinheiro dentro dos bolsos da minha calça jeans, e quando os colocava, senti o cabo da pistola; gelei.
Enquanto aguardava o ônibus, eu observava pelos cantos dos olhos a multidão que ia e vinha pela rodoviária. Senti-me um criminoso, e analisando bem, não deixo de ser, já que matei a mulher que amo. A palavra amo é no presente, e não é porque ela me traiu descaradamente, que me humilhou, me fez sentir o pior verme do planeta, que deixei de ama-la de uma hora para outra. Não. Estou arrependido do que fiz, mas estaria mais arrependido se ela me levasse Roberta para longe de mim. Aquela ameaça que ela não é minha filha me desnorteou.
Só tenho uma alternativa. Ou me entrego para a polícia e pago pelo assassinato que cometi, ou fujo para bem longe com minha filha. E a segunda hipótese é a mais viável no momento.
Dois policiais estavam parados em frente de uma lanchonete, e tive certeza que me olhavam. Sabiam que eu era um assassino. Fingi que lia um folheto evangélico, que achei no chão, mas meu coração acelerou a ponto de ter um enfarte. Disfarcei e olhei em direção da lanchonete. Os dois policiais bebiam café e conversavam com a caixa, uma morena de uns 25 anos. Os três riam de algo que falavam, e senti meu coração voltando a bater no seu ritmo normal. Roberta me puxou pelo braço e pediu:
- Pai, to com fome.
- Papai compra...
-Pai - ela começou a choramingar - quero biscoito de chocolate.
O único lugar que vi onde podia comprar o biscoito para ela era na lanchonete, onde os policiais conversavam com a caixa e agora com uma atendente gorda.
Olhei o relógio e vi que faltava dez minutos para o ônibus sair. Segurei a mãozinha de Roberta e fomos na lanchonete. Pedi que ela escolhesse o biscoito, e ela apontou para um negresco. Pedi licença para um dos policiais que continuavam ali, e paguei pelo biscoito e um guaravita.
Enquanto pegava o meu pedido, senti minha nuca eriçar. Sabia que os policiais me olhavam, mas me convenci que ainda não sabiam do crime. Quando peguei o guaravita e o canudinho para Roberta, ouvi ela falando. Gelei de novo. Ela falava com os policiais:
- Eu e papai vamos para a praia. Mamãe está esperando a gente lá...
Sorri e vi os policiais concordando com minha filha. Um deles disse:
- Você tem que ser uma boa filha para os seus pais.
- Eu sou boa com eles. Mamãe que é má às vezes.
O policial me olhou e disse, sorrindo:
- Mesmo? Muito má?
- Bastante - disse Roberta com firmeza. - Ela me bate.
Tive que intervir:
- Sua mãe não é tão má assim, princesa. É que ela fica nervosa às vezes e aí briga quando você faz bagunça...
- Não, papai, ela me bate mesmo quando estou vendo desenho.
- Mamãe tá doente - menti descaradamente. - Vamos logo, senão perdemos o ônibus.
Mas o policial falou:
- E seu pai, também bate em você?
Olhei para o policial, um negro alto e forte, e tentei responder, mas Roberta falou por mim:
- Papai nunca me bateu - disse indignada. - Papai faz tudo que quero. Eu amo papai!
O policial riu. Deu as costas para a gente e voltou a conversar com seu colega e com a caixa da lanchonete. Saí as pressas para o embarque.
Ainda tive outro teste de nervos antes de embarcar. Ficamos na fila para entrar no ônibus da Viação Cometa. No momento que dei as passagens, peguei minha identidade e a certidão de nascimento de Roberta. O motorista, que pelo crachá vi que se chamava Egídio, olhava da identidade para mim, e olhava minha filha e a certidão de nascimento. Virou a folha, leu novamente, olhou minha foto, as passagens, tudo isso em ritmo lento. Minhas pernas fraquejavam. Roberta bebia seu guaravita pelo canudinho e mastigava um biscoito. Achei que esse momento o motorista Egídio ia me olhar novamente e gritaria: Esse é o assassino que raptou a menina, ela não é filha dele, essa certidão é falsa, chamem a polícia, prendam esse monstro!
Ao que Roberta levantou a cabeça para mim e disse:
-Papai, quero fazer xixi.
Egídio, o motorista, me entregou a identidade e a certidão e disse:
- Boa viagem para vocês.
- Obrigado.
Entramos, nos acomodamos nas nossas poltronas, e levei minha filha no banheiro do ônibus. Depois, fiquei sentado ainda na expectativa de que ia sair errado. Não acharia nada anormal se no último instante a polícia viesse em comboio e invadisse o veículo com fuzis, pistolas, para minha prisão. Mas o que aconteceu mesmo foi o ônibus começar a rodar devagar, saindo da rodoviária, e dando início a nossa fuga.


Continua...

No próximo capítulo: Júlio fica encurralado na estrada.

Rogerio de C. Ribeiro

terça-feira, 29 de julho de 2014

DESTINO:INCERTO CAPÍTULO 2

No capítulo anterior: Isso durou uma semana. Depois que terminou a missa de sétimo dia, com meus parentes e os pais dela ainda dentro da igreja, Elaine chamou a todos e disse em alto e bom som:
- Bem, agora acabou o seu período de luto. O momento agora é de viver, de aproveitar a vida. Sua mãe já foi enterrada, o mundo pra ela acabou-se, e a única certeza que ela vai ter agora são os vermes que vão roer suas carnes podre.
Houve um coro de Ah e Ohs, e até o padre ficou assustado com aquelas palavras. Todo mundo criticou Elaine, só eu que não falei nada e nem esbocei nenhuma crítica. Eu precisava dela, pra mim só existia Elaine no mundo, independente do seu jeito e seus modos. 
Fiquei dependente dela até o dia que ela me disse que estava grávida e que ia abortar a criança.

Júlio ruminava essas lembranças ao sacolejar do ônibus pela estrada precária. O sol ia se intensificando, e os poucos passageiros iam despertando dos cochilos. Na poltrona vizinha onde ele estava, uma mulher de coque na cabeça o observava com olhinhos miúdos atrás de um par de óculos de leitura. Ela tinha uma bíblia na mão, e lia alguns evangelhos.
Quando a senhora de coque percebeu que Júlio a encarou, ela sorriu, mostrando uma dentadura postiça amarelada.
- Sua filha é muito bonita - elogiou.
Instintivamente, ele ajeitou a cabeça de Roberta no seu colo para o lado. A menina mexeu-se um pouco, choramingando. Ele sabia que ela estava com fome, e só esperava que o ônibus chegasse na próxima parada para providenciar uma mamadeira para ela.
- Obrigado - disse ele, secamente.
- Sua filha é quietinha. Na idade dela outras crianças estariam reclamando do desconforto do ônibus...
A velha de coque estava de olho neles - pensou Júlio. - Essa é daquelas que adoram conversar nas viagens.Vou dar um basta nisso.
Júlio não respondeu ao comentário feito pela vizinha de poltrona. Empertigou-se, simulando que se espreguiçava, e virou o rosto para a janela.
Lá fora, a vista não era nada consoladora. Passavam por uma estrada esburacada, e a poeira flutuava no vidro fechado da janela, que já estava bastante suja. O cenário era de árvores esqueléticas, matagais secos, um sol inclemente que estorricava a terra cinzenta, e em alguns pontos Júlio viu casebres afastados, e cabeças de gados esqueléticos procurando capins verdes. O cenário de fora era um contraste para sua vida agora. Acariciou os cabelos de Roberta, que insatisfeita, reclamou. Ele olhou-a com ternura.
A vizinha de coque continuava olhava para eles. Ela perguntou:
- O senhor é de Santopolis?
Júlio balançou a cabeça.
- Tem parentes por lá? - Insistiu a vizinha de poltrona.
Júlio continuou quieto. Afagava os cabelos lisos de Roberta e mantinha seus olhos na janela.
- Os moradores de Santopolis são basicamente de agricultores. Pena que a seca está castigando essas terras toda. Mas isso tudo é por culpa dos homens. Se seguissem as palavras sagradas da bíblia, nada disso estaria acontecendo...
Júlio sentiu suas costas doendo por causa do encosto duro da poltrona. Estava irritado com o palavrório da mulher ao lado. Decidiu que na próxima parada não retornaria ao ônibus. Ia comprar outra passagem para qualquer lugar que o mantivesse longe daquela tagarela.
Ele mexeu as pernas, que já estavam dormentes, e a cabeça da menina bateu na altura da sua cintura.
- Ai, machucou - reclamou Roberta.
Júlio suou frio. A menina tinha batido com sua testa na coronha da arma que escondia sob a camisa. A vizinha de poltrona não tirava seus olhos deles.
- Não foi nada, meu amor. Daqui a pouco o ônibus vai parar e você vai poder beber seu leite e comer uns biscoitos.
A menina sentou-se ereta na poltrona e disse, animada:
- Biscoito de chocolate, papai?
- Sim, de chocolate.
- Eba!!!!
Júlio acariciou o rostinho alegre de sua filha. E sabia, tinha certeza absoluta, que nada e ninguém no mundo poderia separa-los.
Ninguém.

Quando Elaine comunicou friamente que ia abortar nosso filho, fiquei desesperado. Não podia aceitar aquela ideia e disse a ela:
- Elaine, sempre te respeitei, mas isso que me disse é completamente fora de qualquer juízo...
- Júlio, eu não perguntei se posso ou não abortar. Estou apenas te comunicando minha decisão para que amanhã ou depois não fique choramingando pelos cantos.
- Eu só não entendo uma coisa, Elaine. Porque você age assim comigo? Se não gosta de mim, não quer filhos para formarmos uma família, então me explique: qual é o seu objetivo comigo?
- Nenhum, neném chorão. Só gosto de tê-lo ao meu lado - e ela sorriu quando completou: - adoro te subjugar.
- Faça o que quiser então, mas vou ser cúmplice disso. Vou embora.
Elaine soltou uma sonora gargalhada. Ela instigou, dizendo:
- Duvido, pago para ver. Você não consegue ficar sozinho, Júlio. É frouxo, um covarde.
Não sei de onde tirei forças para arrumar coragem para sair de casa. Levei minhas roupas em uma mala e me hospedei em um hotel do Centro da cidade. Confesso que nas noites que passei na escuridão do minúsculo quarto, com uma tevê que só sintonizava um canal evangélico, não consegui dormir direito, só pequenos e esparsos cochilos. Só pensava nela, na mulher que eu era extremamente enfeitiçado, mas jurava para mim mesmo que não ia dar o braço a torcer. Tinha que mostrar que não era submisso. Repetia para mim mesmo sempre, mas a ausência de Elaine era como uma dor física que dilacerava meus órgãos. Durante essa semana, ia trabalhar, e os colegas do escritório comentavam entre eles sobre minha tristeza. Percebia que eu era o assunto da semana. Ninguém chegou para mim perguntando se eu queria desabafar, confessar minha crise com Elaine. Ninguém veio, e o motivo era um só: Nunca dei margens para que alguma pessoa invadisse minha vida pessoal. Aprendi com minha mãe que trabalho é trabalho, e vida pessoal só cabe a pessoa mesmo resolver.
Quando eu preparava meus documentos para poder alugar um quitinete no centro, recebi uma ligação. Meu celular tocou e vi no visor quem era: Elaine. Quando li o nome, senti minhas pernas fraquejarem, suei frio e tentei ignorar. Desliguei duas vezes seguidas ao chamado, mas Elaine insistia. Pensei com meus botões: Se ela não quer mais nada comigo, porque está insistindo? Para saber, tinha que atender. E na sexta vez que o meu celular tocou, atendi.
- Que houve? - Tentei mostrar um tom de voz mais distante possível.
- Preciso de você, Júlio - Já o tom de voz dela era de desespero.
- Você não precisa de ninguém, Elaine. Me esquece e vive sua vida.
Por mais que eu tentasse, havia falhas no tom da minha voz.
- E eu lá quero saber de alguém, Júlio? - Era o velho tom arrogante que conhecia. - Quero mais que os outros se danem. Mas você é diferente, Júlio. Você que escolhi para vivermos juntos, envelhecermos juntos...
- Nem parece a Elaine que conheço.
- Desculpe a forma como falei antes, sabe que às vezes ( sempre era a palavra mais certa) falo besteiras sem pensar. Isso é coisa minha, não consigo mudar, mas eu quero mudar. E quero mudar com você comigo.
- Acho que é um pouco tarde para isso. Sua ideia de aborto...
- Olha só, para você ver que só falo bobagens. Nunca na vida vou abortar um filho nosso. Estou arrependida de ter falado aquilo para você, principalmente sabendo o quanto quer aumentar nossa família...
- Não... não vai mais cometer esse crime?- Senti que fraquejava.
- Larga de ser bobinho. Eu te amo, volta para casa.
Acreditei nela. Senti-me o homem mais feliz do mundo. Ela me convencera. E voltei.
Nos primeiros meses de gravidez Elaine se mostrou uma mulher dócil, atenciosa, amorosa. Para minha felicidade, acreditei que a gravidez suavizara o temperamento dela.
Mas estava enganado, mais uma vez.
Muito tempo depois, descobri que ela tentou abortar, bebendo chás, engolindo remédios, mas todas tentativas foram em vão. Ela continuou carregando no ventre a menina que seria registrada com o nome de Roberta meses depois.
E descobri que o pedido de volta era um teatro. Ela queria mesmo era que eu voltasse para infernizar minha vida, o que conseguiu.

O ônibus parou na cidade de Matoso do Alto, interior paulista, às dez horas da manhã. O motorista avisou que tinham vinte minutos para o café. Júlio desceu com Roberta, com suas duas bagagens de mão, e olhou o pequeno restaurante vazio, com moscas varejeiras circulando latas de lixo abarrotadas. Ao lado, um pequeno guichê da empresa estava aberto, com itinerários diversos escritos à mão em um papel cartolina colado no vidro. Júlio comprou um pacote de biscoitos de chocolate e dois copos de leite. Ele e a menina sentaram-se numa mesa suja. Enquanto Roberta mastigava um pedaço de biscoito e bebia do copo o leite morno, Júlio assistiu ao noticiário que passava em uma televisão sobre um Rack ao lado dos banheiros. O apresentador do Jornal Globo News dizia nesse momento:
- Continua a busca pela menor Roberta Menezes, sequestrada pelo próprio pai, Júlio Menezes. A polícia montou um cerco nas principais estradas do País. Segundo informações, o criminoso fugiu de ônibus para São Paulo. A polícia não disse mais nada para não atrapalhar as investigações...
"Criminoso? Agora sou taxado de um criminoso. Ninguém sabe a verdade."
Na mesinha ao lado, a vizinha de poltrona com coque na cabeça também assistia a tevê. Ela virava seus olhinhos miúdos do apresentador do telejornal para ele. Júlio teve uma premonição ruim que aquela velha sabia de algo mais. Ele pousou a mão no cabo da pistola que estava sob a camisa de malha. Não ia permitir que nessa altura alguém fosse atrapalhar seus planos.
Levantou-se, puxando Roberta consigo. A menina largou seu pacote de biscoitos, que esparramaram no chão. Ela começou a chorar.
- Agora não - disse Júlio, nervoso. A senhora de coque abaixou-se para catar os biscoitos no chão. - Não precisa - ele gritou para ela, - compro outro.
Assustada, a velha disse:
- Pobrezinha da menininha. O senhor foi grosso com ela.
- Não se meta com minha vida nem da minha filha.
Roberta puxou sua mão e reclamou, em soluços:
- Papai me machucou...
Júlio abaixou-se e abraçou Roberta. A senhora de coque voltou para a sua mesa, e enquanto bebia seu café com leite, olhava pensativa para eles e voltava os olhos para a tevê.
O jornal ia acabando, e o apresentador deu a última notícia:
- A polícia acabou de informar que o sequestrador da menina Roberta foi visto na última vez na rodoviária de São Paulo comprando passagem para o interior. Mais notícias nos plantões...
A senhora de coque engasgou-se com seu leite. Quando virou a cabeça, não os viu mais. Sumiram.
Desconfiada, saiu do restaurante e procurou pela pequena parada algum sinal deles. Algo dentro dela dizia que era o homem procurado. Ela nunca subestimou suas intuições. Enquanto ela procurava, andando em passos miúdos, um ônibus da viação Metropolitana virava pela esquina em direção da estrada. Seu destino era em Itarantimim. A senhora de coque, que se chamava Ivonete, não viu o estranho com uma criança naquele veículo, que seguia a oitenta por hora pela estrada.

Às vezes eu dizia para mim mesmo: Mais uma vez errei em ter voltado para Elaine.
A única coisa que salvava meu relacionamento com ela era nossa filha, Roberta.
O período de gravidez foi difícil para Elaine. Ela me evitava, gritava que sentia nojo de mim, me botou para dormir no sofá durante seus últimos meses de gestação. Seu humor ficou pior que antes, eu era esculachado por ela na frente de todo mundo, e Elaine não tinha papas na língua. Uma tarde, na casa dos pais dela, com seus irmãos reunidos num almoço de domingo, ela disse do nada:
- Caramba, como odeio essa vidinha de futura mãe.
Tentei consola-la, mas foi pior.
- A culpa é toda sua, Júlio. Enquanto podíamos estar passeando, viajando, agora estou aqui embuchada, cheia de espinhas na cara, com peitos inchados e duros de leite. Isso não é vida...
Hudson, o irmão mais velho, riu. Ele estava com sua esposa, Margareth, ao seu lado.
- Por isso, maninha, que sempre falei pra Margo: Nem tente ter filhos, vai estragar seu lindo corpo...
Elaine bateu na mesa, e seu prato balançou com o impacto.
- Tá sugerindo que estou um bagulho?
-Não fique nervosa, amor...
Elaine apontou o dedo, e me acusou:
- Agora está feliz, não é? Minha família me esculhambando, e o corno do meu marido nem para me defender; quieto como um covarde. Vai lá e mete um soco nas fuças de Hudson.
Claro que não esmurrei ninguém. O meu sogro, acalmou os ânimos exaltados dizendo que mesa é sagrada, todos tinham que comer para Satisfazer o Nosso Senhor.
Elaine, furiosa:
- Enfie esse seu senhor no rabo, e fique com seus filhos que tanta ama. Eu sei que sou um estorvo para essa família, e querem saber de uma coisa? Estou pouco me lixando.
Ela levantou-se e me puxou pelo braço para sair de lá. E ainda disse:
- Frouxo.
Depois do nascimento, minha vida transformou-se, descobri o que era o amor paterno. Já Elaine, ela não mostrava nenhum afeto pela neném, e pior, criticava:
- Estou farta de acordar de madrugada para dar de mamar para essa criatura. A partir de amanhã, Júlio, vou aposentar meus seios. Ela que vá beber leite de vaca.
- Não é certo, Elaine, você dizer essas coisas. Primeiro, nossa filha é uma dádiva de Deus, e ela necessita de leite materno por pelo menos seis meses.
- É fácil falar quando o peito não é seu. Pra mim chega. Leite de vaca.
E Elaine cumpriu o que ameaçou. Minha filha, com menos de um mês, teve que se acostumar com mamadeira.
E nos anos seguintes, Roberta cresceu sendo ignorada pela mãe. Mas pelo menos tinha a mim ao seu lado. Nossa casa vivia cheia de amigos, e Elaine fazia questão de fazer churrascos todos finais de semana. Hoje vejo que nosso relacionamento desandou, ela só nos maltratava, começou a beber. Isso por influência de alguns caras que lá apareciam.
Mas eu aguentava tudo calado, omisso. Tudo por Roberta. Mas o que mudou nossos destinos foi o que aconteceu a cinco dias atrás.
Cheguei em casa e vi Roberta sentada no sofá sozinha, vendo desenho pela tevê. Eu aproveitei que tive que fazer um serviço na rua, e cheguei mais cedo.
- Papai - minha filha correu para me abraçar. - Estou com fome.
- Cadê sua mãe? Ela não preparou nada pra você?
- Não. Tô com fome.
Deixei Roberta no sofá e fui procurar alguma coisa para ela comer. Quando entrei na cozinha, vi bagunça por todo lado; pratos sujos empilhados dentro da pia, manchas de molho nas paredes e no fogão, copos sujos e alguns com bebidas dentro.
Em cima da pia, encontrei algo que me assustou: Um envelope com um adesivo escrito "Da Boa, CV". Era um sacolé de cocaína.
Foi a gota d'água. Podia permitir que Elaine me humilhasse, me xingasse, me fizesse seu escravo. Mas agora existia minha filha, e ela precisava de mim. Escutei barulho de gemidos vindo do nosso quarto. Quase que derrubo a porta pelo pontapé que dei.
E lá vi Elaine, deitada na nossa cama, nua , com um dos caras que frequentavam nossa casa.
E quando ela me viu, simplesmente riu. Riu de gargalhar.

Continua...

No próximo capítulo: Uma declaração deixa Júlio desnorteado

Rogerio de C. Ribeiro