I
O
primeiro do grupo que despertou do sono foi Sílvio. Quando abriu os olhos e viu
o teto sem nenhuma lâmpada acima, ficou confuso. Por um momento não se lembrava
onde estava. Mas aos poucos lembrou-se da clínica e do médico. Com dificuldade
ergueu-se pelo cotovelo e conseguiu sentar na beirada do colchão. Toda vez que
se levantava precisava de alguns segundos para relaxar as pernas, que sempre
amanheciam rígidas e doloridas.
Ainda
sentado estendeu as pernas para o alto e ia começar o mesmo processo de sempre
que era massagear até que a câimbra sumisse quando percebeu, espantado, que
podia movimentar as pernas para cima e para baixo e não havia um resquício de
dor. Pôs os pés descalços no chão e se levantou. Deu dois passos e suas pernas
continuavam firmes como uma rocha.
Esticou
os braços para cima e espreguiçou-se. Mais uma vez ficou surpreso; sua coluna
reagiu bem e até estalou. Parecia que as dores no corpo sumiram em questão de
horas.
Caminhou
para a janela e olhou o extenso campo que predominava depois da casa. Nenhum
vento, nada de calor apesar do sol forte.
Sílvio
retornou para a cama e ficou sentado. Depois de um momento olhando a parede
branca na sua frente, balançou a cabeça e chegou a conclusão que era apenas
imaginação sua.
As
dores continuavam pelo seu corpo mas por uma autossugestão influenciado pela
alegria de finalmente ter sido internado na clínica camuflava seu martírio de
anos. Era como tivesse sido hipnotizado pelo médico e sua enfermeira.
Daqui
a pouco elas virão com toda força e precisava estar preparado para que não o
pegasse de surpresa. Um dia uma lancinante dor rasgou seus rins em plena
calçada no centro da cidade, e ele ficou estirado com o rosto virado ao lado de
um bueiro apertando seu quadril com o braço direito enquanto gritava por
socorro. Formou-se uma multidão de curiosos à sua volta mas ninguém se
prontificou em ajuda-lo; simplesmente assistiam seu sofrimento como se fosse um
espetáculo teatral.
Para
ele que se contorcia no chão, com vários pares de sapato na altura do seu
rosto, até ouvir o som da sirene berrando da ambulância lhe pareceu que levara horas, mas depois descobriu que não
passara nem dez minutos. No hospital, depois de exames de raio X, a notícia que
recebeu do plantonista não foi nada agradável.
-
Sua dor foi derivada a gases presos, Sílvio. Vou receitar um remédio muito bom
para aliviar...
-
Gases? - Sílvio, que estava sentado na sala do médico, que devia ser residente
por que parecia ser mais novo que ele e tinha espinhas na cara, pulou da
cadeira furioso. - O senhor não trocou os exames com outra pessoa?A dor que
senti foram nos rins, disso aí não tenho um pingo de dúvida. Eu conheço dor de
gases presos, de vez em quando sempre tenho isso. E sei também diferenciar essa
dor com a dos rins. Não preciso ser médico para eu mesmo diagnosticar meu
problema.
O
jovem e imberbe médico sacudiu a cabeça e o estetoscópio pendurado no seu
pescoço balançou junto. Para Sílvio, aquele médico não conhecia nada sobre o
que eram dores.
-
Os exames não erram e não foram trocados com nenhum paciente, Sílvio. Seus rins
estão em ótimas condições e não existe nenhum cálculo, pedra ou partícula de
poeira neles.
Sílvio
ficou em pé e ameaçou, apontando o dedo:
-
Então se crê em alguma coisa reze muito pra que a dor não apareça mais. Se na
hora que sair daqui tiver outra crise, processo você e esse matadouro que
chamam de hospital.
Depois
disso nunca mais teve nenhuma crise renal. Sílvio sabia que tudo era questão de
tempo. Quando menos esperasse, viria outra crise e dessa vez podia ser fatal.
Por isso se garantia tomando remédios para os rins, mesmo sem recomendação
médica.
Sílvio
novamente se levantou da cama e foi em direção da porta fechada. Antes que
chegasse perto dela sentiu o cheiro. Fungou com o nariz no alto e procurou de
onde vinha aquele fedor. Foi na janela e inspirou fundo. Lá fora continuava o
mesmo, sem vento, sem som, sem odor.
Era
dentro do quarto. Ou de outro quarto.
O
cheiro que sentiu era de fumaça. Mas não durou muito tempo, logo voltou o odor
antisséptico que tanto gostava.
Olhou
de novo para a janela sem vidros e uma luz veio como resposta.
Sua
vizinha de quarto era aquela moça que chegou por último. A que queria fumar. Era
bem provável que de alguma forma deve ter conseguido um cigarro. E agora estava
lá no quarto dela pendurada na janela com um cigarro grudado nos lábios. E
jogando aquela fumaça venenosa para o quarto dele.
Isso
não ia sair barato. Não entrou na clínica para pegar um câncer ou um enfisema
por causa de uma viciada. Uma vez leu uma matéria de uma revista que a maior
incidência para ter câncer de pulmão eram dos fumantes passivos. O doutor tinha
que saber disso. Não podia permitir que todo mundo corresse esse risco
tremendo.
A
primeira coisa que faria quando saísse do quarto seria denunciar aquela fumante
irresponsável.
II
Vitória...
Vitória... Vitória...
Célia
mal despertou do sono e um nome veio à sua cabeça. Vitória. Ainda deitada
naquela cama que era parecida com a sua cama da infância, ela murmurou baixinho
e repetiu:
-
Vitória. Vitória. Vitória.
O
que estava fazendo? Nunca foi de ficar repetindo nome, principalmente um nome
que não tinha nenhum sentido para ela. Não conhecia ninguém que se chame
Vitória. Ou conhecia?
Célia
levantou-se da cama e ficou andando de um lado ao outro pelo quarto
enquanto buscava um indício que levasse a esse nome.
-
Vitória. Vitória. Vitória.
Foi
até a janela. Janela? Um buraco quadrado que dava para um patético jardim.
Acostumada com luxo e residindo em uma cobertura duplex de frente para a praia,
Célia ainda não conseguia entender o motivo de estar naquele barraco. Por mais
que tentasse se lembrar do motivo de ter ido para lá, a única coisa que lhe
vinha na cabeça era aquele nome. Vitória.
Isso
era coisa dele. Por alguma razão que ainda desconhecia, mas que logo ia
descobrir, Alberto estava metido com a ida dela para essa miserável casa.
Talvez até tivesse um dedo dele com a decoração do quarto.
Só
ele sabia do seu passado. Dos tempos que chorava no travesseiro porque seu pai
não tinha dinheiro para comprar um vestido novo para que fosse a um baile ou uma
festa. A palavra que mais ouvia quando era adolescente era NÃO, NÃO, NÃO.
Como
uma menina de treze, quatorze anos podia se contentar em usar um vestido velho
e às vezes até remendado? Seu pai nunca enxergou que ela queria roupas novas,
bonitas para não passar vergonha na frente das suas amigas. Seu pai nunca se
esforçou para isso, por ele a única filha podia ficar trancada no quarto
durante dias a fio que não se importava. "Quer ir no aniversário da Belinha?
Use aquele vestido azul. Ele é velho? E daí. NÃO tenho dinheiro sobrando para
comprar o vestido que quer. Viu o preço dele? O valor daquele pedaço de pano
costurado é metade do salário que ganho. Se não quer vestir o que já tem, então
fique em casa. Mas fique no teu quarto. Não quero ficar ouvindo choro de
ninguém."
E
ela perdeu muitas festas e bailes por causa de roupa. A sua época de
adolescência só foi marcado pelas negativas do pai. Foi por isso que passou uma
borracha imaginária no seu passado quando conheceu Alberto Bangstorm.
Vitória...
Novamente
esse nome. Era como os antigos discos riscados. A agulha da vitrola parava ali
e repetia a última palavra da música que se ouvia e se não empurrasse a agulha
para a frente, o disco emperrava no mesmo lugar.
-
Como se chamava mesmo a esposa do diretor do Banco do Brasil? A que promoveu a
festa beneficente no Country Clube? O nome dele é Hermes, mas o dela me fugiu.
Será que ela se chama Vitória? Mas por que eu ficar pensando nela? Só a vi
nessa festa.
Célia
Bangstorm massageou levemente as têmporas com as pontas dos dedos. Em um
estalo, lembrou-se que o nome da anfitriã da festa se chamava Eunice.
Agora
ficou confusa. E não gostava nem um pouco dessa sensação. Era conhecida na
sociedade pela sua memória excepcional e da sua astúcia. Mas nesse momento
sentia-se quase insignificante, tudo por causa do nome de uma pessoa que não
tinha a mínima ideia de quem era.
Vitória.
Vitória. Vitória.
III
Simone
já tinha acordado há alguns minutos mas continuava deitada naquele maravilhoso
colchão forrado com pétalas de rosas brancas. Sua vontade era de ficar ali para
sempre. O delicioso aroma de perfume das flores, a cama que imaginou na noite
da sua lua de mel, o arranjo dos buquês espalhados no quarto, tudo isso a
deixava em completo estado de êxtase puro, uma sensação que nunca sentira antes
na vida.
-
Será que isso o que estou sentindo agora é igual a um orgasmo? - ela disse para
as paredes do quarto. A ansiedade que sentia pelo dia do seu casamento era
tanta que o simples fato de associar o que estava sentindo agora à perspectiva
em perder a virgindade que prezava a deixou ruborizada.
Daqui
a pouco aquela simpática mocinha que a recepcionou iria chama-la. Mas enquanto
ela não vinha, não custava nada continuar ali na cama sonhando com a nova vida
que teria ao lado de Gustavo.
Ainda
bem que sua mãe não estava com ela. Já sabia de cor e salteado o que ela
falaria se a visse ali no quarto:
-
Acorda para a vida, menina! Ponha os pés no chão, para de sonhar. A vida não é nenhum
mar de rosas ou cor de rosa como acha. A vida é dura, sofrida.
Enquanto
sua mãe dizia essas palavras, que entravam por um ouvido e saíam no outro, seu
pai vinha ajuda-la.
-
Deixa a Simone enxergar a vida como ela quer. Ela tem uma alma pura e o coração
bondoso. Não é pelo fato que ela não herdou sua amargura que vai se
decepcionar. Não. Ela será muito feliz ao lado do Gustavo. Os dois nasceram um
para o outro.
-
Simone teve a quem puxar - sua mãe sempre dizia isso.
Talvez
sua mãe tivesse um pouco de ciúmes do relacionamento dela com seu pai,
principalmente pela ligação forte que os dois tinham. O papel que seu pai
desempenhou para sua criação era um fator muito importante. Simone aprendeu com
ele da importância de preservar sua integridade. Nunca foi como as colegas da
escola que a cada semana tinham um namorado diferente e que antes dos quinze
anos já tinham perdido a virgindade. Simone ouviu muitas piadas que as meninas
faziam dela. A chamavam de santa, de freira, de burra. Quando alguém vinha lhe
dizer o que as outras garotas falavam dela pelas costas, Simone dava de ombros
e apenas sorria.
Desde
o tempo que ainda estudava no primário já conhecia seu futuro noivo. Eram
vizinhos do mesmo bairro e brincavam junto com outras crianças na rua de
paralelepípedos. Ela sempre teve uma queda por aquele menino tímido, quieto,
magrinho e com os cabelos sempre despenteados, mas nunca imaginaria que um
certo dia, quando os dois tinham doze anos, ele fosse se declarar para ela
gaguejando. Ela adorou aquela gagueira e aceitou o namoro. E desde então nunca
mais se desgrudaram um do outro.
Os
dois tinham muito em comum. Eram estudiosos, responsáveis, e acreditavam na
virgindade antes do casamento. Gustavo fazia faculdade de administração à noite
e durante o dia trabalhava no armarinho dos seus pais. Todo dinheiro que
ganhava colocava na poupança e tinha dado entrada para comprar um apartamento.
Simone também economizava um pouco do que ganhava como vendedora de uma loja de
roupas femininas em um shopping no centro da cidade. Em frente da loja que
trabalhava havia uma floricultura, e nos momentos ociosos que não aparecia
nenhum cliente, ela sempre dava um pulinho ali para apreciar rosas, margaridas,
orquídeas, e tantas outras espécies.
Simone
sorriu com as lembranças. Resolveu que era hora de sair da cama, por mais
agradável que fosse, e quando ficou em pé, de súbito sentiu uma pontada de dor
no ombro esquerdo. Massageou o lugar que estava dolorido e foi até a janela
aberta. Admirou o jardim florido ao lado da alameda e contraiu o rosto quando
voltou a dor aguda no ombro. Esticou e recolheu o braço e a dor persistia.
-
Acho que dormi em cima do braço - concluiu.
Daqui
a pouco passaria a dor. Para se manter distraída e esquecer o ombro dolorido,
voltou para a cama e para as pétalas de rosa branca. Não demorou muito e do
jeito que a dor veio, sumiu de repente.
IV
Pensou
que estivesse sonhando, mas quando despertou, a voz da menina parecia que
estava no seu lado na cama:
-
Mãe! Manhê! Tô aqui, me pega, tô aqui!
Jorge
pulou da cama e correu para a janela. Meteu a cabeça para fora e olhou de um
lado ao outro. O que via era apenas o mar de verde que se estendia até onde
podia enxergar. Mas em algum lugar desse campo podia ouvir a criança berrando:
-
Não quero ficar aqui sozinha, mãe! Tô com medo.
Jorge
voltou para a cama e intrigado olhou as paredes. O silêncio pesado e absoluto
foi quebrado com essa voz infantil. Mas era completamente impossível que
tivesse uma menininha perdida naquele campo. O volume da voz era bem nítida. Se
estivesse no jardim ele a teria visto. Como ela não estava ali fora, deduziu
que a menina estava na casa.
-
Mas o que uma criança faz sozinha aqui nessa casa?
Talvez
a mãe tivesse vindo com ela e por algum motivo precisou dar uma rápida saída.
Pelo tom de voz da menina devia ter três ou no máximo quatro anos. E a maioria
das crianças com essa idade detestavam ficar na companhia de estranhos. E era
esse o caso da menininha, o desespero de ficar longe da mãe.
-
Cadê você, manhê, vem logo, me pega!
Por
que aquela moça de uniforme branco não acalma a menina?
-
MANHÊ!!!!
Dessa
vez Jorge foi agir. Pegou a maçaneta da porta, girou e continuou parado no
mesmo lugar.
A
porta estava trancada.
Jorge
esmurrou a porta e gritou:
-
Ei, alguém aí fora, estou trancado, abram a porta!
Colou
a orelha na porta e o único som que ouviu foi:
-
Estou com medo, mãe...
E
também ouviu:
-
Papai, fica comigo, não me deixa sozinha...
O
desespero tomou conta dele. Reconheceu aquela voz.
-
Júlia?
Novamente
fez-se o silêncio. Jorge continuou colado na porta na esperança de ouvir a voz
da menina. Mas o único som que ouviuo
foi de passos no corredor.
-
Ei, abram a porta.
A
maçaneta girou e a porta foi aberta. Jorge encarou a moça sorridente e perguntou:
-
Por que trancaram a porta?
-
A porta não estava trancada - respondeu a moça.
-
Claro que estava. Escutei uma menina gritando e quando tentei abrir a porta ...
-
Menina? - A expressão no rosto da moça de uniforme branco era de dúvida.
-
Sim, chamando pela mãe.
A
moça de branco alargou o sorriso e disse:
-
Não tem nenhuma menina na casa, Jorge.
-
Como não tem?
-
Você devia estar sonhando.
-
Sei muito bem que não era sonho. Já tinha acordado.
A
moça apenas sorriu e avisou:
-
Daqui a pouco vocês serão chamados pelo Doutor. Pergunte a ele sobre o que
ouviu. Talvez ele te responda.
-
Eu não vou esperar...
A
moça pediu licença e fechou a porta. Furioso, Jorge agarrou a maçaneta para
abrir a porta de novo.
Estava
trancada.
V
Já
se tornara hábito. Era despertar do sono e a primeira coisa que fazia era
tatear o criado-mudo em busca do maço de cigarros e o isqueiro e antes de se
levantar fumava dois ou três cigarros, um atrás do outro.
E
foi isso que ela fez agora quando acordou daquele estranho e pesado sono. Com
os olhos fechados tateou pela mesinha ao lado e seus dedos não encontraram
nenhum cigarro, isqueiro ou o cinzeiro que vivia lotado de guimbas de filtros
amarelos. Arregalou os olhos e entendeu que não estava no quarto do apartamento
que morava com seus pais e nem em um quarto de motel com um cliente. Estava em
uma casa estranha com pessoas estranhas que nunca vira antes e um médico e uma
assistente mais estranhos ainda.
E
o pior. Não tinha um cigarro para amenizar sua vontade de fumar.
Em
um pulo ficou em pé e correu para a porta. Tinha que procurar um lugar que
vendesse cigarros. E se não achasse, tinha que encontrar alguém pelas
redondezas. Não é possível que estivesse em um lugar onde ninguém fumava!
Pôs
a mão na maçaneta mas não teve coragem de abrir a porta. Andou para trás, os
olhos fixos na porta e depois se virou e foi para a janela.
Lá
fora o céu continuava azul, o sol brilhando e sem nenhum vizinho por perto.
Michelle
ainda não entendia direito o porquê de estar em um lugar que não tinha nada a
ver com ela. Que raios a prendia ali? E a súbita falta de coragem de fazer uma
coisa simples que era abrir a porta para ir embora daquela casa?
Não
encontrou respostas para essas perguntas. Quando entrou nesse quarto a mocinha
de branco que a recebeu avisara que na hora certa os chamariam para conversar
com o tal doutor.
Ficou
debruçada na janela olhando o campo verde. Nunca gostou de campo, serra. Achava
tudo tedioso, um marasmo. Gostava mesmo era de praia, sol, vinho, iate, cliente
rico e generoso...
...
mas amava seu noivo. Único a quem se entregou completamente, sem restrições.
A
vontade de acender um cigarro diminuiu. Para quem fumava três maços por dia,
era um sinal bom. Imaginou seus pais vendo-a agora, sem nada entre os dedos.
Ficariam exultantes. Não era sua mãe que sempre dizia:
-
Edinalva, larga o cigarro, menina. Você não para de tossir e vê como tá magra.
E
ela prometia:
-
Vou largar, mãe. Mas tem que ser aos poucos - a promessa era sempre em vão.
Passava um dia e no outro ela acordava e fumava três cigarros na cama e
abarrotava o cinzeiro de guimbas, que sua mãe limpava a contragosto.
Realmente
o cigarro não andava fazendo bem à sua saúde. Mas o que ia fazer? Quando saía
da faculdade sempre parava em uma boate da moda, e lá com seus amigos bebiam,
fumavam, se drogavam. Isso quando um cliente não ligava para um programa. Aí
mesmo que corria mais bebida, cigarro e às vezes drogas.
O
que sua mãe falou da magreza dela era verdade. Até o último biquini que comprou
ficara largo nela. Se olhava no espelho do armário e podia ver as costelas
protuberantes e suas pernas afinando. Seu pai, preocupado, uma vez perguntou se
ela sofria de anorexia. Claro que não, respondia enfática. Adorava comer a
comida que a mãe fazia e sempre repetia o prato. Mas por mais que comesse,
emagrecia na mesma proporção.
-
Isso é uma fase - disse para si mesma, enquanto contemplava o campo verde na
frente. - É minha genética. Uma hora engordo e tudo volta ao normal.
Pelo
menos Eduardo não criticava sua magreza. E nem podia, também era magérrimo.
Escutou
a porta sendo aberta atrás dela. Virou o rosto e a moça de branco tinha entrado
no quarto.
-
Vamos para a sala. O Doutor quer conversar com vocês.
VI
Pelo
menos agora havia claridade no quarto. Aquela penumbra cinza dissipou enquanto
dormia, mas lá fora o céu continuava na cor de chumbo.
Horácio
contemplava o extenso campo e imaginava como podiam construir uma casa - que no
caso era uma clínica - no meio do nada. E porque ele estava ali? Por mais que
tentasse não conseguia se lembrar de ter agendado aquela visita. Aquele doutor
não tinha o perfil dos seus clientes.
Esse
doutor parecia honesto. E sem dinheiro.
Por
alguma razão que ainda não sabia, foi encaminhado para essa casa. Mas jurava
que sua visita nessa manhã seria com outro médico.
Mas
se estava lá, com certeza era coisa boa para ele. Não era homem de perder tempo
sem lucrar em algum negócio.
-
Vou pagar pra ver até onde isso vai dar - ele disse. - Se não funcionar com
esse doutor, vou investir em cima daquela velhota. Aquela sim tem grana. Fede a
dinheiro.
Escutou
a porta abrindo e se virou. Ao invés daquela mulher com olhos amarelos surgiu
uma garota com uniforme branco.
-
Acabou o plantão da outra enfermeira? - Horácio zombou.
-
Que enfermeira?
-
O tribufu de olhos amarelados e sem dentes.
A
moça de branco estava parada no corredor enquanto ele continuava ao lado da
janela. Ele percebeu a dúvida no rosto da garota.
-
Aqui não tem ninguém com essa descrição, Horácio. - Antes que ele dissesse
algo, ela completou: - O Doutor está chamando. Me acompanhe.
VII
Seis
pessoas esperavam na sala, um ao lado do outro sentados em cadeiras. A moça de
branco deixou-os lá e entrou em um aposento sem porta. Jorge, sentado na
primeira cadeira, podia ver partes do aposento. O médico estava em pé enquanto
falava algo com a moça.
-
Não lhe disseram que fumar aqui dentro é proibido?
Jorge
procurou quem falou aquilo e viu que era o jovem que se queixava de dores
quando chegara antes. Sílvio, se não se enganava.
O
rapaz apontava o dedo para a última moça que chegou. Ela o encarou e disse:
-
É comigo que tá falando?
-
Quem mais ficou pedindo cigarro quando chegou?
A
moça riu.
-
Seu trouxa. Você disse tudo. Eu pedi cigarro mas aqui ninguém fuma.
-
Eu senti cheiro de fumaça no meu quarto - Sílvio disse, furioso. - E você
estava no quarto ao lado.
A
moça deu de ombros. Não parecia disposta em prolongar a discussão com ele.
-
Benzinho, essa fumaça pode ter vindo de outro lugar. Vai ver que o doutor foi
acender uma fogueira pra queimar mato seco. Pode ter sido mil coisas, mas uma
coisa te garanto. Não acendi nenhum cigarro desde que cheguei aqui, não por
consideração à você, é porque eu não tinha mesmo. Se tivesse um cigarrinho
tinha ido lá fora pra não atrapalhar ninguém.
-
Mentirosa - descontrolado, Sílvio gritou. - Conheço o tipo de garota como você.
-
Conhece mesmo? Isso duvido. Tem todo jeito que nunca provou da fruta.
-
Graças a Deus que não - disse Sílvio, nervoso. Ele torcia os dedos e seus
joelhos tremiam como chocalhos.
Jorge
decidiu que era hora de acabar com aquela discussão inútil.
-
Sílvio, você pode ter se enganado. Como a moça ia fumar se não tem nenhum lugar
aqui perto para comprar cigarros?
Sílvio
torceu a boca e seus joelhos chacoalharam mais ainda.
-
Obrigada. O senhor é muito sensato.
Jorge
não sabia se ela agradecia ou apenas o ironizava. Preferiu ignorar qual das
opções era a correta e perguntou:
-
Alguém ouviu uma menina chamando pela mãe?
Jorge
olhou de um a um, então a mulher mais velha que tinha ares esnobes, disse:
-
Aqui na casa?
-
Creio que sim - afirmou Jorge. - Ela chorava e berrava pela mãe.
-
Eu não ouvi nada - disse a moça que se chamava Simone.
-
Não vi nenhuma criança nessa casa - disse a mulher esnobe. - Se tivesse uma,
com certeza já estaria correndo de um lado ao outro. Se não prestou atenção,
essa casa carece de espaços maiores.
-
O senhor não estava sonhando? - Simone perguntou.
-
Não, estava bem acordado.
-
Li em um artigo que algumas pessoas pensam que despertaram do sono mas ainda
estão dormindo e acabam confundindo o sonho com a vida real - disse Sílvio. Ele
tentava estalar os nós dos dedos, mas o máximo que conseguia era dobrar as
falanges em vão.
-
Não entendi o que você falou - disse Jorge.
-
Chamou o senhor de sonâmbulo - disse a fumante, rindo.
-
Não se meta onde não foi chamada - disse Sílvio, virando as costas para ela.
-
O menino ficou magoado - ela zombou.
O
único que não falou nada foi o gordo que se apresentou como advogado. Jorge
tentou lembrar do nome dele. Haroldo... Haroldo...
-
O Doutor pediu que entrasse, Horácio - avisou a moça de branco para o advogado.
Continua...