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sábado, 27 de dezembro de 2014

O CARTÃO CAPÍTULO 6

COMO É BOM JANTAR JUNTO COM A FAMÍLIA


Grata a surpresa que teve quando chegou em casa e viu Lizaura arrumando a mesa da sala para o jantar; tinha tanto tempo que Eunásio não sabia mais o que era jantar junto com sua família. Enquanto tomava banho, podia escutar Lizaura cantarolando na cozinha, Valdo falando no celular e Cininha reclamando da programação da tevê. Quando chegou na sala todos o esperavam sentados na mesa.
No período que ficou desempregado se acostumou em jantar sozinho no sofá equilibrando o prato na mão e com a televisão ligada na frente enquanto Lizaura comia na pequena mesa da cozinha às vezes acompanhada por Valdo ou Cininha. Mas agora parecia que sua vida familiar voltava ao que era antes. Tudo graças ao novo emprego.
A cadeira na ponta da mesa foi reservada para ele. Desajeitado, sentou-se com as costas retas e no momento que pegou o guardanapo de pano esbarrou no copo de vidro vazio que balançou, rodopiou e caiu para fora da mesa. Valdo, que estava sentando à sua direita, ágilmente pegou o copo vazioo no ar.
Agora é a vez da bronca, Eunásio pensou.
- Isso acontece - Lizaura, sentada na outra ponta da mesa, comentou, indiferente.
- Quanta agilidade - Cininha se espantou.
- Ora - Valdo se gabou. - Não é a toa que sou o goleiro do time do colégio.
Eunásio estava estupefato. Ninguém comentou do esbarrão no copo. Ninguém ironizou o quanto ele era desastrado. Não, nada de ironias. Agiram como se aquilo fosse um acidente corriqueiro, normal.
Mas até ontem, se ele fizesse qualquer coisinha do tipo: Perguntar o que havia para o jantar; como foi seu dia na escola, filha?; você chegou de madrugada, filho; tropeçar na dobra do tapete; insinuar que a conta do salão de beleza chegara num nível estratosférico... Bem, em todos casos acima seria repreendido pela esposa, escarnecido pela filha e ouviria de Valdo que já tinha dezessete anos e era dono do próprio nariz. Agora, se tivesse esbarrado no copo, mesmo com a agilidade de Valdo e salvando Lizaura em varrer os cacos de vidro, bem, provavelmente seria expulso da mesa e ficaria sem jantar naquela noite.
Nesse momento, a cena beirava ao surreal. Valdo e Cininha conversavam amigavelmente como dois irmãos civilizados e o mais surpreendente... a televisão estava sintonizada no jornal e nenhum deles disputava o controle remoto para assistir uma partida de futebol ou um filme.
Mas o que o surpreendeu mesmo foi ter ouvido Lizaura, em pé com um prato vazio na mão olhando diretamente para ele e perguntando:
- Como está sua fome, Eunásio? Quer muito ou pouco - Lizaura apontou para as panelas em cima da mesma.
Aí já é demais, pensou Eunásio de queixo caído. Há quanto tempo que ela não fazia seu prato? Buscou na memória e concluiu: Nunca!
A comida era simples; arroz branco, feijão manteiga, carne assada recheada com calabreza, batatas coradas, salada de alface e tomates. Tudo delicioso. A cada garfada, Eunásio mastigava lentamente, esperando que aquele momento durasse o maior tempo possível; curtindo cada momento mágico desse jantar em família.
O som do toque de celular quebrou o silêncio reconfortador. Eunásio procurou de onde vinha o som; Lizaura sorriu (um sorriso cândido!), Valdo bebeu um gole de mineirinho e atacou seu prato, mudo.
Cininha pronunciou quando cessou os toques do celular:
- Avisei a Beto do nosso jantar. Vive pegando no meu pé...
Beto... O namorado da semana, Eunásio concluiu.
- Pai - Após esvaziar seu prato, Valdo falou. - Tio Ambrósio ligou hoje pra mim. Tá querendo que eu trabalhe no escritório dele em Bonsucesso.
- É mesmo? - Eunásio se espantou com aquela notícia. Não sabia se o espantava mais do fato de Ambrósio ter arrumado um emprego para o sobrinho que tinha fama de vagabundo ou de Valdo se mostrar interessado em trabalhar. Todos sabiam que o Ambrósio patrão era completamente tirano com seus funcionários.
- Sabe que o convite do tio tem um dedinho do Pedrinho - Cininha sugeriu. Havia uma ponta de maldade nas palavras.
- Que tenha, Cininha - Valdo se defendeu. - Pedrinho é mais que um primo. Considero ele como irmão.
- Irmão - Cininha riu.
Lizaura interveio.
- Chega, Cininha. Se Pedrinho interferiu ou não a favor do Valdo, isso não interessa. O importante é que Ambrósio está se preocupando com o futuro do sobrinho.
- Depois de tudo que ele fez com a gente - Cininha reclamou. Ela afastou o seu prato da sua frente e pegou o copo de refrigerante mineirinho. - Mãe, tio Ambrósio nunca olhou para a gente. A senhora é única irmã dele, e o que ele fez para ajuda-la? Nada. Simplesmente ignorava.
Os novos cabelos de Lizaura, de um azul piscina, brilhava com o reflexo da lâmpada de cem velas, suspensa em um fio acima dela.
- Não exagera, Cininha. Pode até ser que no tempo do desemprego do seu pai ele estivesse nos evitando sim. Mas mesmo assim ele se lembrava da gente nas datas especiais...
Eunásio perguntou:
- E quando começa, Valdo? - Aquele emprego era um suspiro de esperança para ele. Valdo trabalhando significava que ele teria alguma coisa útil para ocupar a cabeça, e quem sabe se afastasse também daqueles garotos da rua? Corria um boato entre alguns moradores da rua que esses garotos andavam praticando pequenos delitos. Era boato, mas sempre existia um fundo de verdade nesses falatórios. Por mais que Valdo fosse rebelde, não queria acreditar que ele também participava daqueles delitos.
Valdo coçou a cabeça e respondeu:
- Bem, ainda não respondi. O lance é a distância.
- Distância é o de menos. Aqui na Alameda passa um ônibus que vai até Madureira, e passa em Bonsucesso.
- Ônibus? Tá zoando com minha cara! - Valdo fez uma careta de repulsa. - O senhor acha que tenho estrutura de pegar aquele ônibus que vem de Alcântara lotado de pobres? Ele sempre vem lotado. É ruim viajar em pé, espremido...
Eu ando e não acho ruim, pensou Eunásio.
- Andar de ônibus cheio não tira pedaço de ninguém. Além do mais, da Alameda até a ponte são duas paradas, e depois que chega no Rio, pega a Brasil e já entra em Bonsucesso...
Valdo reclamou.
- Não nasci para isso, pai.
- Ambrósio comprou um carro para Pedrinho - interveio Lizaura na conversa dos dois.
Eunásio a fitou. Finalmente o jantar entrava nos eixos.
- Foi? Pedrinho já tem dezoito anos?
- Você sabe muito bem que ainda não. Mesmo assim o pai pensou no conforto do filho e comprou um Ranger. - Lizaura respondeu com desprezo.
Eunásio preferiu não comentar nada. O que dissesse não ia adiantar muito. Agora estava explicado aquele inusitado jantar. Lizaura queria alguma coisa, e alguma coisa dizia que era bomba.
Lizaura pousou o garfo no seu prato quase vazio, passou o guardanapo por cima do espesso buço descolorido e disse:
- Espero que não tenha esquecido do aniversário de Valdo.
- Não esqueci - Eunásio disse quando engoliu um pedaço de carne. - É dentro de três meses. Deu uma olhada rápida no filho.
Valdo era um rapaz espigado, cabeludo e com uma barbicha rala no pequeno queixo. Tinha sobrancelhas grossas que puxou aos da mãe e olhos castanhos pequenos e juntos. Estava usando uma camiseta preta que tinha uma estampa de uma horrorosa caveira sorrindo. Para Eunásio, seu filho sempre usava a mesma camisa. Podia notar que estava puída nas mangas.
- É, pai - disse Valdo sorrindo um sorriso metálico. Graças ao seu tio Ambrósio fez tratamento dentário e agora exibia um aparelho para corrigir a arcada superior. - Queria que o senhor me desse um presente antecipado. Estive dando uma olhada na concessionária e um amigo meu que trabalha lá me garantiu um preço camarada na moto. Pode ser financiada em tantos meses pagando uma merreca.
Dessa vez Eunásio levantou o rosto do prato. Franziu o cenho e perguntou:
- Uma moto?
- Isso. Só assim posso trabalhar em Bonsucesso na boa.
Antes que Valdo respondesse, Lizaura se intrometeu.
- É o mínimo que pode dar ao nosso filho, Eunásio. Ele merece muito mais.
- Isso, pai - disse Valdo ao mesmo tempo. - Olha que nem é a mais cara! Dá pro senhor pagar na boa.
Eunásio olhou sua mulher e depois virou o rosto para a direita e mirou seu filho. Cininha levantou-se sem pedir licença, pegou seu celular e conferiu quem tinha ligado para ela. Ela pareceu zangada com o que viu. Era uma menina bonitinha, muito branca e com olhos cinzentos e arregalados. Seus cabelos chegavam nos ombros e eram louros. Do jeito que balançava a cabeça significava insatisfação.
- Valdo, não captei o que falou... Você quer que eu faça um financeamento para comprar uma moto para você?
Valdo continuava com aquele sorriso metálico.
- Isso aí, pai.
- Garanti a ele que você vai dar esse presente antecipado - Lizaura disse, enfática. 
Sentindo uma sensação de impotência o corroendo por dentro, Eunásio não podia acreditar naquela conversa. Era completamente surrealista.
Afastou o prato com as duas mãos, pegou uma garrafa d'agua e encheu o seu copo. Deu dois goles e pousou delicadamente o copo na mesa. Sentiu a raiva o minando por dentro e não queria perder a cabeça. Lizaura falava, Valdo também falava, Cininha resmungava, mas Eunásio não ouvia nenhuma palavra; o som que chegava aos seus ouvidos eram confuso, como um estranho dialeto alienígena.
- Valdo é um filho maravilhoso...
- Pai, a moto é vermelha sangue...
- Em quê Pedrinho é melhor que Valdo?
- Gente, quero sair, minhas amigas...
- Meu amigo facilita...
- Honre as calças que veste, porra!
- Basta - disse Eunásio, dando um tapa mesa. Todos ficaram em silêncio, mas não mostravam medo e tampouco respeito. Lizaura tinha os úmidos lábios cerrados e gotinhas de suor brilhavam no buço descolorido; Valdo permanecia com aquele sorriso metálico zombeteiro e batucava a mesa com os dedos da mão direita; Cininha, sentada no sofá com as pernas cruzadas para cima e com o celular grudado na orelha largou um imenso bocejo para mostrar quanto estava entendiada com aquela conversa toda. Sob a lâmpada de sessenta velas, o ambiente estava amarelado, e todos pareciam sofrer de hepatite.
Lizaura o encarou com olhos frios.
- Olhem aí - Lizaura aplaudiu. A voz dela era cortante, como uma navalha rasgando a pele. - Depois de tantos anos esse grande homem resolveu ter voz ativa aqui em casa, cantar de galo. Como mudou depois que conseguiu o emprego que o meu irmão arrumou para ele!
Uma leve dor de cabeça misturada com uma intensa nausea tomou conta de Eunásio. Ele encheu mais um copo de água e esvaziou em dois goles.
- Desculpe, fiquei nervoso...
Lizaura tinha apoio dos filhos, tanto que Cininha interveio:
- Não admito que o senhor berre com a minha mãe.
- Eu não berrei...
- Grande merda de homem que dorme comigo - zombou Lizaura. Ela pegou um pedaço de pão e limpou o restante de molho no seu prato. Enquanto mastigava, disse, ferina: - Durante três anos a tua família te apoiou incondicionalmente enquanto ficou desempregado. Agora que arrumou um emprego, graças à generosidade do meu irmão, quer dar uma de pão-duro e economizar alguns reais. Nem quando trabalhou naquela empresa você foi tão ganinha assim. Lembro muito bem que seu salário vinha pra minha mão, e você nunca reclamou por causa disso.
Sim, Lizaura, está coberta de razão. Tirando a parte que eu depositava na nossa poupança conjunta, entregava o resto do dinheiro pra você. E deu no que deu...
- ... agora se faz de rogado quando é dar um presente para seu filho. - Lizaura continuava desfiando o rosário de lamentações. - Eunásio, cada vez mais você decepciona a sua família.
- Não é isso, Lizaura. Ainda estou em experiência. Sabe que esse trabalho não é garantido.
- Crianças - Exclamou Lizaura, - vejam como seu pai é pessimista!
Eunásio massageou as têmporas com as pontas dos dedos. Aquilo tudo estava errado.
- Não é pessimismo, Lizaura. É ser realista. Nossa situação não é igual há três anos. Naquele tempo recebia ótimo salário e viviamos muito bem. Mas tudo isso mudou.
Valdo ficou e reclamou:
- Não vou ficar aqui escutando isso, pai. Já tô de saco cheio das suas lamentações. Mãe, eu falei com a senhora. O trabalhão todo que a senhora teve para preparar esse jantar só foi perda de tempo. Meu pai prefere me ver desempregado do que comprar uma moto pro meu emprego. Depois não reclamem se eu continuar chegando tarde em casa..
- Calma, filho - Lizaura disse, angustiada. - Eu prometi...
- Uma promessa que nunca pode ser paga - Valdo reclamou. - Vou sair.
- Eu também vou - Cininha aproveitou a deixa.
- Se demorarem muito liguem me avisando - pediu Lizaura. E olhando diretamente para o filho, prometeu: - Juro que terá sua moto. Não sei de que jeito, mas vai ter. Palavra da mãe.
Valdo inclinou e beijou Lizaura na testa.
- Quem sabe, mãe.
Depois que os dois saíram de casa, Lizaura pegou os pratos da mesa, pôs tudo na pia e voltou na sua cadeira. Eunásio tinha uma aparência cansada, abatida, mas a mulher não se comoveu.
- Bem, agora é a nossa vez. Acabou seu espetáculo de merda. Não adianta nada ficar dando uma bambambam da casa. Tua moral aqui dentro de casa é zero idiota. Já te falei, pra cima de mim você nunca vai cantar de galo.
Eunásio não retrucou. Apenas olhava para o novo corte no cabelo de Lizaura. Dessa vez ela pintara o cabelo de azul piscina.
- Foi no salão hoje de novo... - Eunásio não conseguiu controlar a pergunta;
- Fui. Por quê? Agora sou proibida de querer ficar bonita... Bonita pra mim mesma?
- Com que dinheiro? Não recebi o pagamento ainda...
Lizaura balançou a mão mostrando indiferença à pergunta.
- Sempre dou meu jeito.
Eunásio teve um pressentimento nada bom.
- Lizaura. Sei que não temos nenhum centavo na poupança e também sei que não escondemos dinheiro debaixo do colchão.
- Se dependesse só de você, nunca teríamos um centavo em casa.
- Você juntou esse dinheiro?
- E sou mulher pra juntar alguma coisa? Olha, vou falar logo pra você. Pode ficar despreocupado, ainda não gastei por conta da miséria que chama de salário. Não. Isso foi presente de Ingrid.
Ingrid, a nova namorada oficial de Ambrósio.
- E por quê ela te deu esse presente?
Lizaura sorriu. Era um sorriso cruel.
- Ingrid está organizando a pedido do Ambrósio, claro, uma recepção na casa de Teresópolis. Segundo ela, meu irmão chamou alguns empreiteiros para estreitar mais os laços de amizade...
Que nesse caso são negócios... Tipo de negócio não tenho ideia e nem quero saber...
- Então - Lizaura continuou dizendo. Enquanto falava, passava a mão nos cabelos azuis-piscina orgulhosa. - Minha nova cunhada Ingrid pediu minha ajuda nessa recepção. Como vai ter um serviço de buffet, e ela sabe muito bem que sou ótima para organizar tudo, nos chamou pro fim de semana em Teresópolis.
- Esse fim de semana? - Cada vez menos Eunásio gostava do que ouvia.
- Não, pedro-bó, no ano que vem - Lizaura rosnou. - Claro que é. Ela vai passar aqui em casa para nos levar... - Ela se lembrou de algo e consertou: - A carona é para mim, Cininha e Valdo. Você tem que ir de ônibus.
Eunásio suplicou:
- É melhor ficar aqui em casa mesmo...
Lizaura deu um tapinha no braço do marido e falou:
- Enxergue o futuro, paspalho. Pára um minuto com esse pensamento pobre. Já te disse. Se fosse mais esperto, estaríamos ricos e não nessa merda hoje. Meu irmão vai receber gente de grana, de muita grana. Até seu patrão vai, Ingrid me disse. É sua chance de mostrar seu talento a essa gente. Eunásio, não acredito que está satisfeito com a nossa condição. Não acredito mesmo. Volte a ser o Eunásio que conheci, o Eunásio ambicioso... burro, mas ambicioso. Não erre mais como errou naquela vez. Acerte uma vez na vida, merda.
Ele escutou. Mas sua vontade era mudar. Mudar para melhor, acertar suas dívidas (que Lizaura fez, mas em seu nome), trabalhar em paz, não ficar com medo de um telefonema, de uma ameaça... Queria deixar o passado para bem longe... Se possível, esquecer de um certo dia que dormiu empregado e acordou desempregado.
Mas agora tinha essa recepção. E com certeza o final de semana seria bem longo...

Continua...

No próximo capítulo
FIM DE SEMANA EM TERESÓPOLIS PARTE 1

Rogerio de C. Ribeiro




quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O CARTÃO CAPÍTULO 5

ATENDIMENTO PERSONALIZADO

- Falta um número. - Eunásio disse em voz alta enquanto relia pela terceira vez a mensagem que recebera: "Para desbloqueio do seu cartão e troca da senha padrão, ligar para o telefone 222-3333" .
- Senhor? - Kellerson abandonou as palavras cruzadas que fazia e agora estava em pé ao lado dele. Eunásio nem percebeu a aproximação do rapaz marcado de espinhas vermelhas enfeitando sua cara.
- Não é nada - disse o conferente, dobrando o papel e escondendo-o na palma da mão. O contínuo deu de ombros. Ele tinha uma pequena pasta debaixo do braço e com passos rápidos saiu do escritório.
"Agora tá claro que isso tudo é armação. Querem desviar meu foco das planilhas de pagamento de todo jeito. Enquanto eu ficar aqui matutando de um cartão que nunca pedi, se cria um véu e esconde os erros que eles cometem. E não cumprindo minha função, acabo parando no olho da rua. Com certeza agiram dessa forma com o antigo conferente. Armaram tanto pra cima do coitado que acabou tendo um piripaque e agora está em casa encostado. Mas se pensam que também vou baixar a guarda, eles estão muito enganados. Eunásio pensou, com raiva daquela brincadeira sem graça. Ainda não sei como criaram esse cartão; é provável que compraram de alguma loja que vendem coisas para enganar trouxas. Só pode ser isso. Só que como dizem, nenhum crime é perfeito. Nessa ansiedade de sacanear, acabaram cometendo um erro primário. Esqueceram de botar mais um número no telefone que inventaram. Mas deixa quando eles vierem do almoço. Vou acabar com essa palhaçada!"
Não teve que esperar muito tempo. Menos de dez minutos os quatro chegaram juntos e cada um foi para sua mesa. Eunásio disfarçava, simulando que estava compenetrado em um relatório de compras, mas seus olhos ampliados pelas grossas lentes dos óculos corriam sorrateiramente por toda sala. Maurílio parecia concentrado com alguma coisa no computador. Se estava preparando a folha de pagamento dos peões  ou   assistindo um vídeo pornô, Eunásio não sabia. Mas desconfiou do sorriso malicioso estampado naquele rosto com uma sombra azulada de barba feita enquanto espremia os olhos no monitor; com certeza, coisa boa não era.
Atrás da mesa de Maurílio, Eurico, um sujeito magro e ossudo, discutia com alguém pelo celular que agarrava com uma mão com estufadas veias azuis. Seu comprido pescoço vermelho também tinha um par de veias azuis que pareciam prontas para explodir enquanto ele soltava perdigotos na tela do seu computador a cada frase sussurrada temperada de ódio. Desde que entrou na firma, Eunásio nunca viu Eurico sem aquele celular colado na orelha e discutindo com alguém. Imaginou se Eurico tomava banho com o celular e dormia com ele. Riu baixinho com a imagem que criou.
A mesa de Birinha ficava ao lado a do Maurílio, mas quase não sentava ali. Normalmente puxava uma cadeira e sentava ao lado de Xuvisquem. Mal chegaram do almoço, discutiam da última partida do Flamengo e dos erros de arbitragem que prejudicaram o time. Enquanto Birinha esbravejava, Xuvisquem sussurrava, concordando com o amigo. Logo em seguida o novo tema em debate era sobre as novas garotas que  frequentavam o Clube Cinco de Julho  e depois o tema foi falta de dinheiro. As discussões mudavam de repente mas Eunásio notou que único assunto que nunca discutiam era das tarefas que tinham que fazer na empreiteira.
A porta abriu de repente e Vandilson atravessou a sala sem falar com ninguém. Atrás dele Andrezinho vinha quase correndo. Pela janela de vidro que separava a sala do patrão, Eunásio viu André, o eterno puxa-saco, tagarelando e ao mesmo tempo gesticulando os braços para um Vandilson entendiado, sentado na sua grande cadeira de couro, que enquanto o ouvia, tamborilava uma caneta na mesa.
Um deles... Ou todos juntos... Agora desmascaro eles...
Eunásio empurrou o relatório para o lado, estendeu o braço e pegou o telefone fixo. Discou o número zero e quando ouviu o som contínuo da linha, teclou os números da estranha mensagem.
Me sinto um completo idiota. Daqui a pouco um deles vai cair na gargalhada e vai acabar se entregando.
- Estranho - Eunásio disse de propósito em voz alta e aparentando curiosidade. - Como vou desbloquear meu cartão de crédito se o número que me passaram está faltando um número?
Eunásio ficou em silêncio enquanto em uma das mãos segurava o fone e a outra mantinha o indicador suspenso em cima das teclas do telefone fixo. Esperou para ouvir as risadas e indiretas dos colegas, mas notou, zangado, que ninguém prestou atenção no que ele tinha falado. Continuavam agindo da mesma forma como quando chegaram do almoço. O ignorando completamente.
Ah, é? Estão querendo que eu ligue. Vou fazer a vontade deles.
Eunásio teclou os sete números já sabendo de antemão que o único som que ia ouvir seria o sinal de ocupado.
- 222 - enquanto teclava dizia os números em voz alta. - 3333 - Para sua surpresa, ouviu o som do sinal chamando.
Como é que pode?
Atenderam no primeiro toque.
- Cartão de crédito Infinito, em que posso ajudar? - Ouviu uma voz masculina no outro lado da linha.
Sentiu a mão que agarrava o fone tremendo. Como era possível? Mentalmente contou os números, confirmando que eram apenas sete. Será que era daquelas ligações gratuitas?
- Alô... - Eunásio soltou um fiapo de voz.
Ouviu a voz masculina dizendo:
- Atendente Lucian Belmar, pois não.
Sentiu a garganta seca e uma súbita tontura. Bagos de suor deslizavam pelo seu rosto e encharcavam o colarinho da sua camisa social. Seus colegas do escritório continuavam nos seus afazeres e na sala do patrão Andrezinho mostrava uma revista para um agora interessado Vandilson que folheava as páginas avidamente.
- Alô - disse Eunásio novamente. - Quem é que está falando?
- Atendente Lucian Belmar  - repetiu a voz do homem, com paciência - Posso ajudar o senhor em alguma coisa?
Eunásio respirou fundo. Mesmo com a temperatura glacial que fazia na sala por causa do ar-condicionado, rios de suor empapava suas costas, colando a camisa no corpo.
- Recebi um cartão de crédito por engano - Eunásio disse.
O atendente Belmar retrucou com uma voz calorosa:
- Impossível, senhor.  
- Tanto que não é impossível que recebi duas vezes um cartão que nunca pedi.
- Tem certeza que o senhor não pediu?
- Acabei de falar isso.
- O cartão está com o senhor?
- Está - Eunásio replicou, tonto. - Aqui na minha frente.
- Como é o seu nome? - Perguntou o Atendente Belmar, com a voz soando gentil.
- Eunásio Pindorello.
- Aguarde só um momento. Vou verificar no sistema.
Eunásio achou que ouviria a gravação de uma irritante música enquanto ficaria plantado com o fone na orelha durante uns cinco minutos, mas o que ouviu mesmo foi um farfalhar de folhas sendo viradas, como se fosse um caderno.
Caderno em espiral, pensou.
Enquanto chegava no outro lado da linha o som de páginas sendo viradas, Eunásio espiou Maurílio. O sujeito barrigudo e peludo tinha se levantado e agora abria e fechava as gavetas do arquivo catando pastas separadas por ordem alfabética e juntando algumas consigo. Birinha  estava em pé com as mãos nas costas ao lado da grande janela reclamando que não via nenhuma mulher bonita no pátio do estaleiro.
- Aqui no estaleiro, acho que só Lindinha se salva... - lembrou Eurico, refestelado na sua cadeira e com as pernas esticadas sobre sua mesa atulhada de papéis com o celular colado na orelha. Ouviu alguma coisa e disse: - Não, meu amor, estou falando com Birinha. É, eu falei que só você, minha lindinha, que me salva. - Eurico soltou um sorriso e piscou para Birinha, que contribuiu a piscadela.
- Nem essa salva mais - lamentou Xuvisquem com sua tranquila e macia voz. - Tô sabendo que ela anda saindo com Zé Ducão.- Ante a expressão surpresa de Birinha, continuou: - Não, irmão, você não ouviu mal. Ducão, o encarregado de manutenção. O que fica espalhando propaganda enganosa de que tem três pernas. Quando me disseram, juro que no início não acreditei. Fiquei pensando comigo mesmo, não é possível que uma menina tão bonita ia se envolver com um cara como aquele. A menina, além de linda, é de uma simpatia fora de série, e o Ducão a gente já conhece como é.  Quando Andrezinho me contou que tudo era verdade, fiquei de cara. E pra completar ainda vi aquele piteuzinho saindo da Renave de mãos dadas... Captaram? De mãos dadas com aquele ogro de dois metros e com cara de psicopata.
Mesmo carregando mais de dez pastas nos braços, Maurílio prestava  atenção no que Xuvisquem falava. Quando chegou na sua mesa abriu os braços e as pastas caíram sobre outras que já estavam ali.
- A Bela e a Fera - Maurílio silvou enquanto voltava para o arquivo.
- Pode levar fé no que vou falar - Birinha disse com raiva. - Essa garota só tem pose. Metida a gostosa e difícil. Não é por que mostra os dentes que é simpática. Ela não vale nada, é igual a uma nota de três reais.Nem de graça quero aquela boceta.
- Não desdenha o que não pode comprar - Eurico riu. - Fala isso porque a menina nunca te deu mole.
- O negócio é que ela gosta da terceira perna do chefe de obras - Maurílio gargalhou. Ele tinha o cotovelo apoiado na gaveta aberta do arquivo e participava da conversa com os olhos brilhando. - Ela é daquele tipo que morre de tesão com peão de obra. Se o cara tá usando macacão sujo e capacete, aí mesmo que ela baba. Quem trabalha no administrativo não significa porra nenhuma pra ela.
- O cara tem que ter calo na mão - calculou Xuvisquem. - E tem que tá fedendo quando fica em cima dela...
- E adorar chupar um pau sebento - Maurílio dobrou de tantas gargalhadas.
Enquanto aguardava o retorno do atendente Belmar, Eunásio ouvia aquela conversa ao seu lado. Não acreditava que aquela linda morena que tinha um exuberante sorriso estivesse saindo com Zé Ducão. Era o mesmo que misturar água com azeite. Mas, ora bolas, e se estivesse saindo? A vida era dela. Não tinha que dar satisfação para ninguém. Nessa vida tem gosto para tudo.
- Seu Eunásio Pindo? - Ouviu a voz do atendente no outro lado da linha.
O conferente sentiu os dedos contraindo o aparelho colado no seu ouvido:
- Estou na linha.
A voz do atendente era gentil:
- Mais uma vez o cartão Infinito agradece pela sua preferência. O senhor pretende trocar a senha do cartão?
Eunásio tinha um bolo comprimindo sua garganta.
- Droga! Não pedi nenhum cartão.
- Ah,sim, entendi, o senhor prefere permanecer com a senha padrão que é zero, zero, zero e zero. Quatro vezes zero.
- Não foi isso que disse. Comuniquei que não...
- O senhor pode utilizar o cartão em qualquer banco de autoatendimento, como também em compras em lojas, supermercados...
- Belmar? Seu nome é Belmar?
- Lucian Belmar, às ordens. O senhor prefere que eu o chame de senhor ou de você?
- Prefiro nada. Quero que me explique só uma coisa. Que empresa é essa que manda uma correspondência sem remetente e ao invés de mandar pelo correio entrega em mãos? E que sistema é esse que tudo é anotado num caderno? Que brincadeira é essa?
- Bem, senhor, a data de virada do seu cartão é todo dia dezoito, e a fatura é para todo dia cinco do outro mês. Está bom para o senhor?
- Não ouviu nada do que falei agora? - Nervoso, Eunásio sentia o coração disparando.
- Entendi - disse o atendente Belmar em uma voz compreensiva. - O senhor prefere que a data da fatura seja todo dia dez de cada mês. Posso alterar aqui no sistema...
- Caderno - rugiu Eunásio, impotente.
- Já modifiquei a data da fatura. Mais alguma dúvida, senhor?
- Não quero nenhum cartão - Eunásio sabia que se não controlasse os nervos, podia ter um troço qualquer.
- O senhor já falou isso antes. - A voz do homem era paciente, como se estivesse falando com uma criança de cinco anos. - E já anotei no sistema. A senha do cartão é o zero, zero, ze...
- Me escuta!
No escritório os colegas continuavam contando suas mentiras, ignorando-o completamente. Até Kellerson, que chegara da rua, juntou-se ao grupo. E na sala privativa do patrão, Andrezinho mostrava outra revista para um Vandilson sorridente e exalando luxúria dos olhos.
- Seu Eunásio Pindo, nossa empresa espera que faça bom uso do seu cartão de crédito.
Sentiu que perdia o resto da paciência com aquela voz robótica.
- Meu amigo - Eunásio puxou forças para não perder o fiapo de controle. - Pela última vez vou falar. Eu. Não. Pedi. Porra.Nenhuma. De. Cartão.
- Não é isso que o sistema me diz - Era impressão sua ou a voz do atendente Belmar agora soava irônica?
E mais uma vez,  que sistema era aquele que era anotado em um caderno?
- Dane-se o sistema. Vocês erraram de cliente. Mandaram um cartão para mim, mas que deve ser de outro Eunásio.
- Nossa empresa tem como meta nunca cometer erros.
- Mas sempre tem uma primeira vez? Não conhece essa frase? Dessa vez sua empresa errou. Como está escrito meu sobrenome?
Novamente ouviu o som de páginas sendo viradas.
- Eunásio Pindo. - Respondeu o atendente, a voz soando cansada.
- Só Pindo? - Ali estava o erro. - Mais nada? É isso que tô tentando te explicar. Sei que não é culpado dos erros cometidos em outro setor, mas aí está a prova que...
- Senhor, seu nome completo é Eunásio Pindo... - Foi impressão sua ou notou uma leve hesitação no tom da voz do atendente Belmar?
- Viu, só não entendi ainda o porquê de entregar a correspondência em mãos no meu trabalho, já que ninguém sabia que eu tinha...
- ... Pindorello. Eunásio Pindorello - completou o atendente Belmar, agora soando com enfado.
Eunásio engoliu em seco.
- Não falou que era só Pindo?
- Disse o que está escrito no seu cartão. Seu sobrenome é grande, por isso foi reduzido.
-  Bem, quero então cancelar esse cartão que nunca pedi.
- O senhor quer anotar o número do protocolo ou não?
- Não quero saber de protocolo nenhum, só quero...
O som da voz agora soou eufórica:
- Seu cartão foi desbloqueado e sua senha é a padrão. Agradecemos pela sua ligação. Qualquer dúvida o senhor pode nos contactar novamente.
- Ei, espera aí,  não é isso, não posso ser dono do cartão, meu nome está sujo no...
Tu tu tu tu tu - O atendente Belmar interrompeu a ligação.
Eunásio pousou lentamente o fone no gancho e se ajeitou na cadeira, alto e ereto, tonto e com o semblante fechado. O falatório corria solto ao seu lado mas ele não entendia nenhuma palavra dita.
Novamente pegou o cartão de crédito de cor preta com detalhes em prateado e passou a ponta do dedo indicador sobre os relevos. Ainda se sentindo desconcertado, guardou automaticamente o cartão no bolso da camisa e suspirou
Isso não tá acontecendo comigo, pensou enquanto ajeitava o relatório para conferir.
Ouviu uma sonora gargalhada. Não sabia de onde veio aquela gargalhada, mas com certeza estavam rindo dele.
Baixou a cabeça e ajeitou os óculos.
Deixa pra lá. Eles ganharam. Não falaria mais nada a respeito do cartão.  Sua defesa agora eram os erros dele nas folhas de pagamento. Vamos ver quem vai rir por último nessa brincadeira sem graça.



Continua...
No próximo capítulo

É SEMPRE BOM JANTAR COM A FAMÍLIA


 Rogerio de C. Ribeiro

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O CARTÃO CAPÍTULO 4

APROVEITANDO O HORÁRIO DE ALMOÇO

- O almoço está na mesa - Tia Milu avisou, enquanto organizava os talheres nos devidos lugares. A pequena mesa na também pequena cozinha tinha sido forrada com uma toalha de plástico axadrezada nas cores vermelho e branca e havia dois pratos virados para baixo. No fogão de quatro bocas, o feijão borbulhava na panela de pressão e a panela de arroz branco exalava um adorável aroma; ao lado das panelas uma travessa de prata com carne assada e batatas aguardava para ser levada na mesa. Da pequena janela da cozinha a claridade do sol do meio-dia iluminava o ambiente. Tia Milu era magra, de tamanho médio, de cabelos prateados presos em um coque. O rosto dela lembrava muito as fotos de avós dedicadas que contavam histórias para os netos. Tia Milu arrumou a colher e a faca cega ao lado do prato do seu sobrinho, deu uma espiada na direção da sala e chamou novamente: - Vem logo, querido, senão a comida esfria.
- Não quero comida. Quero pão com ovo estrelado.
- Meu queridinho, titia fez uma comida tão gostosa!
- Não quero!
Tia Milu desligou o fogo da panela de feijão e foi para a sala. Um menino magro, de óculos com lentes grossas para sua miopia de seis graus, estava sentado no sofá com um gibi da Turma da Mônica colados na cara.
Tia Milu aproximou-se em passos miúdos, desviou-se da pequena mesa abarrotada com revistas em quadrinhos, sentou-se com as costas retas e levemente passou longos dedos nos anéis encaracolados dos cabelos crespos do menino.
- Querido, você não pode passar a vida inteira só comendo pão com ovo. Está em uma fase que seu corpo necessita de proteínas.
O menino baixou o gibi que lia, virou o rosto encovado e por detrás do novo par de óculos, seus olhos cinzentos aumentados pelas grossas lentes pareciam zangados.
- Eu. Quero. Pão. Com. Ovo. - disse, pausando lentamente as palavras, e novamente levantou o gibi e seu rosto ficou escondido atrás da revista.
Verdade seja dita, Tia Milu era muito paciente. Ela suspirou, tirou os dedos dos cabelos do menino e se levantou. Fez mais uma tentativa, e ante a mudez do menino de seis anos, deu as costas, voltou para a cozinha e disse:
- Querido, com gema mole ou dura?
Fazia bastante tempo que não pensava em Tia Milu, por isso assustou-se com aquela inesperada lembrança. A impressão foi que aquele almoço tivesse acontecido ontem e não há trinta e oito anos. Eunásio sorriu com essa memória afetiva de quando tinha seis anos, que a única preocupação que tinha era apenas visitar a banca de jornais do seu Amarildo com tia Milu e pegar emocionado os novos números da Turma da Mônica, Pato Donald e Disney Especial. E quando chegava de noite sua tia preparando um delicioso sanduíche de pão com ovo estrelado.
Pensando melhor, talvez tivesse se recordado desse dia por que agora estava  sentado em um  banco de cimento da praça do Barreto enquanto desembrulhava um papel de pão manchado de margarina seu almoço, um sanduíche de ovo frito.
 Eunásio aproveitava seu horário de almoço e ia até a Praça do Barreto, que ficava próxima ao estaleiro Renave, onde relaxava sentado em algum banco de cimento, observava o movimento do tráfego que vinham da Avenida do Contorno enquanto comia seu sanduíche. Mesmo que ao redor da praça tivessem vários estabelecimentos que vendiam refeições baratas, ele preferia saborear um pão dormido com ovo frito. O vale refeição que recebeu no segundo dia de trabalho nem estava mais com ele; entregara nas mãos de Lizaura para usar no mercado do bairro.
Com sacrifício e trabalho ia superar essa fase que já durava três anos. O tempo que ficou desempregado lhe serviu como uma pesada lição. Esses anos o afetaram de várias formas: Adquiriu baixa estima que nunca tivera antes, seu orgulho foi diluído e sua mulher começou a humilha-lo. Não só ela, mas toda família  o desprezava. Tudo por causa da alta qualidade de vida que tinham e que num piscar de olhos não tinham mais. Os domingos que almoçavam fora em churrascarias foram trocados por almoços em casa ou eventualmente no apartamento de Ambrósio; viagens que faziam para a Região dos Lagos ou para a serra ficaram apenas em fotos guardadas numa caixa, agora esquecidas dentro do armário da área de serviços; a facilidade de locomoção de um lado ao outro no Palio da empresa  foi trocado pela dificuldade de ônibus lotados; a tevê a cabo com todos canais se contentou em ser uma tevê com canais abertos e imagens fantasmagóricas. As roupas que usava atualmente eram as mesmas de três anos atrás, e cada furo ou rasgo era remendado por ele mesmo. A visita semanal ao salão de cabeleireiros que Lizaura fazia para dar um tom novo nos cabelos... Bem, foi a única coisa que não mudou em nada nesses três anos.
Enquanto Eunásio gastava sola de sapato visitando empresas e entregando seu currículo que provavelmente eram destinados às lixeiras, Lizaura administrava a casa e os filhos com a poupança conjunta que Eunásio investiu durante vinte anos visando um conforto maior quando  aposentasse. Enquanto ia de uma empresa a outra debaixo de um inclemente sol que torrava seus miolos, Lizaura utilizava os rendimentos da poupança com necessidades básicas que julgava serem primordiais: compra de três aparelhos de ar-condicionado para combater o eterno verão carioca, o cuidado que Valdo e Cininha nunca estivessem com suas carteiras vazias quando iam à baladas, festas e um passeio em Angra juntos com o primo Pedrinho. O momento infinito que Eunásio ficava sentado com outros candidatos de emprego aguardando sua vez na entrevista era também o momento infinito que Lizaura, com a cabeça enfiada no secador no cabeleireiro, ansiosa aguardava o resultado para a nova cor dos seus cabelos.
No dia que soube que a poupança chegara a um nível crítico, Eunásio quis saber como aquilo tinha acontecido, mas Lizaura, num rompante autoritário e com os cabelos coloridos de um azul brigadeiro, gritou:
"Só você é culpado por essa pindaíba que estamos passando, seu idiota. Se tivesse roubado mais, eu não ia ficar aqui contando centavinhos pra botar comida dentro de casa. Eu e as crianças não somos culpados pela sua burrice. Aprenda agora e bota a mão na consciência, Eunásio. Deu uma de cagão e agora quer cantar de galo dentro de casa. Comigo não! Só você que tem culpa dessa miséria que a gente tá passando, só você!"
Por mais que tentasse se defender das injustas acusações, suas palavras flutuavam no ar porque simplesmente Lizaura dava as costas para ele, pegava uma das várias bolsas que tinha pendurados no cabideiro do quarto e saía para gastar, ou como ela mesma frisava, acalmar sua fúria enquanto tingia seu cabelo com outra cor.
Abocanhou um grande pedaço de pão dormido com ovo e mastigou lentamente, sentado ereto no banco de cimento. Fazia uma tarde agradável, com o sol cercado por nuvens brancas e uma brisa agradável que vinha da Baía da Guanabara. A praça era modesta; tinha dois balanços e um escorrega para crianças, um coreto que atualmente abrigava alguns mendigos e usuários de droga nas noites e seis bancos de cimento. Mesmo com o abandono, era o lugar que ele ia para comer. Nesse horário a praça vivia deserta a não ser por alguns jovens uniformizados do colégio municipal que às vezes apareciam para conversar, fumar um baseado ou namorar. Eunásio observou um garoto de uniforme que devia beirar os dezesseis anos ou menos, com os cabelos compridos presos num rabo de cavalo e leve penugem que devia chamar de cavanhaque espalhada por um queixo quadrado. Ele caminhava de mãos dadas com uma garota de cabelos crespos e encaracolados, com enormes brincos em forma de coração vermelho balançando para frente e para trás a cada momento que ria e jogava a cabeça para trás com alguma coisa que o rapaz dizia no seu ouvido. Os dois sentaram em um banco em frente e enquanto Eunásio, pensativo,  mastigava seu sanduíche seco, lançou um olhar distraído nas pernas da estudante. Ela também usava uniforme branco, com saias pregadas azul e calçava sapatos pretos e meias brancas que chegavam no joelho. Mas a saia, curta, subiu mais ainda quando ela cruzou as pernas e exibiu um par de coxas grossas cobertos com pelinhos claros. Imediatamente a mão do rapaz deslizou suavemente em cima da coxa acima e enquanto alisava suavemente com as pontas dos dedos, novamente sussurrava no ouvido dela. E a garota negava balançando a cabeça, mas era  frágil a negativa, porque enquanto afastava a mão boba de cima da sua coxa, ria alto, jogando a cabeça para trás e sacudindo freneticamente os brincos de coração. Insistente, como uma aranha, a mão do rapaz voltava para o ataque, com a boca colada no ouvido dela.
Ah, os jovens, Eunásio divagou, mastigando lentamente o pão com ovo.
Um dia também foi jovem, também namorou no colégio. Mas isso parecia que tinha acontecido há séculos, como outra vida. Eunásio empurrou o último pedaço de pão, agora sem nenhum vestígio de ovo boca adentro, e meditou sobre a idade daquele casal que sentava na sua frente enquanto mastigava lentamente. Deviam ter a idade dos seus filhos. Teve uma pontada de ciúme quando imaginou sua filha saindo do colégio com um namorado novo, também sentada num banco de cimento de uma praça qualquer e sendo apalpada nas coxas.
Quase se engasgou com o pedaço de pão que mastigava e afastou aquela súbita e sórdida imagem da cabeça. Tossiu, bateu com o punho direito no peito e puxou uma lufada de ar. Notou o casal da frente olhando para ele. Pela expressão do rapaz, não parecia estar gostando muito da inoportuna plateia e súbito ficou de pé e puxou a menina pelo braço para junto de si. Antes de darem as costas, o garoto de barbicha ergueu o dedo médio para ele. Eunásio não conseguiu segurar o sorriso. Provavelmente o casalzinho suspeitaram que ele fosse tarado, daqueles que passavam as tardes nas praças aliciando jovens inocentes. Não se importou com que eles pensavam dele , mas por precaução também se levantou do banco antes que o jovem voltasse com alguns amigos para tirar satisfações.
Caminhou devagar com as duas mãos enfiadas nos bolsos da velha calça social, atravessou a praça até que passou pelo portão de grades e parou na calçada. O estaleiro ficava no outro lado da pista dupla e para atravessar a avenida era uma aventura, porque não tinha passarela e nem sinal de trânsito. Precisava de uma grande dose de paciência para aproveitar a hora certa que afrouxasse o fluxo de carros, caminhões e ônibus para atravessar com segurança. Às vezes a sorte sorria e conseguia  atravessar as duas pistas em menos de cinco minutos, mas tinha vezes que ficava parado no meio-fio mais de quinze minutos esperando o momento exato que poderia atravessar e não correr o risco de ser atropelado.
Nesse dia teve sorte, havia um congestionamento e os veículos,parados, torravam motoristas e passageiros debaixo de um inclemente e furioso sol . A brisa que sentiu na praça não existia ali no asfalto. Eunásio driblou os carros parados, viu um motorista de ônibus com os cotovelos apoiados no volante enquanto enxugava o rosto ensopado com uma flanela branca  e conseguiu pisar na calçada do outro lado. Ao lado dos portões duplos da Renave havia o boteco Filho da Mãe, que Zulmiro, ex-funcionário do estaleiro, montou depois que perdeu o braço esquerdo nas máquinas. Era um negro parrudo, que gargalhava com qualquer piada que ouvia, os cabelos brancos apesar de ter menos de cinquenta anos. O rosto simples e risonho enganava aqueles que não o conheciam. Se alguém tentasse dar um calote depois que bebesse, esse alguém se arrependeria em conhecer a ira de Zulmiro. A maioria dos fregueses eram grande parte os operários que largavam os expedientes para um jogo de sinuca, cervejas, traçados e partidas de suecas, e como todos eram frequentadores assíduos, a possibilidade de calote era zero.
Um dos frequentadores que batiam ponto todas tardes era um funcionário da empreiteira que Eunásio já vira ao lado de Andrezinho. Era o encarregado dos peões, José Durvalino, conhecido pelo apelido de Zé Ducão. Desde o primeiro dia que Eunásio viu Ducão no escritório, sentiu uma certa antipatia pelo jeito do peão. Era um homem alto, mulato de olhos verdes, com um bigodinho aparado nas pontas e que sujavam a parte superior dos grossos lábios. Eunásio soube por Andrezinho que Ducão era o homem de confiança de Vandilson no meio dos operários. Com ele não existia corpo mole e nem preguiça; tarefas eram para serem feitas dentro do prazo estipulado de qualquer jeito. Apesar de usar um uniforme que sempre vivia sujo, depois do expediente aparecia no Filho da Mãe bem vestido, com um colar de argolas que pareciam de prata e uma pulseira de correntes do mesmo tipo. Era o único que tinha mesa cativa no boteco; ali juntava os amigos em partidas de sueca que valiam cerveja ou então partidas de sueca valendo dinheiro.
Eunásio viu Zulmiro em pé na porta do boteco conversando com um moreno sentado em uma mesa com um copo de cerveja na mão, acenou e o proprietário do Filho da Mãe retribuiu. Atravessou os portões duplos da Renave; viu a barcaça que vinha da ilha do Vianna ancorando no cais e desembarcando, misturados, engenheiros, administrativos, operários de macacões e capacetes coloridos, gerentes de empreiteiras e visitantes.   
Passou pela guarita da entrada e cumprimentou com a cabeça Heron,  segurança da tarde que ficava isolado num cubículo de pedra e cimento e com telhas de amianto. Um pequeno ventilador aliviava o calorão que devia fazer ali dentro. Por um instante pensou em perguntar a Heron sobre o envelope que recebera. Como a carta não viera pelo correio, com certeza foi entregue por alguma pessoa. Chegou a dar um passo mas antes que se aproximasse da guarita, parou. Lembrou-se que a correspondência lhe foi entregue de manhã, e na guarita pela manhã ficava outro segurança, o Malaquias.
Sentindo como se tivesse um maçarico direto na sua cabeça, apressou os passos em direção do prédio de quatro andares que reuniam várias empreiteiras. Esbarrou em um sujeito engravatado com uma pasta na mão e com um celular na outra que reclamava com alguém do calor infernal em pleno mês de junho, passou por Andrezinho que esperava a próxima barcaça para a ilha acompanhado de Zé Ducão, que vestia um macacão imundo e que segurava o capacete branco de encarregado, adentrou no pátio cimentado que tinha a escultura de um navio na frente da portaria e entrou no pequeno edifício que trabalhava. Na entrada uma grande mesa com ramais telefônicos três jovens de uniforme verde claro atendiam  visitantes. Ao lado delas um segurança armado montava guarda ao lado das quatro roletas eletrônicas. Ali pelo menos tinha ar-condicionado. Eunásio lançou um furtivo olhar para uma das funcionárias,  uma morena de cabelos encaracolados, de lábios carnudos e úmidos e que quando sorria, exibia uma fileira perfeita de dentes brancos. No crachá estava escrito seu nome: Linda Flores. Realmente, o nome combinava com a pessoa. Eunásio não sabia que idade ela tinha, mas calculou que tivesse mais ou menos uns vinte e cinco, vinte e seis anos. Era a mais simpática das atendentes e única que o cumprimentava e sorria toda vez que o via.
Em seus delírios, Eunásio se imaginava jantando em um restaurante de frutos do mar com Linda de acompanhante e um garçom servindo em gigantescas taças de cristais vinho tinto, enquanto um grupo de violonistas tocavam uma música romântica exclusivamente para eles. E nesse devaneio imaginava ela rindo das piadas que contava, saboreava cada palavra que ele dizia, se excitava com cada carícia que ele fazia... E quando ele passava seus ósseos dedos descarnados pelo braço moreno ela se arrepiando...
Sonhos... que nunca seriam realidade. Mas de vez em quando era muito bom sonhar para fugir um pouco do mundo real.
- Boa tarde, Linda - Eunásio a cumprimentou enquanto passava seu crachá na roleta. O sinal ficou verde e ele passou.
- Boa tarde, seu Eunásio - respondeu a moça com um ligeiro sorriso.
Ele subiu um lance de escadas e caminhou pelo estreito corredor do segundo andar até o final. Depois de passar por várias portas fechadas, viu a placa MC OFFSHORE e entrou. Depois do calor causticante lá fora, a  sala gelada pelo ar-condicionado era bem vinda. Viu apenas Kellerson sentado na sua mesa concentrado nas palavras cruzadas.  As mesas dos outros continuavam vazias, inclusive a mesa de Vandilson na sua sala privativa.
Puxou a cadeira e quando sentou viu o envelope pardo fechado ao lado da caixa de correspondência. Antes que abrisse boca para falar, Kellerson se antecipou:
- Deixei esse envelope na sua mesa - disse ele com sua indefectível voz em falsete.
Eunásio pegou o envelope pardo e notou mais uma vez que não havia remetente, só o nome escrito "Eunásio Pindo."
- É normal que chegue correspondências duas vezes num dia só? - Perguntou enquanto rasgava a parte de cima do envelope.
- Não, nunca chega - comentou Kellerson.  - Heron  achou o envelope caído embaixo dos escaninhos. Malaquias deve ter deixado cair na hora que separava as cartas e nem percebeu.
O  envelope não tinha remetente, não tinha o carimbo postal, nem selo. Amanhã sem falta vou perguntar a Malaquias quem entregou esses envelopes. Dessa vez descubro quem é o engraçadinho que quer pregar essa peça em mim, pensou Eunásio, irritado.
Dentro do envelope havia um papel dobrado. Pegou e abriu-o por inteiro. Era uma folha pautada que foi arrancada de algum caderno, com as espirais rasgadas nas pontas. E mais uma vez estava escrito em uma caligrafia infantil, como se alguém quisesse disfarçar sua própria letra:
"Para desbloqueio do seu cartão e troca da senha padrão, ligar para o telefone 222-3333."

Continua...

No próximo capítulo:
ATENDIMENTO PERSONALIZADO

Rogerio de C. Ribeiro