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quinta-feira, 22 de maio de 2014

LEDO ENGANO
Pegou sua mochila e disse aos seus colegas do escritório:
- Pra quem fica, bom trabalho e um ótimo final de semana.
- Vai mesmo pedi-la em casamento para os pais dela ? - Perguntou um gordinho de óculos.
- Como manda a tradição - riu o rapaz, louro e simpático. - Por isso tô indo antes... preciso passar em casa e me arrumar...
- Felicidades - disse uma morena.
O rapaz agradeceu, pôs a mochila nas costas e saiu. Viu as horas no seu relógio de pulso e pensou: " Ainda bem que o chefe me liberou mais cedo. Vai dar tempo de passar na casa dos meus pais antes de irmos ao restaurante..."
Apressou os passos a caminho do metrô, e quando virou a esquina, viu uma viatura na calçada, três policiais e alguns rapazes encostados no muro, com os braços levantados.
O rapaz parou e um dos policiais apontou sua pistola e ordenou:
- Pra parede!
O rapaz, atônito:
- O quê? Tô indo pra casa...
O segundo policial, com suas duas mãos na pistola, gritou:
- Não ouviu o que ele disse, merda? Pra parede, AGORA!
O rapaz se juntou aos outros na parede enquanto os três policiais faziam a revista neles.
- Documentos!
O rapaz tirou sua mochila nas costas e quando ia abri-la para pegar sua carteira de motorista, o primeiro policial encostou o cano da pistola na sua cabeça.
- O que tá pretendendo fazer, rapaz?
Sentindo o cano gelado na sua testa, o rapaz disse:
- Vou pegar minha carteira...
- Fica de joelhos e bota as mãos na cabeça! - Ordenou o primeiro policial.
O rapaz obedeceu. Ouviu o segundo policial dizendo:
- Senhor, reconhece o elemento que o assaltou?
O rapaz viu um sujeito baixo, calvo e de bigodinhos ao lado do policial. Suspirou aliviado. Devia ser a vítima do assalto.
O terceiro policial perguntou ao baixinho calvo:
- Foi um desses elementos que roubou o senhor?
O rapaz ainda continuava de joelhos, segurando as alças da sua mochila. Emparedados, viu que havia negros, mulatos, um sarará e um japonês. O calvo olhava de um em um e balançou a cabeça. O terceiro policial, cordialmente, apontou para o rapaz louro e com mochila na mão e perguntou à vítima:
- Foi ele?
Por detrás dos óculos o calvo apertou os olhos, e com o indicador e polegar entre o nariz e o queixo, disse:
- Não sei... Pode ser que sim... Pode ser que não...
O segundo policial:
- Não temos pressa, senhor. Pode pensar à vontade.
- Sargento - disse o rapaz de mochila, - estou indo a um jantar de família...
O primeiro policial deu um safanão no rapaz e gritou:
- Alguém te deu autorização para falar, vagabundo?
O sujeito hesitante e calvo disse:
- Não posso dar certeza... Ou eu posso? Ele era mais alto... ou mais baixo...tinha cabelos encaracolados... ou era careca?
O rapaz de mochila não acreditou, o cara era doido de pedra!
- Com licença - disse o rapaz, - se os senhores permitirem posso abrir a mochila e mostro que trabalho ali no outro quarteirão...
O primeiro policial tascou um tapa no pescoço do rapaz, derrubando-o no chão.
- Mais uma e não sei o que vou fazer com você!
O segundo policial:
- Esse cara tá querendo confundir a vítima.
O calvo, hesitante:
- Essa voz não me é estranha... quando foi que a ouvi mesmo?... quando fui assaltado? Ou quando me pediram informações...
O terceiro policial disse:
- Acho que foi definido quem assaltou o senhor. - Virou-se para os emparedados e disse: - Vocês estão liberados.
O calvo:
- Era ruivo... não, era preto... não, branco...
- E você está preso - disse o terceiro policial ao rapaz de mochila.
- Preso?
O primeiro policial algemou o rapaz e o empurrou para a viatura. Abriu a caçapa do veículo e com a sola do seu coturno jogou-o lá dentro.
O terceiro policial pegou a mochila do rapaz do chão e disse, de forma mais educada possível, ao sujeito calvo e hesitante:
- O senhor pode nos acompanhar até a delegacia?
- Sim... eu acho que não... se chego atrasado minha mulher... esqueci, sou separado... ou viúvo?
O sujeito calvo e hesitante foi no banco detrás da viatura ao lado do terceiro policial. Dentro da caçamba, o rapaz, ainda algemado, se espremia no pequeno espaço.
" Na delegacia vou desfazer toda essa confusão. Vou ligar para meu pai, que logo virá me socorrer..."
Minutos depois, o rapaz estava sentado em um banco de madeira enquanto os policiais conferenciavam com o sujeito calvo em um canto.
- O que ele roubou do senhor? - Perguntou o segundo policial.
- Minha carteira... ou foi meu chaveiro?
- E quanto tinha na sua carteira?
- Dez reais... Ou seria cem reais? Não, com cem reais teria comprado... ou não... cinco reais...acho que só meu vale transporte...
O primeiro policial, para o rapaz:
- Covarde! Se não estivesse aqui te enchia de porrada!
- Por isso não tenho pena de vagabundo - disse o segundo policial.
O terceiro policial tranquilizou o sujeito calvo e hesitante:
- O senhor teve sorte que ele não fez coisa pior...
O rapaz, irritado:
- Preciso ligar para o meu pai, ele é advogado...
O terceiro policial, furioso:
- Olhem só, além de vagabundo é mentiroso!
O sujeito calvo e hesitante:
- Ele tinha um nariz arrebitado... ou era um nariz torto?
- Viu, está confundindo a vítima! - disse o primeiro policial.
Naquele momento a recepção estava vazia; além deles só um plantonista descansava na sua mesa, enquanto jogava paciência pela internet.
- Tenho direito a uma ligação! Ou se quiserem, abram minha mochila e olhem minha identidade...
Levou um tapa na cara do primeiro policial, que esfregou a palma da sua mão e rosnou:
- Mais uma palavra e te arranco os dentes com uma porrada bem dada na sua boca de chupa rola!
Mesmo com a face ardendo, o rapaz disse:
- Esse senhor aí nem sabe quem o assaltou, e se foi assaltado!
O sujeito calvo e hesitante disse, indignado:
- Fui assaltado sim... ou perdi minha carteira? Você... ou foi outro? levou meu relógio... ou foi meu dinheiro?
O segundo policial pegou nos braços do rapaz, que continuava algemado, e apontou o relógio de pulso do jovem:
- Esse é o seu relógio?
Era um relógio Nixon Chrono que o rapaz ganhara do pai no seu aniversário. O sujeito calvo e hesitante cruzou os braços e murmurou:
- Sim, parece meu relógio... Ou meu relógio é um Casio? Não, eu não gosto de relógio... Ou gosto?
O segundo policial tirou o relógio do rapaz e disse:
- Já recuperamos um dos itens que esse desgraçado roubou do senhor.
- Esse relógio ganhei de presente...
Levou outro tapa na cabeça. O primeiro policial reclamou:
- Esse cara já tá acabando com minha paciência!
O plantonista largou o jogo da internet e chegou no balcão:
- Qual é o caso agora?
O terceiro policial encaminhou o sujeito calvo e hesitante e agora ostentando um relógio dançando no seu pulso fino e disse:
- Estamos com a vítima de um assalto no centro da cidade.
- E como foi o assalto? - Perguntou o plantonista enquanto espiava a tela do seu computador.
O segundo policial tomou a palavra:
- Aquele indivíduo ali - apontou para o rapaz ainda algemado sentado no banco em frente, - covardemente esculachou o cidadão - apontou o sujeito calvo e hesitante, - com uma arma, o ameaçando de morte caso não levasse seus pertences.
O plantonista, com raiva:
- E vocês pegaram a arma desse bandido?
- Não, ele não quer dizer onde escondeu a arma.
O rapaz ficou de pé e gritou:
- Isso tudo é mentira! Não tenho nenhuma arma e nunca roubei ninguém...
O plantonista:
- Vê se alguém segura esse bandido!
O primeiro policial largou um soco que atingiu o estômago do rapaz, que curvou seu corpo e caiu ajoelhado. O sujeito calvo e hesitante disse, apavorado:
- Corri perigo naquela hora... ele tinha uma pistola na mão... Ou será que era uma faca? Não, era um canivete... Ou era uma tesoura?
- Fique calmo, senhor - disse o terceiro policial procurando tranquiliza-lo. - Logo esse pesadelo vai acabar...
O rapaz, ainda de joelhos, bufava e respirava fundo. O pesadelo que o policial dissera ao maluco careca estava acontecendo com ele. Que situação mais absurda se meteu. Enquanto sua noiva o esperava para o jantar da família, ele continuava naquele circo de horrores.
O plantonista comentou com os policiais:
- Essa cara não me é estranha... Esperem um pouco.
O primeiro policial agarrou a gola da camisa do rapaz e levantou-o. Encarou-o de perto, seu nariz encostando no do rapaz e rosnou:
- É melhor ir confessando logo antes que o delegado chegue... garanto que vai ser melhor pra você...
O mau hálito do policial sufocou o rapaz, que preferiu o silêncio. Ouviu o plantonista gritando:
- Sabia! Nunca esqueço um rosto!
Puxou um papel que saía da impressora e passou para o segundo policial.
- Ele é procurado por dois latrocínios!
O segundo policial leu as acusações no papel e olhou a foto estampada no canto da folha. Assobiou e disse:
- Seu santo é muito forte, senhor. Esse cara não teve pena das vítimas.
- Ai, meu Deus... Graças ao meu anjo da guarda... ou foi o Santo Expedito? Não, fui protegido por São Jorge... Ou São Longuinho?
- Covarde! - O primeiro policial empurrou o rapaz e continuou: - Vai confessar todos crimes, mas todos mesmos!
- Vamos pra outra sala - disse o segundo policial. - Ela está vazia...
O plantonista voltou para o computador.
- Eu não sei de nada... daqui a pouco o delegado vai chegar.
O primeiro e segundo policial arrastaram o rapaz, que gritou:
- Vocês enlouqueceram! Quero ligar para o meu pai! Olhem minha mochila...
Passou pelo balcão e viu a folha impressa do homem procurado. E num relance viu a foto no canto da folha.
Era o retrato de um negro.

Quando voltou da sala, o rosto do rapaz estava desfigurado; seu nariz fora quebrado e ficou torto; o olho esquerdo inchado e roxo, perdeu três dentes da frente. Amparado pelos dois policiais, entrou mancando na sala do delegado e disse à ele:
- Eu confesso... roubei o cidadão... e se não fosse a polícia, teria matado também...
Na recepção, o sujeito calvo e hesitante bebia um café que o terceiro policial lhe oferecera. Ao ver o rapaz sendo encaminhado para a cela, disse nervoso:
- E se depois ele quiser se vingar? Conhece meu rosto... ou sabe meu nome? Não, ele conhece meu irmão... Ou meu tio?
- Amigo, com tantos crimes que ele já cometeu, dificilmente vai sair da cadeia antes de 30 anos.
Satisfeito com a resposta, o sujeito calvo e hesitante jogou o copinho do café na lixeira e elogiou pelo serviço prestado do policial. Chegando na porta, ouviu atrás dele:
- Senhor, ei, senhor - era o terceiro policial, indo na sua direção. - O senhor esqueceu sua mochila.
O sujeito calvo e hesitante pegou a mochila, pôs nas costas e agradeceu.
- Obrigado.
E foi embora com a mochila do rapaz.

Rogerio de C. Ribeiro   

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