LEDO ENGANO
Rogerio de C. Ribeiro
Pegou
sua mochila e disse aos seus colegas do escritório:
-
Pra quem fica, bom trabalho e um ótimo final de semana.
-
Vai mesmo pedi-la em casamento para os pais dela ? - Perguntou um gordinho de
óculos.
-
Como manda a tradição - riu o rapaz, louro e simpático. - Por isso tô indo
antes... preciso passar em casa e me arrumar...
-
Felicidades - disse uma morena.
O
rapaz agradeceu, pôs a mochila nas costas e saiu. Viu as horas no seu relógio
de pulso e pensou: " Ainda bem que o chefe me liberou mais cedo. Vai dar
tempo de passar na casa dos meus pais antes de irmos ao restaurante..."
Apressou
os passos a caminho do metrô, e quando virou a esquina, viu uma viatura na
calçada, três policiais e alguns rapazes encostados no muro, com os braços levantados.
O
rapaz parou e um dos policiais apontou sua pistola e ordenou:
-
Pra parede!
O
rapaz, atônito:
-
O quê? Tô indo pra casa...
O
segundo policial, com suas duas mãos na pistola, gritou:
-
Não ouviu o que ele disse, merda? Pra parede, AGORA!
O
rapaz se juntou aos outros na parede enquanto os três policiais faziam a
revista neles.
-
Documentos!
O
rapaz tirou sua mochila nas costas e quando ia abri-la para pegar sua carteira
de motorista, o primeiro policial encostou o cano da pistola na sua cabeça.
-
O que tá pretendendo fazer, rapaz?
Sentindo
o cano gelado na sua testa, o rapaz disse:
-
Vou pegar minha carteira...
-
Fica de joelhos e bota as mãos na cabeça! - Ordenou o primeiro policial.
O
rapaz obedeceu. Ouviu o segundo policial dizendo:
-
Senhor, reconhece o elemento que o assaltou?
O
rapaz viu um sujeito baixo, calvo e de bigodinhos ao lado do policial. Suspirou
aliviado. Devia ser a vítima do assalto.
O
terceiro policial perguntou ao baixinho calvo:
-
Foi um desses elementos que roubou o senhor?
O
rapaz ainda continuava de joelhos, segurando as alças da sua mochila.
Emparedados, viu que havia negros, mulatos, um sarará e um japonês. O calvo
olhava de um em um e balançou a cabeça. O terceiro policial, cordialmente,
apontou para o rapaz louro e com mochila na mão e perguntou à vítima:
-
Foi ele?
Por
detrás dos óculos o calvo apertou os olhos, e com o indicador e polegar entre o
nariz e o queixo, disse:
-
Não sei... Pode ser que sim... Pode ser que não...
O
segundo policial:
-
Não temos pressa, senhor. Pode pensar à vontade.
-
Sargento - disse o rapaz de mochila, - estou indo a um jantar de família...
O
primeiro policial deu um safanão no rapaz e gritou:
-
Alguém te deu autorização para falar, vagabundo?
O
sujeito hesitante e calvo disse:
-
Não posso dar certeza... Ou eu posso? Ele era mais alto... ou mais
baixo...tinha cabelos encaracolados... ou era careca?
O
rapaz de mochila não acreditou, o cara era doido de pedra!
-
Com licença - disse o rapaz, - se os senhores permitirem posso abrir a mochila
e mostro que trabalho ali no outro quarteirão...
O
primeiro policial tascou um tapa no pescoço do rapaz, derrubando-o no chão.
-
Mais uma e não sei o que vou fazer com você!
O
segundo policial:
-
Esse cara tá querendo confundir a vítima.
O
calvo, hesitante:
-
Essa voz não me é estranha... quando foi que a ouvi mesmo?... quando fui
assaltado? Ou quando me pediram informações...
O
terceiro policial disse:
-
Acho que foi definido quem assaltou o senhor. - Virou-se para os emparedados e
disse: - Vocês estão liberados.
O
calvo:
-
Era ruivo... não, era preto... não, branco...
-
E você está preso - disse o terceiro policial ao rapaz de mochila.
-
Preso?
O
primeiro policial algemou o rapaz e o empurrou para a viatura. Abriu a caçapa
do veículo e com a sola do seu coturno jogou-o lá dentro.
O
terceiro policial pegou a mochila do rapaz do chão e disse, de forma mais
educada possível, ao sujeito calvo e hesitante:
-
O senhor pode nos acompanhar até a delegacia?
-
Sim... eu acho que não... se chego atrasado minha mulher... esqueci, sou
separado... ou viúvo?
O
sujeito calvo e hesitante foi no banco detrás da viatura ao lado do terceiro
policial. Dentro da caçamba, o rapaz, ainda algemado, se espremia no pequeno
espaço.
"
Na delegacia vou desfazer toda essa confusão. Vou ligar para meu pai, que logo
virá me socorrer..."
Minutos
depois, o rapaz estava sentado em um banco de madeira enquanto os policiais
conferenciavam com o sujeito calvo em um canto.
-
O que ele roubou do senhor? - Perguntou o segundo policial.
-
Minha carteira... ou foi meu chaveiro?
-
E quanto tinha na sua carteira?
-
Dez reais... Ou seria cem reais? Não, com cem reais teria comprado... ou não...
cinco reais...acho que só meu vale transporte...
O
primeiro policial, para o rapaz:
-
Covarde! Se não estivesse aqui te enchia de porrada!
-
Por isso não tenho pena de vagabundo - disse o segundo policial.
O
terceiro policial tranquilizou o sujeito calvo e hesitante:
-
O senhor teve sorte que ele não fez coisa pior...
O
rapaz, irritado:
-
Preciso ligar para o meu pai, ele é advogado...
O
terceiro policial, furioso:
-
Olhem só, além de vagabundo é mentiroso!
O
sujeito calvo e hesitante:
-
Ele tinha um nariz arrebitado... ou era um nariz torto?
-
Viu, está confundindo a vítima! - disse o primeiro policial.
Naquele
momento a recepção estava vazia; além deles só um plantonista descansava na sua
mesa, enquanto jogava paciência pela internet.
-
Tenho direito a uma ligação! Ou se quiserem, abram minha mochila e olhem minha
identidade...
Levou
um tapa na cara do primeiro policial, que esfregou a palma da sua mão e rosnou:
-
Mais uma palavra e te arranco os dentes com uma porrada bem dada na sua boca de
chupa rola!
Mesmo
com a face ardendo, o rapaz disse:
-
Esse senhor aí nem sabe quem o assaltou, e se foi assaltado!
O
sujeito calvo e hesitante disse, indignado:
-
Fui assaltado sim... ou perdi minha carteira? Você... ou foi outro? levou meu
relógio... ou foi meu dinheiro?
O
segundo policial pegou nos braços do rapaz, que continuava algemado, e apontou
o relógio de pulso do jovem:
-
Esse é o seu relógio?
Era
um relógio Nixon Chrono que o rapaz ganhara do pai no seu aniversário. O
sujeito calvo e hesitante cruzou os braços e murmurou:
-
Sim, parece meu relógio... Ou meu relógio é um Casio? Não, eu não gosto de
relógio... Ou gosto?
O
segundo policial tirou o relógio do rapaz e disse:
-
Já recuperamos um dos itens que esse desgraçado roubou do senhor.
-
Esse relógio ganhei de presente...
Levou
outro tapa na cabeça. O primeiro policial reclamou:
-
Esse cara já tá acabando com minha paciência!
O
plantonista largou o jogo da internet e chegou no balcão:
-
Qual é o caso agora?
O
terceiro policial encaminhou o sujeito calvo e hesitante e agora ostentando um
relógio dançando no seu pulso fino e disse:
-
Estamos com a vítima de um assalto no centro da cidade.
-
E como foi o assalto? - Perguntou o plantonista enquanto espiava a tela do seu
computador.
O
segundo policial tomou a palavra:
-
Aquele indivíduo ali - apontou para o rapaz ainda algemado sentado no banco em
frente, - covardemente esculachou o cidadão - apontou o sujeito calvo e
hesitante, - com uma arma, o ameaçando de morte caso não levasse seus
pertences.
O
plantonista, com raiva:
-
E vocês pegaram a arma desse bandido?
-
Não, ele não quer dizer onde escondeu a arma.
O
rapaz ficou de pé e gritou:
-
Isso tudo é mentira! Não tenho nenhuma arma e nunca roubei ninguém...
O
plantonista:
-
Vê se alguém segura esse bandido!
O
primeiro policial largou um soco que atingiu o estômago do rapaz, que curvou
seu corpo e caiu ajoelhado. O sujeito calvo e hesitante disse, apavorado:
-
Corri perigo naquela hora... ele tinha uma pistola na mão... Ou será que era
uma faca? Não, era um canivete... Ou era uma tesoura?
-
Fique calmo, senhor - disse o terceiro policial procurando tranquiliza-lo. -
Logo esse pesadelo vai acabar...
O
rapaz, ainda de joelhos, bufava e respirava fundo. O pesadelo que o policial
dissera ao maluco careca estava acontecendo com ele. Que situação mais absurda
se meteu. Enquanto sua noiva o esperava para o jantar da família, ele
continuava naquele circo de horrores.
O
plantonista comentou com os policiais:
-
Essa cara não me é estranha... Esperem um pouco.
O
primeiro policial agarrou a gola da camisa do rapaz e levantou-o. Encarou-o de
perto, seu nariz encostando no do rapaz e rosnou:
-
É melhor ir confessando logo antes que o delegado chegue... garanto que vai ser
melhor pra você...
O
mau hálito do policial sufocou o rapaz, que preferiu o silêncio. Ouviu o
plantonista gritando:
-
Sabia! Nunca esqueço um rosto!
Puxou
um papel que saía da impressora e passou para o segundo policial.
-
Ele é procurado por dois latrocínios!
O
segundo policial leu as acusações no papel e olhou a foto estampada no canto da
folha. Assobiou e disse:
-
Seu santo é muito forte, senhor. Esse cara não teve pena das vítimas.
-
Ai, meu Deus... Graças ao meu anjo da guarda... ou foi o Santo Expedito? Não,
fui protegido por São Jorge... Ou São Longuinho?
-
Covarde! - O primeiro policial empurrou o rapaz e continuou: - Vai confessar
todos crimes, mas todos mesmos!
-
Vamos pra outra sala - disse o segundo policial. - Ela está vazia...
O
plantonista voltou para o computador.
-
Eu não sei de nada... daqui a pouco o delegado vai chegar.
O
primeiro e segundo policial arrastaram o rapaz, que gritou:
-
Vocês enlouqueceram! Quero ligar para o meu pai! Olhem minha mochila...
Passou
pelo balcão e viu a folha impressa do homem procurado. E num relance viu a foto
no canto da folha.
Era o retrato de um negro.
Quando
voltou da sala, o rosto do rapaz estava desfigurado; seu nariz fora quebrado e
ficou torto; o olho esquerdo inchado e roxo, perdeu três dentes da frente.
Amparado pelos dois policiais, entrou mancando na sala do delegado e disse à ele:
-
Eu confesso... roubei o cidadão... e se não fosse a polícia, teria matado
também...
Na
recepção, o sujeito calvo e hesitante bebia um café que o terceiro policial lhe
oferecera. Ao ver o rapaz sendo encaminhado para a cela, disse nervoso:
-
E se depois ele quiser se vingar? Conhece meu rosto... ou sabe meu nome? Não,
ele conhece meu irmão... Ou meu tio?
-
Amigo, com tantos crimes que ele já cometeu, dificilmente vai sair da cadeia
antes de 30 anos.
Satisfeito
com a resposta, o sujeito calvo e hesitante jogou o copinho do café na lixeira
e elogiou pelo serviço prestado do policial. Chegando na porta, ouviu atrás dele:
-
Senhor, ei, senhor - era o terceiro policial, indo na sua direção. - O senhor
esqueceu sua mochila.
O
sujeito calvo e hesitante pegou a mochila, pôs nas costas e agradeceu.
-
Obrigado.
E
foi embora com a mochila do rapaz.
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