Translate

terça-feira, 30 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 40

No capítulo anterior: Dona Vitória largou o retrato, que caiu lentamente até o chão de sinteco. Vera se agachou e pegou o pedaço da foto.
- Força, mãe, a senhora vai conseguir...
Por mais que mostrasse o retrato mutilado, Dona Vitória voltou ao seu estado ausente. Por mais que Vera sacudisse o retrato na sua frente, a velha senhora fixava a parede em frente.
Vera se levantou e guardou os retratos na bolsa. Saiu do quarto com um pensamento:
"Gláucia."
Pelo menos tinha um nome.

Jayme, o sujeito de óculos escuros, tentou acariciar o braço direito da empregada, mas Fernanda repudiou o gesto.
- Tá maluco?
- Tô morrendo de saudades, garota - disse ele, sorrindo, com um palito de dentes no canto dos lábios. - Pensei que nunca ia sair daquele casarão!
Fernanda olhou de um lado ao outro e disse, impaciente:
- Não é toda hora que posso sair.
- Percebi isso.
Os dois estavam parados no início da rua que subia até o casarão. Não havia ninguém passando ali naquele momento, mas Fernanda não queria correr o risco que seu patrão a visse ali conversando com um sujeito estranho.
- Olha - disse ela, nervosa. - O que combinamos? Você não podia aparecer aqui tão cedo!
- E te deixar sozinha? Se precisasse de ajuda?
- Para de ironias, Jayme. Já basta naquela vez!
O homem tirou os óculos escuros e balançou a cabeça.
- Esquece aquilo, Fernanda.
- Não posso esquecer, Jayme! Às vezes penso como você pode ser tão burro! Quando eu disser uma coisa, é pra fazer!
Jayme agarrou o braço de Fernanda na altura do cotovelo e dessa vez não estava sendo irônico. Havia maldade na sua voz:
- Garota, somos parceiros! Já te falei pra esquecer aquilo lá! O negócio é aqui, agora!
- Ainda não descobri nada.
- Como nada?
- Eles não são ricos, Jayme.
- Nada de valor?
- Tem as joias da velha... Mas você disse que é arriscado.
Jayme largou o braço dela.
- Depende quem vai comprar... São muitas joias?
- Bastante.
- Pega um brinco ou anel. Levo pra um conhecido e vejo quanto vale... dependendo do que ele fale...
- Vou ver isso e amanhã bem cedinho te entrego no portão.
Jayme tentou enlaça-la pela cintura, mas Fernanda se esquivou.
- Nada de mão boba, cara!
- Adoro quando fica arisca - disse ele. - Antes de ir, quero te avisar que sua tia já está cobrando a parte dela.
- Que mulherzinha intragável!
- Ela falou para mim que arrumou o bagulho e não quer ficar esperando como na última vez.
Fernanda, aborrecida, nem sentia o peso das sacolas que segurava. Pela sua expressão, pensava na velha miserável:
- Diga pra ela esperar um pouco. Em uma semana a gente resolve tudo e ela vai ter a parte dela.
- Espero que ela não fale demais...
Fernanda, atenta:
- Cola no pé dela. Se ela quiser beber, beba com ela. Mas de olho pra ela não falar nenhuma besteira.
- Tudo bem. Mantenha contato comigo, garota. Tenho planos maiores lá na frente.
- Beleza. Deixa eu ir. Amanhã chega bem cedo pra te dar o anel da velhota.
Jayme concordou e Fernanda subiu a rua. O homem deu a volta e desceu para a rua do mercado. Ao invés de voltar a Marquinhos, tomou outro caminho.
Esse casarão foi um achado. Depois da merda no último emprego, Fernanda teve sorte que a nova patroa não pediu referências. Mas como a velha Dilza falou, a bacana tava com a corda no pescoço...
Chegou no ponto do ônibus e se lembrou da conversa que tiveram na semana passada...
O ônibus chegou e ele acenou. No banco ao lado da janela, veio a imagem de Dilza dizendo a eles:
- Arrumei um lugar para você se esconder durante um tempo, Fernanda - dissera Dilza, uma mulher de quarenta e poucos anos, cabelos crespos e grisalhos, olhos injetados e quase sem dentes. Tinha um cigarro entre os dedos e um copo de cachaça na outra mão. Estavam na casa de Jayme, um barraco de dois cômodos. - Bené me disse que Belinda vai se aposentar e tão precisando de uma empregada urgente, urgentíssimo!
Fernanda e Jayme estavam deitados na cama de casal. A moça usava uma camisola transparente e não usava calcinha e Jayme estava só de cueca.
- Onde fica?
- Num casarão no bairro de Fátima - dissera Dilza, pouco se lixando se a sobrinha estava quase nua. - Aposto que estão montados na grana!
Fernanda sentou na beira da cama e Jayme tentou acariciar suas costas. Ela deu um tapa na mão dele e perguntou:
- E a referência? Sabe que os "homis" estão atrás de mim!
- Se ela pedir, você inventa uma desculpa e samba fora. Acho que isso vai te ajudar e ainda vai dar pra levantar uma grana!
Jayme sugeriu:
- Eu acho que é uma boa, Fernanda.
- Talvez seja... se você não atrapalhar como na última vez!
- Tenho culpa se a velhota teve um piripaque?
- Teve - disse Fernanda.
Dilza esvaziou o copinho de cachaça e disse:
- Chega desse papo. Se falar muito, até chama! Você deu o jeito nela, né? Isso que importa!O negócio agora é conseguir a brecha pra trabalhar no casarão. E depois que capitalizarem, fugir para São Paulo!
E foi assim que Fernanda chegou ao casarão...
                                      ********************
Fernanda estava ajoelhada no chão da cozinha enquanto guardava os mantimentos no armário sobre a pia. Depois que guardou a lata de extrato de tomate, ouviu a voz atrás dela:
- Por onde andou, Fernanda?
A empregada assustou-se com o timbre da voz e virou o pescoço em direção da porta que dava para a sala de jantar. Era sua patroa, Vera.
- Senhora... eu fui no Marquinhos...
- Demorou bastante por lá - recriminou Vera, que passou pela moça e olhou, mesmo de pé, para o armário aberto.
- Não comprou mais que devia?
- Não, dona Vera. Olha a lista.
Vera pegou o papel que Fernanda estendeu e deu uma olhada rápida nos itens. Depois largou a lista em cima da pia e comentou:
- Já cheguei há mais de vinte minutos e nada de você. Me faça um grande favor, Fernanda. Na próxima vez que for no Marquinhos, vá pela manhã. Às sete horas o mercadinho já está aberto. Não quero que minha mãe fique sozinha durante a tarde.
- Entendi, dona Vera, e peço desculpas - disse Fernanda, constrangida. - Na próxima vez, espero as crianças saírem para a escola e aí faço as compras. Assim, não atraso no café da manhã e ainda pego Dona Vitória acordando.
Vera gostou.
- Isso mesmo. Bem, não almocei ainda. Tem como preparar um lanche rápido para mim?
- Sim senhora - disse Fernanda.
- Estou na sala principal. - Vera ia dar um passo, mas lembrou-se de algo. - Seu Aurélio almoçou em casa?
- Almoçou, mas saiu logo depois.
- E o que as crianças aprontaram novamente?
Fernanda baixou a cabeça e murmurou:
- Nada, dona Vera... Já disse ao seu Aurélio... pra que passasse uma borracha em cima... são crianças...
- Nada de passar borracha nenhuma. O que elas fizeram?
Fernanda engoliu em seco e disse, com melancolia:
- Quando chegaram do colégio, pedi que fechassem o portão... e eles levantaram... - Ela simulou que estava envergonhada. Suas faces até ficaram coradas! - ergueram o dedo médio pra mim...
- O quê???? - Vera gritou. - Eu não admito isso! Não crio meus filhos para agirem dessa forma!
- Eu até entendo o lado deles... Gostavam tanto de Belinda...
- Belinda já era! Você que trabalha conosco! - Vera sacudiu a cabeça e continuou: - Quando Aurélio chegar, vou conversar com ele sobre isso.
Vera saiu da cozinha furiosa e Fernanda se encostou na pia. Ela sorria.
"Vaca idiota! Tão fácil de enganar!"
                                 *******************
Vera estava enfurnada no sofá com sua bolsa aberta no colo. Na sua mão direita, tinha um dos retratos da moça que agora tinha um nome.
"Gláucia..., pensou Vera. Quem é ela?"
Por um momento pensou em pedir que Fernanda perguntasse à sua mãe quem era aquela mulher, mas logo mudou de ideia. Não queria que a nova empregada soubesse muito no que acontecia na família.
Mas tinha uma pessoa que poderia ajuda-la!
Fernanda veio na sala com uma bandeja contendo um suculento sanduíche de carne assada e um copo de vitaminas no momento que Vera falava no celular. A patroa gesticulou, pedindo que deixasse tudo em cima da mesinha ao lado e a dispensou, sacudindo a mão.
Quando Fernanda passou pelo arco que separava a sala de jantar, ouviu:
- Belinda! Sou eu, Vera! Preciso ter uma conversa com você... O mais rápido possível! Amanhã... sim, te espero de tarde...
Fernanda estacionou ao lado da mesa da sala de jantar e pensou, intrigada:
"O que ela tá querendo com a velha empregada? Será que... não! Ela não pode estar desconfiada de mim... Mas... Tenho que ficar de olho..."
Esse era o grande problema da consciência pesada. Qualquer detalhe, o mais insignificante que fosse, tomava uma proporção gigantesca na mente da pessoa culpada!

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 39

No capítulo anterior: O sujeito de óculos escuros riu. Pagou a conta e comentou:
- Pela primeira vez vi algo interessante nesse bairro. Mas como falou, crente é foda. Até mais.
Marquinhos acompanhou com o olhar o estranho cambaleando pela rua acima. Bebeu um gole de uma cerveja morna e pensou: "Não confio nesse cara!"
O sujeito de óculos escuros entrou na primeira rua à direita, saindo da vigilância do comerciante. Olhou a rua que subia até o casarão decrépito e sorriu.
Fernanda estava parada, com a sacola de compras na mão, encostada em um poste.
- Fernanda... - disse o sujeito.
A moça retribuiu o sorriso.
- Jayme...

- Não é justo! Não é justo! Não é... - dizia Anabela, deitada na sua cama.
- Chega de ficar falando "não é justo!" - replicou Juninho, sentado na beira da cama. Na outra cama, Dequinha tirava uma soneca.
- Papai ficou cego, Juninho! Não acredita na gente e ainda nos botou de castigo!
Juninho concordou. Na hora do almoço, Aurélio foi rigoroso com eles:
- Comam em silêncio e depois voltem pro quarto de vocês! Nada de videogame, desenho, computador. Só quero que metam a cara nos deveres de casa!
Juninho levantou um dedo e Aurélio berrou:
- Não quero ouvir sua voz, Juninho!
No outro lado da mesa, Fernanda alimentava Dona Vitória com uma mistura de arroz, feijão e carne passados em liquidificador, que se transformou em um creme de aspecto duvidoso. A empregada estava ouvindo a bronca que Aurélio dava nos filhos e interiormente, sorria, mas vendo-a agora, tinha um aspecto magoado.
Depois do almoço, Aurélio avisou que ia para o escritório. Fernanda ajeitou Dona Vitória de frente para televisão e agora escrevia uma lista do que faltava para pegar no mercado de Marquinhos.
Aurélio disse, com certa lascívia:
- Não esqueça... mais tarde no seu quarto...
Fernanda largou a caneta ao lado da lista sobre a mesa da cozinha e só olhou para ele. Aurélio tomou aquele olhar como desejo e soltou um sorriso sacana.
Sozinha na cozinha, Fernanda terminou a lista e saiu a caminho do mercado.
"Hoje vai ter que se contentar com cinco contra um, palhaço!"
                             ************************
Enquanto Fernanda descia a rua à esquerda em direção do mercadinho, o Palio de Vera subia pela rua principal. Estacionou o carro na calçada em frente do portão e entrou apressada.
Estranhou o silêncio que reinava a casa. Carregando sua bolsa de couro, ela foi ao quarto das meninas.
Ficou surpresa com o que viu. Anabela e Juninho estavam sentados à uma mesinha com cadernos da escola e Dequinha dormia tranquilamente.
- Qual é o milagre que não estão aprontando uma? - Perguntou Vera, em pé ao lado da porta aberta.
Chateada, Anabela respondeu:
- Estamos de castigo!
- E quem botou vocês de castigo? Fernanda?
- Não... - disse Juninho, amuado. - Papai.
Vera estranhou.
- Seu pai está em casa?
- Não, só veio pro almoço e saiu de novo - Anabela largou o lápis e disse: - Não é justo, mãe! Papai não acreditou na gente!
- É!!!!!! - Juninho mostrou os dentes amarelos e cavalares numa careta. - Foi a empregada!
Vera riu:
- Agora entendi... Mais uma vez aprontaram com a menina!
- Não! Ela que segurou meu braço e mandou que eu fechasse o portão...
Vera perguntou:
- Aposto que ela só pediu que vocês fechassem o portão, que vocês deixam sempre aberto quando chega do colégio!
Juninho gaguejou:
- É... mais ou menos... mas ela agarrou meu braço...
- E cadê o machucado?
Juninho esticou o braço e não tinha nenhuma marca.
- Compreendo... seu pai fez o certo. Continuem no castigo, talvez assim coloquem nessas cabecinhas ocas que mentir é feio.
Ela nem esperou que os dois se manifestassem, fechou a porta atrás de si e foi ao quarto da sua mãe.
Dona Vitória estava sentada na cadeira de rodas e a televisão sintonizada na Globo. Vera puxou a cadeira e sentou-se na frente dela. Dona Vitória não esboçou nenhum gesto. Para Dona Vitória, aquela mulher estranha parecia vagamente com uma das eleitoras que frequentavam a casa na época de campanha.
- Mãe... - Vera balançou as mãos na frente da velha senhora. Dona Vitória ficou preocupada com essa doida! Tava dando a impressão que ela queria hipnotiza-la, ou fazer coisa pior! - Sou eu, Vera!
Vera? Ora bolas! Tinha cara de burra, mas era bastante esperta! Sua filha Vera tinha dez anos e essa mulher passou dos trinta há muito tempo!
- Mãe... "onde Fernanda se enfiou? É só com ela que minha mãe mostra um resquício de sanidade!" Preste atenção em mim, mãe...
A estranha doida a chamava de mãe! Que loucura era aquela? Desde quando tinha uma filha daquele tamanho?
Dona Vitória desviou os olhos para o lado, na esperança que Ferpa surgisse e tirasse aquela maluca dali a pontapés. Se ainda tivesse força suficiente nas pernas, ela mesma faria isso!
Vera segurou o queixo da sua mãe e trouxe-o para que ficassem cara a cara de novo. Pegou os retratos da sua bolsa e largou-os no colo. Pegou um deles, o que a moça estava posando na frente do Cadillac e mostrou:
- Mãe, quem é essa moça?
Vera quase esfregava a foto no rosto da mãe. Dona Vitória continuava com os olhos ausentes:
- Mãe! - disse Vera, nervosa. Agarrava o retrato e quase o rasgou quando ficou mexendo de um lado ao outro, para ver se chamava a atenção da velha senhora. - No início pensei que fosse a senhora. Se fosse, explicaria o motivo de ter guardado o álbum em uma caixa na garagem. Mas o fato é que essa moça não é a senhora mais jovem! Impossível! A data da foto diz 1961, e a senhora tinha 15 anos. E essa mulher não tinha quinze anos mesmo!
A moça do retrato sorria, e se via a sombra de um homem de chapéu.
Houve um leve fulgor nos olhos de Dona Vitória. Vera percebeu.
- Então... vamos, mãe... um pouquinho de atenção... lembra? Pra ter guardado o álbum, deve ser alguém importante...
Dona Vitória torceu os lábios, como se estivesse com nojo de algo. Ergueu a mão direita e o dedo indicador tocou a superfície do retrato.
Os olhos marejaram.
- Vamos, mãe! - Vera mostrou outras fotos, foi passando uma em uma na frente da sua mãe como se fossem filmes. - Pra quê escondeu na garagem? Por quê nunca falou comigo?
Dona Vitória ergueu novamente a mão direita, só que dessa vez não acariciou a foto com a ponta do dedo. Com uma força surpreendente, que assustou Vera, Dona Vitória deu um tapa na mão da sua filha, que largou os retratos, caindo nos seus pés.
Sua mão ardia com o tapa. Dona Vitória continuava com a careta naquela boca vazia e oca, e Vera insistiu, enquanto esfregava as costas da mão:
- Lembrou? Sei que se lembrou! Quem é, mãe?
- F-F-Fora daqui, devassa - disse Dona Vitória, dessa vez com com som nítido e sem erros. - Não quero mais te ver aqui em casa!
Os olhos da velha senhora, antes ausentes, agora pareciam em chamas.
- Quem é ela, mãe? - Insistiu Vera.
- Essa casa não é sua, fora daqui... Gláucia...
Finalmente surgiu um nome. Vera esperava que sua mãe não voltasse ao seu estado letárgico,  só assim poderia descobrir mais coisa...
- Quem é Gláucia, mãe? Quem?
Novamente a velha senhora levantou a mão direita e agilmente, arrancou a foto da mão de Vera. O retrato rasgou-se em dois, um pequeno pedaço pairou entre os dedos da mão de Vera e o restante, Dona Vitória o encarou:
- Gláucia... fora da minha casa...
- Quem é Gláucia, mãe?
Dona Vitória largou o retrato, que caiu lentamente até o chão de sinteco. Vera se agachou e pegou o pedaço da foto.
- Força, mãe, a senhora vai conseguir...
Por mais que mostrasse o retrato mutilado, Dona Vitória voltou ao seu estado ausente. Por mais que Vera sacudisse o retrato na sua frente, a velha senhora fixava a parede em frente.
Vera se levantou e guardou os retratos na bolsa. Saiu do quarto com um pensamento:
"Gláucia."
Pelo menos tinha um nome.

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 38

No capítulo anterior: Ele tinha que ficar de quatro para ela. Só assim, haveria uma chance de embolsar a grana que ele ia ganhar!
- Tenho que fazer o almoço, seu Aurélio...
- Me espera de noite... quando Vera cair no sono, venho no teu quarto.
Fernanda não disse nada e Aurélio aceitou isso como uma resposta positiva. Antes de sair da cozinha, disse:
- Vou te ensinar o que é ter uma noite de amor, Fernanda.
Depois que ele saiu, Fernanda pensou:
"Quem vai te ensinar uma coisa sou eu. Mas não hoje, queridinho. Quero te ver melando a cueca antes..."


A companhia de Rodrigo era tão boa que Vera nem percebeu o tempo passando. Só se deu conta das horas quando sentiu fome.
- Meu Deus - disse ela, olhando o relógio de pulso. - São uma e meia!
- Podemos almoçar aqui - sugeriu Rodrigo.
Vera olhou para trás e viu que o restaurante estava com quase todas mesas ocupadas. Balançou a cabeça e disse:
- Não sei... Tenho que resolver uma coisa e não quero demorar mais.
- Que nada! Olhe o cardápio.
Vera leu as opções do dia quando ouviu Rodrigo dizendo ao seu lado:
- Essa não! O que ela tá fazendo aqui?
Rodrigo olhava para a praça em frente. Vera acompanhou seu olhar e viu uma mulher loura, com uma imensa bolsa a tiracolo, de biquini vermelho e uma canga florida servindo como saia, caminhando na direção deles.
Ela devia ter uns 35 anos. Veio rebolando e tinha um sorriso estampado no rosto. Vera perguntou:
- Quem é ela?
Rodrigo esvaziou a tulipa que bebia e disse, entredentes:
- Minha caríssima ex-mulher, Maria Estela.
A mulher loura encostou na sacada da varanda e disse:
- Rodrigo Antunes! Como sempre, aproveitando a vida de solteiro!
- Boa tarde para você também, Maria Estela - disse Rodrigo, contrariado. - E as crianças?
Maria Estela pegou um cigarro dentro da sua bolsa e respondeu:
- Estão no colégio. Aproveitei pra caminhar um pouco no calçadão - ela lançou um olhar curioso a Vera, que ainda segurava o cardápio e perguntou: - Tem fogo?
- Parei de fumar há séculos, você sabe disso. - Respondeu Rodrigo, pegando outra tulipa que o garçom trazia.
- De repente podia ter tido uma recaída, né? - Ela vasculhou a bolsa e achou um isqueiro. Acendeu o cigarro, soprou a fumaça para o alto e disse: - Não me apresenta à sua amiga?
- Oi, sou Vera - disse a advogada, largando o cardápio. Perdeu a fome com a presença daquela "perua". A cena era inusitada; ela e Rodrigo estavam sentados na mesa à beira da varanda e aquela loura falsificada fumava em pé, na frente deles.
- Se ele não disse meu nome, o que não acredito, sou Maria Estela.
- Já foi feito as apresentações, agora pode me deixar em paz - disse Rodrigo, à beira da fúria.
Maria Estela soltou uma risada entre baforadas no cigarro:
- Ai, meu Deus! Pensei que tivesse mudado, mas ainda é o mesmo cavalo de sempre!
- Maria Estela, por favor...
- Qualé, Rodrigo? Não se faça de santinho, mostre pra tua amiga como você é de verdade!
Vera assistia ao diálogo dos dois em silêncio. Na verdade, não estava nem interessada pelas desavenças deles. O que a atormentava mesmo eram os retratos que tinha na sua bolsa.
- Olha só, Rodrigo, em respeito à sua amiga, não vou perder meu tempo precioso discutindo com você. Vou almoçar.
- Ótimo - disse Rodrigo. - Combinamos que pelo bem das crianças, não íamos discutir mais.
- Tudo pelo bem e a sanidade dos meus filhos! - Ironizou Maria Estela. Passou a mão em cima do biquini superior e comentou: - Meus bicos do peito estão doendo... alguém quer me comer!
Rodrigo preferiu ignorar aquele comentário. Maria Estela esticou o pescoço e comentou, enquanto esmagava o cigarro com sua sandália de dedos:
- Taí, hoje vou me dar ao luxo de almoçar aqui no Chalé.
- Só não mande a conta para minha mesa - disse Rodrigo.
Maria Estela riu.
- Pode deixar, meu bem! Fica por conta da pensão!
Essa palavra enervou o homem.
- Espero que não esteja gastando a pensão que dou aos meus filhos com futilidades!
- Ah, de vez em quando gasto no Plaza, mas pode deixar que meus filhos não estão passando fome.
Ela dobrou a esquina e entrou no restaurante. Vera a viu sentando na mesa dos fundos e o garçom servindo conhaque para ela.
- Essa mulher é insuportável! - Comentou Rodrigo, balançando as pernas, nervoso.
- Quando se casou com ela não achava isso - comentou Vera.
- Como já te falei, no início tudo eram flores. Com o tempo vi como ela era de verdade. - Ele arriscou um olhar para trás e viu a loura bebendo conhaque. Fez uma careta. - Ela não tem o menor compromisso com a realidade, Vera. Se alguém botar dez mil reais na mão dela e dizer: Guarda para uma emergência, ela vai pegar o primeiro táxi e desembarcar no Plaza. Em uma hora, gasta tudo em futilidades.
- Ela é consumista...
- Ela não tem noção de nada! Não tá nem aí se eu ralo o dia todo, suo para ganhar dinheiro. Por ela, todo meu suor seria em vão.
- E ela tem a guarda das crianças...
- Foi esperta. Fazia a cabeça deles, comprando presentes, indo ao Shopping todos dias, em cinemas, teatros... ela sempre dizia a eles que eu sou um pai ausente. Mas é muito fácil quando você não faz absolutamente nada...
- Só gastando...
- Dinheiro alheio. O pior de tudo que não posso me desvincular dela. Tenho medo do que ela possa fazer com os meus filhos...
- Aposto que estão falando de mim - Berrou Maria Estela, da sua mesa dos fundos. - Falem mal, mas falem de mim! Outro conhaque, Ribamar!
Rodrigo balançou a cabeça. Visivelmente aborrecido, ele disse:
- Ela estragou meu dia!
- Não liga pro que ela fala, é só pra provocar - disse Vera. - Vou embora. Preciso ir em casa. Lá eu como alguma coisa.
- Sinto muito por tudo isso, mas nunca esperei que Maria Estela aparecesse hoje...
- Sem problema. Ela não me afetou em nada.
Rodrigo pediu a conta. Enquanto ele esperava que o garçom trouxesse a notinha, Vera foi buscar seu carro. Quando passou pela mesa de Maria Estela, ouviu:
- Toma cuidado com ele, Vera - disse a loura. Ela tinha um copo pela metade de conhaque, e seus olhos brilhavam. - Esse homem gentil, romântico, é tudo fachada. Ele não vale um centavo!
Vera ignorou o comentário e saiu do restaurante. Não tinha tempo para discussões, o que queria era descobrir quem era a mulher dos retratos que levava dentro da bolsa.
Pegou o Palio e quando entrou no carro, viu Rodrigo falando com Maria Estela. Ele estava em pé ao lado da mesa da sua ex-mulher e a impressão era que discutia algo com ela. Enquanto Rodrigo falava e gesticulava com as mãos, Maria Estela ouvia com um sorriso nos lábios.
Vera não ia se meter naquela discussão. Por mais que fossem divorciados, ambos deviam se conhecer profundamente e nessa questão Vera era uma analfabeta. Girou a chave na ignição e partiu com o Palio. Seguiu pela Miguel de Frias, entrou na rua da Praia e na primeira rua, entrou e seguiu adiante. Dali para sua casa eram cinco minutos de carro.
Viu pelo retrovisor que Rodrigo ainda continuava no Chalé. Pensou em parar e lhe oferecer carona para o Centro, mas se fizesse isso se enrolaria mais e não teria chances de  descobrir algo sobre a estranha mulher.
Deixou Rodrigo Antunes para trás e seguiu para sua casa.
                                  **********
Fernanda se aproximou da mercearia de Marquinhos. O dono do mercadinho parecia um buda sentado em cima de um banquinho, com uma garrafa de cerveja enfiada no isopor.
- Boa tarde - disse Fernanda. Ela entregou uma lista que levava dentro do bolso do avental.
Marquinhos a comeu pelos olhos.
- Vou separar os itens, Fernanda.
A nova empregada ficou em pé na entrada do mercado de braços cruzados. Mais adiante, viu um sujeito de óculos escuros e com um palito de dentes passeando pelos lábios a encarando. Ela fingiu que não o via, mas o sujeito, que parecia ter bebido meia dúzia de cervejas sozinho, disse:
- E aí, gata? Perdida por aqui?
Fernanda deu as costas para ele. O sujeito continuou:
- Fico caidinho por uma mulher de uniforme...
- Cara chato - disse Fernanda. Marquinhos, que juntava em cima do balcão os itens da lista, concordou.
- Olha, tô precisando de uma doméstica pra minha casa...
- Quem é ele? - perguntou Fernanda e a resposta de Marquinho foi um dar de ombros.
Ela pegou a sacola que Marquinhos entregou e disse:
- A bebida e o "inimigo" caminham de mãos dadas, seu Marcos.
Ela saiu em passos rápidos. O sujeito de óculos escuros disse:
- Impressão minha ou eu tava cantando uma crente?
- Não foi impressão do senhor - retrucou Marquinhos. - Ela é empregada nova do casarão lá em cima. Evangélica. Com essa, não consegue nada!
O sujeito de óculos escuros riu. Pagou a conta e comentou:
- Pela primeira vez vi algo interessante nesse bairro. Mas como falou, crente é foda. Até mais.
Marquinhos acompanhou com o olhar o estranho cambaleando pela rua acima. Bebeu um gole de uma cerveja morna e pensou: "Não confio nesse cara!"
O sujeito de óculos escuros entrou na primeira rua à direita, saindo da vigilância do comerciante. Olhou a rua que subia até o casarão decrépito e sorriu.
Fernanda estava parada, com a sacola de compras na mão, encostada em um poste.
- Fernanda... - disse o sujeito.
A moça retribuiu o sorriso.
- Jayme...

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 37

No capítulo anterior: Aurélio sentiu que estava excitado novamente. O contato com aquela pequena e mimosa mãozinha quente o deixava doido. Arriscou e acariciou o rosto dela.
- Acha mesmo?
- Acho. Dona Vera é uma mulher de sorte.
Aurélio não aguentava mais. Agora acariciava a nuca da empregada.
- Esquece dona Vera - disse com voz rouca. - Finja que ela não existe.
Puxou-a contra si e beijou-a como há muito tempo não beijava nenhuma mulher.


- Não amo, mas gosto dele - disse Vera, com sinceridade. Rodrigo a observava quieto, pensativo. - Aurélio tem muitos defeitos, mas é bom pai, leal a mim e sempre me apoiou. Quando papai faleceu, ele ficou no meu lado o tempo todo.
- Seu pai foi muito importante na sua vida. Lembro que no colégio você enchia a boca quando falava dele.
Os olhos de Vera marejaram com a lembrança do pai. Balançou a cabeça e disse, saudosa:
- Meu pai foi tudo para mim. O verdadeiro exemplo de como um homem deve se portar, com honestidade, caráter, justiça.
- Lembro vagamente dele nas campanhas.
- Meu pai era idolatrado pelo povo. Pena que a memória desse mesmo povo seja curta.
- E seu marido? Ontem, você não parecia muito animada com sua situação.
- E não estou mesmo. Mas hoje houve um sopro de esperança.
- Como assim?
- Quando acordei, Aurélio já tinha saído de casa bem cedo...
- E você acredita que ele foi procurar trabalho ou...
- Ele nunca saiu de casa tão cedo.
Rodrigo acariciava a mão de Vera e ela deixava. Ele perguntou:
- E eu?
- Que tem você? - disse ela, secamente.
- Pensei que estivesse atraída por mim...
- E estou, senão não estaria aqui em plena manhã com uma tulipa na minha frente - disse ela sinceramente, apontando para a tulipa ainda cheia de chope. - Mas ainda sou casada com ele, e não posso tomar uma medida drástica com que venha me arrepender depois.
- Você disse que ele é leal a você...
- Por ele, boto a mão no fogo - respondeu com toda certeza.
                           ********************
- Não, seu Aurélio - disse Fernanda, se afastando do patrão. Estava descabelada e os grampos do coque pendiam em alguns fios soltos.
- Por quê? - Reagiu Aurélio, a agarrando pelos braços e puxando-a contra si.
- Eu... eu não posso... - disse a moça, atordoada. - Não é justo! O senhor é casado com dona Vera...
- E daí? - disse Aurélio, lascivo. Ele suava e seu coração disparava feito louco. - Não gosta de mim?
Fernanda fechou os olhos e admitiu:
- Meu sentimento não importa...
- Pra mim importa e muito!
- O senhor é tão bonito... cheiroso... sabe fazer uma mulher feliz...
Aurélio riu.
- Nem tanto, meu amor. Meu casamento não anda tão bem como pensa.
Fernanda arregalou os olhos.
- Não acredito! Dona Vera parece ser tão apaixonada pelo senhor!
- Deve estar apaixonada por ela mesmo. Eu sou infeliz, Fernanda - E ante o olhar piedoso da moça, completou: - Pensei em sair de casa várias vezes, mas o que me prende aqui são meus filhos.
- Como pode... Se tenho um marido como o senhor, agradeceria todo dia pela minha sorte!
- Vera não pensa assim...
                              ********************
- O que pretende fazer a isso, Vera? Não quero que você pense mal de mim, mas não acredito que seja tão conformista por causa de lealdade.
- E não sou mesmo, Rodrigo. Antes de tudo, prezo minha autoestima.
- Posso te perguntar uma coisa?
Vera sorriu.
- Do jeito que te vi ontem me deu a impressão que já tinha chutado o balde. Por isso te beijei.
- E gostei. - disse Vera, acariciando a mão de Rodrigo. - É muito bom quando você desperta o interesse em alguém, prova que ainda estou viva para o mundo.
- Não quero que pense...
- Não penso nada, Rodrigo. Mas quero um tempo. Não quero entrar numa aventura só pra mostrar depois ao meu marido que outro homem me deseja.
Rodrigo balançou a cabeça e disse:
- Eu espero.
- E além do mais, quero conversar com Aurélio antes. Eu não quero sacanea-lo. Ele não merece isso.
                                  ********************
- Desde a primeira vez que te vi, te desejei - disse um sôfrego e ansioso Aurélio. Fernanda continua sentada, com as pernas coladas uma à outra, olhando para as mãos.
- Não fale assim, seu Aurélio...
- Me apaixonei por você - mentiu Aurélio.
Fernanda mostrou surpresa com a declaração mentirosa do idiota do punheteiro e disse, com um leve sorriso nos lábios:
- Mesmo?
- Sim, Fernanda!
- Não quero que minta pra mim, seu Aurélio... Eu sou ingênua... Já caí na lábia de muitos malandros...
- Eu não sou nenhum malandro!
Fernanda se levantou e disse:
- Já me magoaram muito... eu não sei...
Aurélio tomou a decisão. Dane-se se ela ia processa-lo depois.
- Quero transar com você!
Fernanda, indignada, disse:
- Transar?
Aurélio consertou:
- Não... desculpe... quero fazer amor com você!
Fernanda conseguiu fisgar o paspalhão de pau pequeno. Mas ia atiça-lo mais ainda. Se cedesse, ele desistiria dela depois.
Ele tinha que ficar de quatro para ela. Só assim, haveria uma chance de embolsar a grana que ele ia ganhar!
- Tenho que fazer o almoço, seu Aurélio...
- Me espera de noite... quando Vera cair no sono, venho no teu quarto.
Fernanda não disse nada e Aurélio aceitou isso como uma resposta positiva. Antes de sair da cozinha, disse:
- Vou te ensinar o que é ter uma noite de amor, Fernanda.
Depois que ele saiu, Fernanda pensou:
"Quem vai te ensinar uma coisa sou eu. Mas não hoje, queridinho. Quero te ver melando a cueca antes..."

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro