No capítulo anterior: Dona
Vitória largou o retrato, que caiu lentamente até o chão de sinteco. Vera se
agachou e pegou o pedaço da foto.
- Força, mãe, a senhora vai
conseguir...
Por mais que mostrasse o retrato
mutilado, Dona Vitória voltou ao seu estado ausente. Por mais que Vera
sacudisse o retrato na sua frente, a velha senhora fixava a parede em frente.
Vera se levantou e guardou os
retratos na bolsa. Saiu do quarto com um pensamento:
"Gláucia."
Pelo menos tinha um nome.
Jayme,
o sujeito de óculos escuros, tentou acariciar o braço direito da empregada, mas
Fernanda repudiou o gesto.
-
Tá maluco?
-
Tô morrendo de saudades, garota - disse ele, sorrindo, com um palito de dentes no
canto dos lábios. - Pensei que nunca ia sair daquele casarão!
Fernanda
olhou de um lado ao outro e disse, impaciente:
-
Não é toda hora que posso sair.
-
Percebi isso.
Os
dois estavam parados no início da rua que subia até o casarão. Não havia
ninguém passando ali naquele momento, mas Fernanda não queria correr o risco
que seu patrão a visse ali conversando com um sujeito estranho.
-
Olha - disse ela, nervosa. - O que combinamos? Você não podia aparecer aqui tão
cedo!
-
E te deixar sozinha? Se precisasse de ajuda?
-
Para de ironias, Jayme. Já basta naquela vez!
O
homem tirou os óculos escuros e balançou a cabeça.
-
Esquece aquilo, Fernanda.
-
Não posso esquecer, Jayme! Às vezes penso como você pode ser tão burro! Quando
eu disser uma coisa, é pra fazer!
Jayme
agarrou o braço de Fernanda na altura do cotovelo e dessa vez não estava sendo
irônico. Havia maldade na sua voz:
-
Garota, somos parceiros! Já te falei pra esquecer aquilo lá! O negócio é aqui,
agora!
-
Ainda não descobri nada.
-
Como nada?
-
Eles não são ricos, Jayme.
-
Nada de valor?
-
Tem as joias da velha... Mas você disse que é arriscado.
Jayme
largou o braço dela.
-
Depende quem vai comprar... São muitas joias?
-
Bastante.
-
Pega um brinco ou anel. Levo pra um conhecido e vejo quanto vale... dependendo
do que ele fale...
-
Vou ver isso e amanhã bem cedinho te entrego no portão.
Jayme
tentou enlaça-la pela cintura, mas Fernanda se esquivou.
-
Nada de mão boba, cara!
-
Adoro quando fica arisca - disse ele. - Antes de ir, quero te avisar que sua
tia já está cobrando a parte dela.
-
Que mulherzinha intragável!
-
Ela falou para mim que arrumou o bagulho e não quer ficar esperando como na
última vez.
Fernanda,
aborrecida, nem sentia o peso das sacolas que segurava. Pela sua expressão,
pensava na velha miserável:
-
Diga pra ela esperar um pouco. Em uma semana a gente resolve tudo e ela vai ter
a parte dela.
-
Espero que ela não fale demais...
Fernanda,
atenta:
-
Cola no pé dela. Se ela quiser beber, beba com ela. Mas de olho pra ela não
falar nenhuma besteira.
-
Tudo bem. Mantenha contato comigo, garota. Tenho planos maiores lá na frente.
-
Beleza. Deixa eu ir. Amanhã chega bem cedo pra te dar o anel da velhota.
Jayme
concordou e Fernanda subiu a rua. O homem deu a volta e desceu para a rua do
mercado. Ao invés de voltar a Marquinhos, tomou outro caminho.
Esse
casarão foi um achado. Depois da merda no último emprego, Fernanda teve sorte
que a nova patroa não pediu referências. Mas como a velha Dilza falou, a bacana
tava com a corda no pescoço...
Chegou
no ponto do ônibus e se lembrou da conversa que tiveram na semana passada...
O
ônibus chegou e ele acenou. No banco ao lado da janela, veio a imagem de Dilza
dizendo a eles:
-
Arrumei um lugar para você se esconder durante um tempo, Fernanda - dissera
Dilza, uma mulher de quarenta e poucos anos, cabelos crespos e grisalhos, olhos
injetados e quase sem dentes. Tinha um cigarro entre os dedos e um copo de
cachaça na outra mão. Estavam na casa de Jayme, um barraco de dois cômodos. -
Bené me disse que Belinda vai se aposentar e tão precisando de uma empregada
urgente, urgentíssimo!
Fernanda
e Jayme estavam deitados na cama de casal. A moça usava uma camisola
transparente e não usava calcinha e Jayme estava só de cueca.
-
Onde fica?
-
Num casarão no bairro de Fátima - dissera Dilza, pouco se lixando se a sobrinha
estava quase nua. - Aposto que estão montados na grana!
Fernanda
sentou na beira da cama e Jayme tentou acariciar suas costas. Ela deu um tapa
na mão dele e perguntou:
-
E a referência? Sabe que os "homis" estão atrás de mim!
-
Se ela pedir, você inventa uma desculpa e samba fora. Acho que isso vai te
ajudar e ainda vai dar pra levantar uma grana!
Jayme
sugeriu:
-
Eu acho que é uma boa, Fernanda.
-
Talvez seja... se você não atrapalhar como na última vez!
-
Tenho culpa se a velhota teve um piripaque?
-
Teve - disse Fernanda.
Dilza
esvaziou o copinho de cachaça e disse:
-
Chega desse papo. Se falar muito, até chama! Você deu o jeito nela, né? Isso
que importa!O negócio agora é conseguir a brecha pra trabalhar no casarão. E
depois que capitalizarem, fugir para São Paulo!
E
foi assim que Fernanda chegou ao casarão...
********************
Fernanda
estava ajoelhada no chão da cozinha enquanto guardava os mantimentos no armário
sobre a pia. Depois que guardou a lata de extrato de tomate, ouviu a voz atrás
dela:
-
Por onde andou, Fernanda?
A
empregada assustou-se com o timbre da voz e virou o pescoço em direção da porta
que dava para a sala de jantar. Era sua patroa, Vera.
-
Senhora... eu fui no Marquinhos...
-
Demorou bastante por lá - recriminou Vera, que passou pela moça e olhou, mesmo
de pé, para o armário aberto.
-
Não comprou mais que devia?
-
Não, dona Vera. Olha a lista.
Vera
pegou o papel que Fernanda estendeu e deu uma olhada rápida nos itens. Depois
largou a lista em cima da pia e comentou:
-
Já cheguei há mais de vinte minutos e nada de você. Me faça um grande favor,
Fernanda. Na próxima vez que for no Marquinhos, vá pela manhã. Às sete horas o
mercadinho já está aberto. Não quero que minha mãe fique sozinha durante a
tarde.
-
Entendi, dona Vera, e peço desculpas - disse Fernanda, constrangida. - Na
próxima vez, espero as crianças saírem para a escola e aí faço as compras.
Assim, não atraso no café da manhã e ainda pego Dona Vitória acordando.
Vera
gostou.
-
Isso mesmo. Bem, não almocei ainda. Tem como preparar um lanche rápido para mim?
-
Sim senhora - disse Fernanda.
-
Estou na sala principal. - Vera ia dar um passo, mas lembrou-se de algo. - Seu
Aurélio almoçou em casa?
-
Almoçou, mas saiu logo depois.
-
E o que as crianças aprontaram novamente?
Fernanda
baixou a cabeça e murmurou:
-
Nada, dona Vera... Já disse ao seu Aurélio... pra que passasse uma borracha em
cima... são crianças...
-
Nada de passar borracha nenhuma. O que elas fizeram?
Fernanda
engoliu em seco e disse, com melancolia:
-
Quando chegaram do colégio, pedi que fechassem o portão... e eles levantaram...
- Ela simulou que estava envergonhada. Suas faces até ficaram coradas! -
ergueram o dedo médio pra mim...
-
O quê???? - Vera gritou. - Eu não admito isso! Não crio meus filhos para agirem
dessa forma!
-
Eu até entendo o lado deles... Gostavam tanto de Belinda...
-
Belinda já era! Você que trabalha conosco! - Vera sacudiu a cabeça e continuou:
- Quando Aurélio chegar, vou conversar com ele sobre isso.
Vera
saiu da cozinha furiosa e Fernanda se encostou na pia. Ela sorria.
"Vaca
idiota! Tão fácil de enganar!"
*******************
Vera
estava enfurnada no sofá com sua bolsa aberta no colo. Na sua mão direita,
tinha um dos retratos da moça que agora tinha um nome.
"Gláucia...,
pensou Vera. Quem é ela?"
Por
um momento pensou em pedir que Fernanda perguntasse à sua mãe quem era aquela
mulher, mas logo mudou de ideia. Não queria que a nova empregada soubesse muito
no que acontecia na família.
Mas
tinha uma pessoa que poderia ajuda-la!
Fernanda
veio na sala com uma bandeja contendo um suculento sanduíche de carne
assada e um copo de vitaminas no momento que Vera falava no celular. A
patroa gesticulou, pedindo que deixasse tudo em cima da mesinha ao lado e a
dispensou, sacudindo a mão.
Quando
Fernanda passou pelo arco que separava a sala de jantar, ouviu:
-
Belinda! Sou eu, Vera! Preciso ter uma conversa com você... O mais rápido
possível! Amanhã... sim, te espero de tarde...
Fernanda
estacionou ao lado da mesa da sala de jantar e pensou, intrigada:
"O
que ela tá querendo com a velha empregada? Será que... não! Ela não pode estar
desconfiada de mim... Mas... Tenho que ficar de olho..."
Esse era o grande problema da consciência pesada. Qualquer
detalhe, o mais insignificante que fosse, tomava uma proporção gigantesca na
mente da pessoa culpada!
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro