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sábado, 31 de maio de 2014

...RETICÊNCIAS...


... quando apoio meu cotovelo consigo ler melhor, acho que a lâmpada da marquise é nova, clareia tanto que consigo ler sem dificuldade a bula de remédio, mesmo com suas letrinhas; e antes que vocês pensem que estou precisando de remédios, já adianto que não, minha saúde não é nenhuma Brastemp, mas ainda consigo viver bem nesses últimos dias de chuvaréu...
... falei pro Raimundo: "se me aparecer novamente querendo enfiar a bosta do seu cobertor no meu lugar, te juro que pego você dormindo e enfio minha caneta no teu ouvido. Dá mole pra ver se não faço isso". Gente, o cara que se cagou todo de medo, e depois disso, nunca mais pegou o meu lugar...
... às vezes o que me incomoda é a barulheira dos carros e dos ônibus quando o dia nem começou. Sofro de insônia, pra pegar no sono é uma batalha, e quando consigo, gosto de dormir com silêncio...
... de uns dias pra cá tem aparecido gente nova no quarteirão. Até comentei isso com Elimar: Todo cuidado é pouco, não quero correr o risco de acordar e depois descobrir que levaram meus cadernos. Vou esconde-los dentro da minha calça; aí sim, quero ver se alguém vai ter coragem de meter a mão e esbarrar no meu pinto, isso ia ser engraçado...
... Bira me disse que ontem tava andando pela Lapa e viu sua filha com o marido e uma menina de cinco anos caminhando entre os dois de mãos dadas. Falou que ficou escondido nos arcos, enquanto eles passeavam no gramado em frente. Imagino o pânico que teve. Já pensou se a filha vê o pai daquele jeito? Se pelo menos vestisse uma roupa melhor, quem sabe? No fundo foi até bom que ela não viu. O chato que agora ele tá triste, e fica repetindo toda hora que sua neta lembra bastante à sua avó ...
... quando a Kombi estaciona, vejo que aparece gente que nunca vi nessa quadra pra garantir seu lanche da noite. Uma outra noite teve briga por causa disso. Távamos na fila, e um negão quis passar a nossa frente. Os da frente empurrou o cara, mas ele voltou pra lá com a maior cara de pau. Todo mundo gritou que ele não fazia parte da nossa coletividade, mas o negro abriu seu beiços e exibiu o único dente na frente. Mostrou o dedo médio pra gente, pegou seu pão com mortadela e o copo de café com leite e saiu de lá. Depois dessa, nunca mais apareceu na área...
... eu disse pro Bira: Nada contra, quem sou eu pra criticar ou levantar a bandeira de alguém? Mas me dá uma raiva quando o comitê aparece com um candidato na frente deles vindo apertar as nossas mãos e perguntando, sempre com rindo de orelha a orelha: O que precisam, amigos? Peçam que quando eu for eleito, minha primeira providência será em atende-los. Bem, eu perguntei ao Bira se ele já viu ou soube de alguém que algum prefeito entregou as chaves das casas populares pra nossa gente? Claro que não. E outra, o idiota não que nem título de eleitor nós temos? Palhaçada...
... Elimar me contou uma, que pra acreditar, tive que ver pra crer. Na esquina do nosso quarteirão, um carro de bacana aparece e estaciona religiosamente todas quintas-feiras depois de uma hora da madrugada, e de lá sai uma madame que aparenta ter 35, 37 anos, muito cheirosa, de cabelos lisos e sempre bem vestida. Sempre sozinha, e fica nos olhando como se tivesse escolhendo uma mercadoria. E ela sempre escolhe quem está mais sujo e mais fedorento. Chama o cara e entram juntos dela no carrão. Nem dá cinco minutos, e o cara sai ajeitando a braguilha da calça, e logo em seguida o carro parte. Até outra quinta-feira...
... tirando a chuva fina e o vento frio do inverno, não reclamo da minha vida. Não tenho mulher, nem filhos pra atazanar minha paciência. Eu e eu somos um só. Claro, tenho meus amigos, mas não estimulo muito minhas amizades; vira e mexe um morre de pneumonia, de tuberculose ou volta para casa. Por isso meu desapego aos outros. Pelo menos quando eu morrer não vou deixar ninguém triste com minha partida...
... nossa dor de cabeça são os garotos que aparecem por aqui nas madrugadas de sexta para sábado. Sempre estão altos de drogas e bebidas. Fizeram uma covardia com Setembrino ontem: Tacaram fogo nele. Todo mundo fugiu apavorado, inclusive eu, e te digo com sinceridade: como a cidade anda violenta...
...ou a polícia. Não são todos, tem alguns que são legais, fingem que a gente nem existe. Mas tem outros que gostam de esculachar. Nos ameaçam com suas armas, batem na gente com pedaços de pau, jogam spray de pimenta de graça. Dizem que somos o lixo da humanidade. Que vivemos às custas da piedade dos outros. Só esquecem que muitos que estão aqui preferiam morar em seus lares com suas famílias. O negócio é que muitos gostam de cana, outros fumam crack. Eu mesmo saí porque não aguentava mais morar com minha irmã. Ela sempre jogou na minha cara que sou acomodado. De tanto ouvir suas queixas, dei no pé. Aqui sou mais feliz...
...Bira me contou e custei pra acreditar! O Gervásio, aquele que esmola na Rio Branco, e mostra suas pernas abertas por feridas inflamadas, fica de sete horas da manhã até cinco horas pedindo, chorando por dez centavos. Quando vai embora, pega sua muleta e vai na Cinelândia. Achavam que ele ia pro Aterro, dormir lá pelos lados da Glória. Mas dormir nada! Depois do Amarelinho da Glória, numa rua transversal, ele entra em uma casa, daquelas de dois andares, bem antiga, e uma hora depois sai todo arrumado, banho tomado, e vai beber um chope no bar. A profissão dele é pedir, e de tanto pedir, agora tá rico! Vê se pode...
...de noite a cidade fica linda com suas luzes nos prédios, bares e nos postes...
...e de noite, quando me reúno com meus semelhantes, digo com sinceridade, não tenho nenhum bem material, mas tenho liberdade em deixar meus pensamentos fluindo aleatoriamente, sem censura...

Rogerio de C. Ribeiro



sexta-feira, 30 de maio de 2014

O PRÊMIO CAPÍTULO 5

No capítulo anterior: E Mônica continuou no mesmo lugar, sentada, assistindo a tudo passivamente. Na verdade, ela nem estava prestando atenção no marido e nos meninos. Sua cabeça agora viajava em um armarinho da área, onde havia uma sacola de plástico escondida, que representava seu futuro, sua felicidade, seu grande prêmio.

CAPÍTULO 5

Envolvida na escuridão do quarto com o irritante matraquear do ventilador e seu bafo quente, aguardava, ansiosa, pelo primeiro ronco de Adroaldo para se levantar e ir para a área de serviços. Depois que Adroaldo aplicou uma surra de cinto nos meninos e colocou-os de castigo, ele voltou ao seu normal. Jantou, assistiu o jornal da noite e se deitou. Depois do discurso, não abriu mais a boca. E Mônica que ia repreende-lo pela surra dada nos meninos, decidiu ficar quieta. Esquentou o jantar, fez o prato do marido como se nada tivesse acontecido. O que ela queria mesmo era que Adroaldo caísse no sono pesado de sempre; assim ela ficaria livre para fazer o que queria desde cedo.
No primeiro ronco Mônica nem esperou pelo segundo; levantou-se, desgrudou a camisola colada no seu corpo suado e pisou descalça no chão para não fazer barulho. Girou a maçaneta da porta, olhou por sobre os ombros e viu Adroaldo deitado de barriga para cima só de cueca, encharcado de suor, que descia em filetes pelo seu rosto e pelas costelas, molhando o lençol. Mônica abriu a porta e depois fechou com todo cuidado; seguiu pelo corredor iluminado por uma lâmpada ao lado do banheiro e chegou na sala. Mônica não precisou ligar o interruptor de luz para encontrar o que queria; conhecia todas posições dos móveis com olhos fechados. Tateou no armário e bateu em cima da capa do álbum. Tirou da prateleira, dobrou-o e seguiu para a área.
Entrou na cozinha, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água gelada e encheu um copo. Bebeu um gole e levou o copo pela metade em caso de Adroaldo fosse surgir de repente na cozinha. O copo d'água era seu álibi. Diria: Estava com a garganta seca e vim beber água. E se Adroaldo visse o álbum de figurinhas embaixo do braço dela, ela podia dizer: Sabe como são os meninos, sempre bagunceiros (além de ladrões!), deixam rudo espalhados! Claro que ele acreditaria nela. Mônica aprendeu que mentir era necessária para que pudéssemos atingir nossos objetivos. E ela descobriu, sem querer, que sabia mentir, e muito bem!
Uma porta de madeira separava a cozinha da área. Ela girou a chave e pisou no chão de cimento. Deixou o álbum e o copo d'água em cima de uma pequena mesa onde se guardavam um pote cheio de pregadores e um refil com amaciante. Abriu o armarinho e precisou ficar na ponta dos pés para alcançar a sacola de plástico; ela estava enrodilhada nos fundos, entre uma caixa de sabão em pó e uma garrafa de água sanitária. Conseguiu pegar a sacola, voltou para a mesa e sentou-se em um banco redondo de madeira. Acendeu a luz da área, e o lugar se iluminou fracamente. Os seus dedos tremiam quando rasgou os pacotinhos. Foi tirando os cromos e espalhando-os em cima da mesa. Foi colando uma a uma e as repetidas deixando de lado. Seu coração batia descompassado e gotículas de suor brilhavam em cima dos seus lábios. Não demorou nem quinze minutos e tinha colado todas figurinhas. Guardou as repetidas dentro da sacola de plástico, e a escondeu de novo dentro do armarinho.
Depois voltou para saborear o álbum. Já tinham mais de sessenta figurinhas novas, mas nenhuma página ainda foi completa. Em cada página havia um tema do corpo humano. Na primeira eram precisos oito cromos para formar o quadro de um crânio humano - só tinham três cromos colados, a fronte lateral, um que era da mandíbula e uma parte do maxilar.
Na página seguinte era do sistema circulatório. Ali cinco cromos mostravam quase o quadro completo do coração humano. Mais uma vez ficou impressionada com a nitidez e a riqueza de detalhes de cada figurinha. Era como se estivesse vendo um coração na sua frente. Mônica soltou uma risadinha nervosa com a súbita imaginação fértil; durante sua vida inteira foi uma mulher prática, que nunca sonhou e nem fantasiou com coisas que não existisse ao seu redor.
Virou as páginas freneticamente até que chegou na última delas. Mônica ficou sem ação por um momento; a última página, agora iluminada por uma fraca lâmpada de 60 velas, mostrava um quadro com o número 280. Só uma figurinha completava essa página. Ela leu na legenda e ali só estava especificado: CROMO FINAL.280.
Voltou as páginas e conferiu-as: Todas tinham um índice. Uma era do crânio humano, outra das artérias, outra do coração... Todas tinham uma descrição. Só a última que não, era só o único e solitário quadradinho com o número 280, e escrito Cromo Final.
Mônica fechou o álbum e balançou a cabeça. Quando viesse essa figurinha número 280, ia saber do que se tratava. De repente podia ser a foto do corpo humano em miniatura...
Precisava voltar ao seu quarto antes que Adroaldo interrompesse seus roncos para ir no banheiro. E se ele não a visse deitada e suada, embalada pelo vento quente do ventilador, ia procura-la pela casa toda. E se a encontrasse ali na área com o álbum de figurinhas, com certeza não ia sorrir.
Sem perceber, ela escondeu o álbum dentro do armarinho, desligou a luz da área e voltou correndo descalça para seu quarto. "Meu ninho do amor!", pensou. Controlou o riso iminente para não acordar seu marido. Deitou-se, virou de lado e pensou:
"Preciso de mais dinheiro para comprar figurinhas. Vou completar esse álbum logo. Esse prêmio vai ser meu!"
Dormiu quase imediatamente, dessa vez um sono sem sonhos.

Continua...

No próximo capítulo: Mônica às voltas com sua vizinha fofoqueira.

Rogerio de C. Ribeiro


quinta-feira, 29 de maio de 2014

SE ME CHAMAREM, DIGA QUE NÃO ESTOU

Quando nasci, meu pai profetizou:
- Ele vai ser alguém na vida!
Quando fiz um ano, minha mãe disse:
- No próximo aniversário vamos fazer uma festa!
Quando fiz cinco anos, meus pais disseram:
- Você vai ganhar um irmãozinho!
Quando fiz seis anos, minha mãe disse:
- Porquê você é tão mau com seu irmão?
Quando fiz oito anos, minha professora disse:
- De castigo! Tem que escrever mil vezes no quadro negro: "Nunca mais vou falar palavrão dentro da escola" !
Quando fiz dez anos, minha tia perguntou:
- O que fez com sua prima na área?
Quando fiz onze anos, minha tia perguntou novamente:
- O que tava fazendo com seu primo na área?
Quando fiz treze anos, meu pai recriminou:
- Brinco é coisa de menina!
Quando fiz quatorze anos, minha mãe questionou:
- O que faz aí no banheiro que demora tanto?
Quando fiz quinze anos, meu irmão avisou:
- Papai falou que quem usa batom é mulher!
Quando fiz dezesseis anos, meu amigo disse:
- Olha a revista que comprei... é sueca!
Quando fiz dezoito anos, o sargento gritou:
- Olhem pro tamanho do pauzinho dele!
Quando fiz dezenove anos, minha namorada perguntou:
- Você é virgem????
Quando fiz vinte e dois anos, minha mãe comunicou:
- Não quero mais saber do seu pai. Me apaixonei pelo Vinicius.
Quando fiz vinte e três anos, Vinicius, meu ex-melhor amigo disse:
- Só fiquei com sua mãe pra ficar mais perto de você.
Quando fiz vinte e quatro anos, eu disse para minha família:
- Sou gay.
Quando fiz trinta e dois anos, meu parceiro disse:
- Fiz o teste. Deu positivo.
Quando fiz trinta e cinco anos, Jeanette, minha amiga, me consolou:
- Que Jacques descanse em paz.
Quando fiz trinta e oito anos, meu médico disse:
- Negativo. Você não é portador.
Quando fiz quarenta anos, meu pai disse:
- Meu filho, sinto sua falta. Venha morar na minha casa.
Quando fiz quarenta e dois anos, meu irmão disse:
- Papai nunca quis dizer antes, mas sempre se orgulhou de tê-lo como filho.
Quando fiz quarenta e cinco anos, minha tia disse:
- Sua mãe sempre esteve ao seu lado.
Quando fiz cinquenta anos, meu novo namorado disse:
- Não me importa se é soropositivo. Eu te amo.
Quando fiz cinquenta e cinco anos, meu primo disse:
- Obrigado pela dica. Fui chamado para a peça.
Quando fiz sessenta anos perguntei ao meu parceiro:
- Aceito ou não o convite para dirigir a nova peça?
Quando fiz sessenta e dois anos, meu editor disse:
- Seu livro é sucesso de vendas!
Quando fiz setenta e um anos, meu editor disse:
- A crítica acabou com seu livro.
Quando fiz oitenta anos, o médico disse:
- Câncer na próstata.
Quando fiz oitenta e um anos, me despedi:
- Para meus amigos, inimigos, parentes, serpentes, meu irmão e meu parceiro de longa data, meus primos e meus sobrinhos, para os que me apoiaram e também para aqueles que me vaiaram, ao meu sucesso e ao meu fracasso, para Deus e o Diabo, quero que saibam que minha vida foi muito boa, teve momentos tristes, mas também alegres. Tive que superar obstáculos, mas passei por elas sem me ferir. Até minha opção sexual, que escondi por bom tempo, um dia acordei e pensei: Que se fodam aqueles que virarem a cara pra mim. Eles que não são merecedores da minha amizade. E quando fiz isso, me tornei mais feliz. Tudo bem que teve tempestades, mas são das intempéries que vem a bonança. Escrevi livros, dirigi peças, plantei árvores. Só não tive filhos, mas não é sempre que a gente tem tudo o que quer. Só digo com toda sinceridade, sei que meu tempo está chegando no fim, mas ora bolas, como é bom viver!
Quando fiz oitenta e dois anos, não disseram mais nada.


Rogerio de C. Ribeiro

O PRÊMIO CAPÍTULO 4

No capítulo anterior: Adroaldo descruzou os braços e apontou para os meninos que se encolhiam aterrorizados no sofá:
- Um desses dois ou talvez os dois juntos me roubaram vinte reais da minha carteira. Se tem uma coisa que nunca admiti na minha vida foi ter filhos ladrões!
- Adroaldo, você está sendo injusto com seus filhos - Mônica sentou-se entre os dois filhos que a abraçaram. - O que te leva a crer que Felipe ou Mateus tenha pego dinheiro da sua carteira?
Furioso, Adroaldo gritou:
- Você mexeu na minha carteira, Mônica?

CAPÍTULO 4

- Claro que não! Eu nunca mexi na sua carteira! - Mônica mentiu, e o engraçado que não sentiu um pingo de remorso pela mentira. Encarou Adroaldo com um misto de raiva e mágoa, e notou que quando ele gritou novamente, uma viscosa baba escorria pelo seu queixo bem escanhoado:
- Eu sei que não foi você, Mônica! Em dez anos de casados, você nunca me tirou um centavo.
- Você não perdeu esse dinheiro... ou gastou em algum lugar e não está se lembrando?
O rosto de Adroaldo ficou rubro; Mônica pensou que ele ia ter um AVC nesse momento:
- Perder dinheiro?? Nunca perdi um centavo na minha vida! E quando gasto, o mínimo que seja... - meteu a mão no bolso e tirou uma página de caderno dobrada. Abriu-a e mostrou: - Você sabe muito bem que todo dinheiro que gasto anoto num papel e depois lanço no meu caderno de notas. Cada centavinho que gasto fica aqui anotado. Só assim, posso controlar o dinheiro que ganho. Nunca desperdicei com bobagens, e só gasto mesmo quando no necessário!
- De repente pode ter se esquecido de anotar... com tantas coisas na sua cabeça, as vendas fracas, a pressão de vender...
- Mônica, minha vida sempre fui movido a pressão! Pressão de educar nossos filhos, pressão de ganhar dinheiro, pressão dos colegas invejosos... Minha cabeça pode explodir de tanta pressão, mas esquecer se comprei uma jujuba na cidade, isso não esqueço!
- Pai, não fui eu e nem Mateus - disse Felipe, timidamente. - Juro por Deus que não foi a gente!
Adroaldo soltou uma risada e gotas de salivas espalharam-se à sua volta. Ele mirou os dois novamente e devagar tirou o cinto da sua calça comprida:
- Posso pedir uma coisa para vocês? Peço encarecidamente que não venham com mentiras para mim! - Adroaldo respirou fundo e continuou: - Hoje de manhã, eu tinha certeza que o meu dia seria promissor. Agendei com um casal de clientes que estavam interessados naquele apartamento em Icaraí. Minhas chances de vender o apartamento eram de 99,99%. Saí daqui confiante, fui para a imobiliária para pegar as chaves do apartamento - Ao mesmo tempo que contava como tinha sido seu dia, ele dobrava e desdobrava o cinto de couro que segurava. Mônica viu a veia do pescoço de Adroaldo inchada. Ela abraçou seus filhos e esperou que o marido fizesse seu desabafo para ficar mais calmo; - Me encontrei com o jovem casal na portaria do prédio. Mostrei todo apartamento, a vista para a praia, e eles ficaram encantados. Ouviram? Eles se encantaram pelo apartamento. Só faltava a gente voltar para a imobiliária e assinarmos os papéis de compra e venda. Nisso, enquanto esperava o casal sair do apartamento, me apareceu no corredor um velho de uns 80 anos que é vizinho daquele apartamento vazio. Perguntou para mim se o apartamento tinha sido vendido e respondi que quase, quase mesmo. Eu segurava a porta enquanto o jovem casal passeavam e admiravam a sala. Foi nesse instante que o velho passou por mim, se aproximou do casal e disse: "Já contaram para vocês que o crime foi aqui onde vocês estão , no meio da sala?" Quando ouvi isso gelei por dentro. O cliente me olhou e disse: "Crime? Não nos falaram nada disso!" Tentei argumentar que ninguém na imobiliária sabia disso, mas o desgraçado do velho sacudiu a cabeça e deu sua estocada certeira: "Claro que sabem. O senhor pode não saber do assassinato que aconteceu aqui, mas já veio outros corretores com clientes e todo mundo sabe da história de Ernesto Braga, que matou Marta Braga por ciúmes, cortou-a em pedacinhos e botou os pedaços dela em duas malas de viagem. Na época saiu em todos jornais. Mas se o senhor não é daqui do Estado do Rio, pode ser que não saiba mesmo." A esposa do meu cliente teve uma crise de choro e chilique ao mesmo tempo. Repetiu para o marido: Eu que não vou morar num lugar que uma esposa foi esquartejada! Nunca! Nunca! O cliente pegou sua mulher pelo braço e os dois saíram furiosos do apartamento. Quando ele abriu a porta do elevador me olhou com raiva e disse: Por isso que o preço do apartamento tá bem abaixo do mercado! E depois dessa, vi minha venda certa escorrendo pelo ralo. Pensei em dar uma porrada no velho, mas depois vi que podia me ferrar de vez. O velho, antes de entrar no seu apartamento que era no lado, disse: Diga sempre a verdade para seus clientes. Melhor dizer logo do que perder um dia de trabalho.
Adroaldo bateu o cinto dobrado na palma de sua mão e perguntou, um pouco mais calmo depois do desabafo:
- Estou com fome, não comi nada pra não gastar, e quero tomar um banho bem frio pra esfriar a cabeça. E qual foi minha surpresa quando vi que faltavam vinte reais na minha carteira...  Meu dia de inferno ficou completo! Agora me digam, quem pegou o dinheiro?
Novamente os dois negaram. Adroaldo chamou os dois para irem até ele. Felipe e Mateus olharam sua mãe, o terror estampado nos olhos. Mônica disse:
- Para com essa tortura, Adroaldo. Deixe os meninos em paz.
- Sabe o que é isso, Mônica? - A palma da mão dele estava vermelha com as pancadas do cinto em cima: - É a internet. São os joguinhos violentos. São as porcarias dos programas na tevê que não ensinam nada de bom para as crianças. É uma geração que não distingue o certo e o errado. Acham que surrupiar o pai que se mata de trabalhar pra sustentar eles mesmos, é a coisa mais normal do mundo... Uma geração de delinquentes irresponsáveis!
Adroaldo bateu com seu cinto na sua perna e gritou:
- Ou vocês vem aqui ou vou até vocês!!!
Mônica entrou em um dilema. Suspirou e disse:
- Adroaldo, vê lá o que vai fazer com os meninos...
- Felipe e Mateus, venham aqui, agora!!!!
Vagarosamente os meninos se aproximaram do pai. Adroaldo desceu o cinto nos dois. Felipe e Mateus correram pela sala com Adroaldo atrás, dando cintadas neles enquanto o pequeno Daniel em seu chiqueirinho berrava e chorava junto.
E Mônica continuou no mesmo lugar, sentada, assistindo a tudo passivamente. Na verdade, ela nem estava prestando atenção no marido e nos meninos. Sua cabeça agora viajava em um armarinho da área, onde havia uma sacola de plástico escondida, que representava seu futuro, sua felicidade, seu grande prêmio.

Continua...

No próximo capítulo: O prazer de colar figurinhas pode se tornar um vício.

Rogerio de C. Ribeiro

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O PRÊMIO CAPÍTULO 3

No capítulo anterior: - Que foi, Adroaldo? Agora não posso nem dormir em paz... Já basta esse calorão...
- Dormir você pode, mas ficar gemendo e falando que vai, eu vou, eu vou... Tava sonhando com quem?

Capítulo 3

Agora Mônica despertou de vez. Olhou o despertador e disse, irritada:
- Pô Adroaldo, viu que horas são?
- Não sei que horas são. Mas o que sei que não é hora de ficar gemendo e falando enquanto dorme.
- Agora vai dar de ficar controlando meus sonhos, Adroaldo?
- Claro que não, fiquei preocupado com os gemidos. Quando acordei, pensei que tava tendo um troço...
- Não estava tendo nenhum troço.
- E com que sonhava?
- Nem me lembro mais, Adroaldo. Sei lá o que sonhava. Esqueci.
Adroaldo deitou sua cabeça no travesseiro e disse:
- Fiquei preocupado... Se você tem um treco nem sei que faço...
- É muito simples, se eu tiver um piripaque, me leve para um hospital público. Estamos sem plano de saúde mesmo...
Adroaldo virou-se de lado e disse:
- Agora não vai ficar me culpando porque estamos descobertos, Mônica. Sabe muito bem que as vendas de imóveis estão fracas... E já prometi que na primeira comissão vou fazer um plano pelo menos barato para as crianças.
- Tá bom, chega Adroaldo, me deixa dormir. Ainda são quatro e dez da manhã. Não é você que vai acordar às seis horas pra chamar os meninos para o colégio. E nem preparar o café da manhã deles.
Mônica ouviu um ronco; seu marido caiu no sono enquanto ela falava. E era sempre assim.
Mônica virou para o lado e teve esperanças que o sonho voltasse.
                                                    
                                                     ***

- Mônica! - ela ouviu seu marido gritando do banheiro enquanto tomava banho. Ela acabara de dar uma mamadeira para Daniel, que sugava com volúpia do bico enquanto via desenho animado na tevê deitado no sofá. - Separa aquela camisa listrada que me dá sorte e a gravata azul marinho! Hoje vou levar um casal interessados naquele apartamento da Otávio Carneiro! 
- Vou deixar na cama - disse Mônica enquanto ia para o quarto. Pegou a camisa e a gravata do armário e deixou em cima da cama. Ia saindo, mas algo chamou sua atenção. Viu a carteira dele em cima da penteadeira. Ficou onde estava em silêncio, entre a cama e a penteadeira, e ouviu Adroaldo desafinando debaixo do chuveiro. Ela pisou devagar e pegou a carteira. Abriu e contou quanto ele tinha em dinheiro. Pegou vinte reais e escondeu dentro do sutiã. "Nem vai sentir falta dessa nota", pensou ela.

Depois do almoço pediu que Felipe ficasse de olho nos irmãos porque ia comprar açúcar. Ela recomendou:
- Tranque bem a porta. Não abra pra ninguém, tô levando minha chave.
Deixou as crianças vendo televisão e saiu para a rua. Comprou o açúcar na venda do Emanuel e disse:
- Bota na conta, por favor - Tinham conta no caderninho na venda de Emanuel, que Adroaldo acertava todo fim do mês. Saiu com a sacola levando o açúcar, atravessou a rua e chegou em uma banca de revista no outro lado. Jorge, o jornaleiro, cumprimentou-a.
- Ainda não chegou a Ti Ti Ti dessa semana, dona Mônica - disse Jorge enquanto contava os jornais que sobraram no dia.
- Não vim comprar nenhuma revista, Jorge. Você tem as figurinhas do novo álbum que saiu?
- Do corpo humano? Tenho.
Ela puxou a nota de vinte reais do sutiã e pediu:
- Tudo em figurinhas.
Jorge contou e entregou quarenta pacotinhos. Guardou o dinheiro no caixa e comentou:
- Esse é um dos poucos álbuns educativos que estão na praça. Na minha época tinham mais, de Ciências, de Geografia, História...
- Sim, sim... - Mônica escondeu os pacotinhos dentro da sacola com o açúcar. - Obrigada Jorge...
- Seus filhos devem estar se divertindo com essa coleção...
Mônica não respondeu, apressou os passos e atravessou a rua. Quando chegou no portão da sua casa, Guiomar, sua vizinha portuguesa, varria as folhas caídas de uma mangueira na calçada. Ela cumprimentou Mônica e disse:
- Mônica, se soubesses que estava sem açúcar te arrumava um quilo! Deixar seus meninos sozinhos em casa é muito perigoso!
- Felipe já tem idade de tomar conta dos irmãos menores - disse Mônica quando abriu o portão. - E nem demorei muito, não tem nem cinco minutos que saí...
- Em cinco minutos muita coisa pode acontecer... - profetizou Guiomar enquanto varria as folhas secas para o meio-fio.
- Nada aconteceu, e isso que importa - disse Mônica trancando o portão. Pegou sua chave e abriu a porta da sala. Felipe e Mateus continuavam sentados no sofá vendo Chaves na tevê e Daniel dormia dentro do chiqueirinho abraçado com seu ursinho de plástico. Quando viu sua mãe, Felipe perguntou, ainda com os olhos grudados na tevê:
- Manhê, comprou alguma coisa pra gente?
- Não, quem tem dinheiro nessa casa é o seu pai. - Mônica apressou os passos e entrou na cozinha. Tirou o açúcar da sacola e guardou-o no armário junto com outros pacotes de açúcar ainda fechados. Deixou os pacotinhos de figurinha dentro da sacola e procurou um lugar onde pudesse esconder das crianças e do seu marido. Havia o armário das panelas embaixo da pia, a despensa com os mantimentos (esse com certeza não, Adroaldo sempre procurava  amendoim ou batatas fritas para ver futebol), no armarinho da área onde ficavam guardados detergentes, sabão em pó, panos de chão... Mônica empurrou a sacola de plástico com as figuras no fundo do armarinho. Nem Adroaldo e nem os meninos iam mexer ali.
Mônica acabara de dar banho no seu filho caçula quando Adroaldo chegou da rua. Pela cara dele, as coisas não andaram conforme ele planejara. Adroaldo largou sua pasta na poltrona e afrouxou a gravata. Felipe e Mateus, que conheciam muito bem o humor do pai, continuaram sentados no sofá vendo tevê. Adroaldo largou sua gravata azul marinho em cima da pasta, contornou o sofá onde os meninos estavam sentados e desligou a tevê. Depois virou-se, cruzou os braços e perguntou:
- Quem foi que pegou dinheiro da minha carteira ?
Aterrorizados, os meninos continuaram em silêncio. Adroaldo continuou com os braços cruzados e olhou de um filho para o outro.
- Vou dar só uma chance para que vocês confessem... quem foi que ROUBOU vinte reais da minha carteira?
- Não fui eu! - disse Felipe.
- Nem eu - Mateus disse, choramingando.
Mônica veio do quarto com Daniel no colo. Espantada, viu Adroaldo em pé, de forma ameaçadora na frente dos filhos.
- O que foi que aconteceu? - Mônica perguntou enquanto ajeitava Daniel no chiqueirinho.
Adroaldo descruzou os braços e apontou para os meninos que se encolhiam aterrorizados no sofá:
- Um desses dois ou talvez os dois juntos me roubaram vinte reais da minha carteira. Se tem uma coisa que nunca admiti na minha vida foi ter filhos ladrões!
- Adroaldo, você está sendo injusto com seus filhos - Mônica sentou-se entre os dois meninos, que a abraçaram. - O que te faz acreditar que Felipe ou Mateus tenha pego o dinheiro da sua carteira?
Furioso, Adroaldo gritou:
- Foi você mexeu na minha carteira, Mônica? 

Continua...
No próximo capítulo: Adroaldo conta sobre uma venda e o triste desfecho.

Rogerio de C. Ribeiro

terça-feira, 27 de maio de 2014

ANGELICAL E PURA

Confesso que antes de Angélica, ainda não tinha conhecido nenhuma mulher que combinasse tão bem seu nome com sua pessoa. E antes de conhecê-la, nunca me imaginei fiel a uma mulher só.
Foi na festa do Gomes que a conheci. Logo que pus os olhos em cima daquela menina loura, de olhos azuis e quieta, sentada com sua tia em uma mesa no canto do salão, por um momento voltei a minha adolescência. Só que dessa vez não foi uma paixonite que durava uma semana, não. Foi amor à primeira vista.
Fiz de tudo para ser apresentado, mas Gomes me orientou que ela não era do tipo de mulher que eu estava acostumado em sair. Usou uma palavra fora de moda quando a descreveu: "Ela é das antigas, para casar."
No início não levei fé, argumentei que era coisa do século passado, e Gomes me desafiou: "Então vai lá e quebra sua cara, dom juan de nicti city."
E fui mesmo. Só não esperei que a tia dela servisse de escudo, e impedisse que eu sentasse junto delas. Pelo olhar gelado que a velha me lançou, nem precisou falar que eu era persona non grata. Mal pude dizer meu nome, e o máximo que consegui foi ouvir da velha: "Meu nome é Dália, e Angélica, minha sobrinha." Seca. Sem convite para sentar. Imune ao meu charme.
Mas consegui arrancar um sorriso daquela linda moça. Foi um sorriso cândido. Nunca antes na minha vida conheci uma mulher com tanta candura, tanta pureza na alma. Parecia uma santa. Os olhos dela... Olhos grandes, de um azul vivo...
Uma semana depois telefonei para o Gomes e exigi, pelos velhos tempos, o endereço dela. Gomes disse:
- Já te falei, com ela você só vai perder seu tempo.
- Que eu perca todo tempo do mundo, só me passa o endereço!
Gomes relutou:
- Você não sabe a missa metade da vida dela, meu chapa. A vida para ela não tem sido muito generosa.
E ele me contou. Angélica perdeu seus pais cedo, ficou órfã com 8 anos depois que os pais morreram em um acidente de carro, e desde então foi criada pela tia Dália. Quando a conheci tinha 19 anos, mas era tratada como se ainda fosse criança.
- Mesmo que ela queira alguma coisa contigo, tem a velha como seu obstáculo.
Peguei o endereço e fui. Ela morava numa pequena casa em Mutuá, em São Gonçalo. Como Gomes disse, tive que transportar um paredão. Pela vontade da tia Dália, eu nem passava do muro. Mesmo com a caixa de bombons que levei de presente para ela, Dália não deu o braço a torcer, e acredito, se pudesse jogava o embrulho para presente na minha cara. Enquanto eu tentava dizer porque eu tinha ido visita-las, ouvi uma doce voz atrás da velha:
- Deixa ele entrar, tia.
Com certa relutância e com uma expressão no rosto que dizia claramente: "estou de olho em você!", Angélica me convidou para entrar.
E foi o início de um namoro patrulhado pela tia e às vezes por outros parentes de Angélica. Foi namoro na sala, vendo filmes na televisão, comendo pizza e no máximo um beijinho no portão quando eu ia embora. Namoro do século retrasado, mas que funcionou. Eu percebi que não podia mais viver sem Angélica, queria me casar com ela.
Vou pular o noivado para não alongar muito. O casamento foi na Igreja Matriz, e nossa lua de mel passamos em Cabo Frio.
Nunca experimentei tanta felicidade como nos primeiros anos de casamento. Os elogios que fiz no início se consolidaram nos dois primeiros anos. Como era maravilhoso quando eu acordava e a via ainda dormindo, seus cabelos esparramados no travesseiro, sua respiração silenciosa, sua pele tão branca... Eu me portava como um garoto de quinze anos, extremamente apaixonado. Angélica não tinha defeitos, não falava alto, era discreta, companheira, cúmplice. Posso até estar exagerando, mas pra mim ela era uma santa.
Quando ela me deu a notícia da gravidez, me senti o homem mais sortudo do planeta. Nesse tempo já havia me afastado dos meus antigos colegas de copo, de farra. No trabalho, melhorei meu desempenho no escritório. Recebi elogios do meu chefe, que uma época atrás pensou em me demitir. Mudei da água para o vinho.
Com o nascimento de Isabella, vi outro anjo dentro de casa. Angélica, como mãe, era dedicada, amorosa, zelosa com nossa filha. Se vocês perceberem, vão ver o retrato em cima escrivaninha da sala, onde registrei o momento de Angélica e Isabella, com dois anos, sentadas em um banco no Campo de São Bento, enquanto jogavam miolo de pão para os patos na lagoa. Se prestarem atenção, vão notar a aura em cima delas. Não digam que sou exagerado, eram duas santas.
Como na vida existe seus prós e contras, houve a tragédia. Todo dia de manhã agradecia a Deus pela minha plena felicidade. Era tanta felicidade dentro da nossa casa que às vezes achava que estávamos roubando um pouquinho de cada pessoa. Porque nossa casa sempre era sol, nunca houve tempestades.
Mas parece que Deus viu que não era justo só uma família ser feliz. Ele deve ter visto nossa harmonia, apontou seu dedo e deve ter pensado: "Vou fazer que eles conheçam o sofrimento. Vamos ver se mantém a união depois disso!"
Só pode ser isso. Isabella tinha três anos e fazia natação no clube, e Angélica sempre a acompanhava. Uma vez também fui, tinha sido feriado pros funcionários públicos, e aproveitei e fiquei assistindo minha Bela e suas amigas na aula de natação. Comentei pra Angélica que nossa filha parecia uma sereia. Admirei minha menina lourinha nadando de um lado ao outro, na maior desenvoltura. E ainda pensei: Essa vai ser campeã olímpica!
Ninguém soube me explicar direito o que realmente aconteceu. Só sei que estava no trabalho e recebi uma ligação de um homem que não conhecia. Ele se identificou como um funcionário do clube, e me avisou que Angélica estava no hospital com minha filha.
Quando cheguei na clínica, Angélica estava sendo amparada por sua tia Dália. Até seu choro era silencioso. As lágrimas corriam pelo seu rosto oval, os olhos ficavam vermelhos, mas ela não gritou, esperneou, nem fez escândalo.
Soube que elas estavam no clube, e que Bela disse para a mãe que queria mostrar seu novo mergulho na piscina. Angélica bebia um refrigerante e disse: Quero ver.
Só não sabia que o ralo estava sem tampa. E não havia nenhum funcionário perto para dizer que estavam trocando a água. Bela mergulhou e seus cabelos foram sugados para o ralo. Angélica pulou na piscina, mas como não sabe nadar, quase se afogou também. E só aí que apareceram dois funcionários. E só aí que eles primeiro tiraram Angélica da piscina, e tiveram que desligar os equipamentos para tirar Bela do fundo.
No momento que a vi dentro do caixão branco, me descontrolei, queria quebrar tudo que via na minha frente. Tiveram que me sedar para continuar no velório. Nessa hora vi Angélica serena, sentada na sua cadeira olhando para nossa filha sem dizer um ai. Ela que me deu força, segurou minha mão e seu silêncio me acalmou.
Os primeiros meses foram terríveis para mim. Não conseguia entrar no quarto dela, olhar sua cama e suas bonecas me angustiavam. Comecei a beber com esperança de apagar na minha memória a tragédia. Angélica continuou com sua vida, serena, me apoiando, mesmo quando eu era ríspido e chegava bêbado em casa.
Angélica nunca disse nada. Com paciência esteve no meu lado, e com serenidade, me compreendia.
Foi difícil, mas superei a dor da perda. Claro que a dor nunca foi embora por completo, mas pude aguentar sem precisar mais beber.
E durante meu período de sofrimento, percebi que não prestava mais atenção em Angélica. Decidi que íamos voltar a ser como antes, e quem sabe teríamos outro filho para alegrar nossa casa.
A harmonia e a plenitude da nossa felicidade nunca mais voltou o que foi antes, mas seguíamos com nossa vida, mesmo com a profunda cicatriz que ficou em nós.
Eu sei que mudei, mas via Angélica agindo como sempre agiu em casa. Ela não baixou a cabeça, não mostrou sofrimento, e falava comigo como antes. Me surpreendi com sua força interior, e meu amor por ela reacendeu. Eu era a parte fraca na casa, e me sustentei com sua força para me erguer novamente.
E novamente quando pensei que nossa vida entraria nos eixos, veio aquilo.
Como escrevi acima, depois da morte de Isabella entrei em tamanha depressão que não enxerguei o que acontecia à minha volta.
Foi no jantar que a verdade berrou diante dos meus olhos. Eu e Angélica costumávamos comer na mesa da cozinha, e quando eu preparei meu prato, ouvi:
- Você tem que comer tudo - Angélica disse, às minhas costas.
- Eu vou comer - eu disse, e quando me virei para sentar, vi que ela olhava para o seu lado.
Ela olhava para a cadeira que Isabella sentava nas refeições.
Nem mexi na comida. Fiquei prestando atenção nos movimentos de Angélica. Enquanto ela ia comendo, dizia para a cadeira vazia:
- Não pode deixar nada no prato, hein. Assim não vai ficar bonita.
Seus olhos azuis, placidamente fitavam a cadeira vazia. E ela sorria.
- Com quem está falando? - Perguntei.
Angélica virou seu rosto na minha direção, e era um rosto sereno, os olhos brilhavam.
- Ora essa... com nossa filha, claro!
E entendi. Durante meu processo de luto, Angélica seguiu normalmente com sua vida. Para ela, nossa filha estava viva. Por isso arrumava o quarto de Bela diariamente, lavava suas roupinhas e as passava. Por isso que a via rindo, como estivesse conversando com alguém.
Não sei explicar se Angélica enlouqueceu depois da morte de Bela ou se ela sempre foi louca e nunca percebi. Talvez toda santidade dela fosse... nem sei dizer direito.
E nem sei se vão acreditar nisso. Talvez digam que o louco fui eu. Mas precisei fazer isso. Não ia suportar viver vendo a mulher, que idolatrei, santifiquei, piorar a cada dia que passava.
Ontem de noite acordei e não a vi deitada ao meu lado. Fui procura-la e a achei na cozinha. Angélica segurava uma faca.
Eu disse para ela largar a faca, mas ela disse:
- Tenho que preparar o almoço de Bela...
Eu cheguei perto dela, e Angélica foi para a pia. Vão achar que a empurrei, só segurei sua mão, ia tentar tirar a faca, mas ela tropeçou do nada e caiu. E caiu em cima da faca que empunhava.
Fiquei estático, olhando minha mulher morta. Não sei se ela fez de propósito, ou se o tombo foi casual.
Pode ser que em um momento de lucidez, ela tenha visto que era uma saída digna para o inferno que se transformou nossa vida.
Eu ainda a amo, mesmo com tudo isso.
E não ia aguentar outro luto.
Por isso, quando entrarem aqui em casa, vão nos encontrar, Angélica na cozinha e eu na cama.
Estou pronto para engolir todos comprimidos que comprei na época da minha depressão. São mais de quarenta, e quando derem por nossa falta, já terei morrido.
Meu gesto é covarde, mas não ia suportar viver sem Angélica ao meu lado.
Espero que entendam isso.
Não sei se existe vida depois da morte, mas se houver, espero reencontra-las.
Assinado: .....................

Rogerio de C. Ribeiro


O PRÊMIO - Capítulo 2

No capítulo anterior: No resto do jantar o silêncio foi sepulcral na mesa. Mônica pensou enquanto comia:
"Mais tarde o convenço... Vamos ver se amanhã ele não vai trazer o álbum e alguns pacotes de figurinhas...E depois que eu ganhar o prêmio, ele ainda vai me agradecer pela minha persistência."


Capítulo 2

E não deu outra. Depois de uma noite em que Mônica fingiu que chorava e que Adroaldo foi consola-la, e depois arrependido pediu desculpas, e ela dizendo que não era culpada se não tinha seu próprio dinheiro; e a chantagem emocional surtiu efeito, e aproveitando o arrependimento dele, pediu: me traga então o álbum e 10 pacotes de figurinhas que te perdoo; fizeram as pazes quando mesmo a contragosto ele concordou. E ela fez com que Adroaldo se sentisse o homem mais feliz do mundo nessa noite.

Mônica escutou o Gol de Adroaldo estacionando em frente de casa e mal ele pisou na sala, ela fazia plantão na porta, o esperando. Adroaldo tirou da sua pasta o álbum que comprara e dez pacotes de figurinhas como ela pedira. Ela correu para a mesa e admirou a capa do LIVRO DE ILUSTRAÇÕES CORPO HUMANO, onde abaixo do título estava escrito: O ÚNICO ÁLBUM QUE VAI EDUCAR E AO MESMO TEMPO PREMIAR.
Mônica folheou as páginas e chegou na quarta página. Havia um regulamento escrito e leu:
"O objetivo do Livro de Ilustrações Corpo Humano é do entretenimento aliado à cultura, incentivando nossos colecionadores que aprendam enquanto se divertem com nossas figurinhas sobre o corpo humano. A alta definição das fotos impressionam pela sua nitidez e perfeição, e em cada página do Livro de Ilustrações Corpo Humano serão necessários de seis a oito cromos para completar uma figura completa. Para completar totalmente o álbum são necessários 280 cromos. Avisamos que para cada pessoa sempre terá uma figurinha difícil, que aqui chamamos de figurinha especial. Ela é especial porque com ela o (a) felizardo(a) será recompensado com um grande prêmio equivalente ao seu merecimento. Somente um colecionador que persistir será recompensado. Sobre o prêmio, a empresa se permite ao sigilo de não divulgar antes do álbum completo. Para maiores informações entrar em contato com a Editora Lune e Mare, ou enviar um e-mail para o diretor responsável Damiano Lescarter: DLTVS@luneemare.com
Mônica parecia em estado de transe enquanto lia o regulamento. Ouviu uma voz distante que dizia:
- Mônica... Mônica...
Ela despertou do seu torpor. Viu Adroaldo e seus filhos ao seu lado, seu marido com um aspecto entediado e as crianças ansiosas de olharem o álbum que sua mãe tinha nas mãos e dava a impressão que não ia largar. Mônica balançou a cabeça e disse:
- Desculpe, estava lendo as regras...
- Para ganhar o tal prêmio do merecimento - disse Adroaldo, mostrando sarcasmo na sua voz. - Bem, tá aí o álbum e as figurinhas que tanto queriam. Agora só quero que prestem bem atenção, dona Mônica, seu Felipe e seu Mateus. Não quero que me venham com pedidos para eu comprar pacotinhos de figurinhas todos dias. O dinheiro que ganho não é capim, ralo bastante pra faturar. Só vou comprar dez pacotinhos por semana, e olhe lá. Todo dia não dá.
- Juro que não pedimos - disseram Felipe e Mateus ao mesmo tempo, e depois disseram à mãe: - Manhê, a senhora pode largar o nosso álbum?
Mônica se deu conta que agarrava com suas mãos o livro ilustrado contra o peito. Envergonhada passou o álbum para as crianças e disse:
- Vão para a mesa e comecem com a coleção, meninos. Depois nos mostra, tá? Vou ver o jantar.
Enquanto Felipe e Mateus rasgavam os pacotinhos e colavam os cromos nos devidos lugares e Adroaldo, depois do banho, estar sentado na sua cadeira de papai com Daniel no colo, Mônica, em pé ao lado do fogão, pensava na sua vida. Uma vida doméstica cuidando de um marido rabugento e fazendo malabarismos com as travessuras dos meninos mais velhos. Daniel era o que menos incomodava, sempre ficava quietinho e só quando sentia fome que abria o berreiro. Uma vidinha enfadonha de dona de casa, sem nenhuma surpresa, sem novidades, sem emoções...
O prêmio era sua válvula de escape. Quem sabe com o prêmio sua vida mudaria? A sua e da sua família?
Era uma oportunidade, e talvez a única, para que algo novo surgisse ...
- Tem alguma coisa queimando aí, Mônica!! - Era Adroaldo da sala.
Mônica acordou dos seus pensamentos e fechou as bocas do fogão. O arroz queimara. Ia ter que fazer outro. E com certeza Adroaldo ia reclamar do desperdício. E diria mais uma vez: Saia desse mundo da lua e viva a realidade!
Com os anos de casamento Mônica decorou cada frase que Adroaldo dizia como se fosse discurso. Como ele não renovava o estoque de ditados e declarações, tornou-se um sujeito previsível, e sua frase predileta era: Você vive no mundo da lua. Enquanto lavava o arroz, disse a si mesma:
- Adroaldo dos Santos Menezes, depois que eu ganhar o grande prêmio, você nunca mais vai repetir que vivo no mundo da lua. Pelo contrário, você vai é me respeitar e muito.

Enquanto os meninos dormiam e Adroaldo roncava deitado com a barriga para cima, Mônica estava sentada no sofá com o álbum no seu colo. Ela ouvia o matraquear dos ventiladores ligados nos quartos; na sala ela acendeu um pequeno abajur que enfeitava uma mesinha ao lado do sofá e sentia a camisola colando nas suas costas.
Ficou com medo de ligar o ventilador de teto da sala e o barulho das pás acabasse despertando Adroaldo, que com certeza não ia gostar de vê-la na sala de madrugada olhando um álbum de figurinhas.
Enquanto folheava as páginas, contava o número de figurinhas coladas. No início era sempre fácil encontrar cromos inéditos. Em cada pacote de figurinhas vinham três, e seus filhos colaram 27 cromos. Só três repetidas... Os meninos tinham que anotar as que faltavam para trocar com os amigos da escola.
Mônica olhou fascinada para a arte de cada página. Na primeira página tinha um cromo mostrando uma parte lateral do crânio. Ela passou os dedos sobre a figurinha e surpreendeu-se com a nitidez e a espessura da foto. Deu a impressão que passava o dedo em um pedaço de osso de verdade! Mônica controlou o riso, que imaginação a sua! Foi virando as páginas e viu dois cromos, um ao lado do outro, que formava o coração humano. "Só me falta escutar as batidas do coração..." Pressionou as mãos na boca para abafar a iminente gargalhada que estava pronta para explodir.
Guardou o álbum no armário e voltou para seu quarto. Adroaldo roncava deitado de lado, e ela ficou deitada de barriga para cima olhando o teto, enquanto o matraquear do ventilador resmungava aos seus pés. Sua vida ia mudar para melhor. Tinha fé que sim. O prêmio seria sua realização das chances perdidas no passado. Nesse momento, sua única alternativa de ser livre era o prêmio. E ele seria seu.
Nem percebeu quando caiu no sono. Sonhou que estava em um salão repleto de luminárias, e vários casais vestidos socialmente dançavam valsa. Ela se vestia com um vestido brilhante, e um colar de esmeraldas caiam até o colo dos seus seios. Os diamantes de sua pulseira faiscavam várias cores ao contato das lâmpadas. Seu par estava elegante em um smoking, e seu sorriso também faiscava. Seus dentes pareciam pérolas. Os olhos dele não desgrudavam do seu decote, ela podia sentir a ereção dele quando colavam seus corpos...
O seu par encostou sua face com a dela e mordiscou de leve sua orelha enfeitada com brincos de esmeraldas. Ela sentiu um frio correndo pela sua espinha e grudou mais seu corpo com o dele. As mãos do seu par eram quentes, faziam o dela suar... E o seu par sussurrou com sua voz aveludada em seu ouvido:
- Não fique com medo. O prêmio será seu. Você será a única merecedora do grande prêmio...
Entre os rodopios da dança, o seu par voltou a grudar seus olhos nos dela. E ela enfim o reconheceu:  Era Damiano Lescarter, o apresentador do comercial do álbum do corpo humano e também diretor-presidente da editora responsável pelo Livro Ilustrado do Corpo Humano.
Mônica sabia que aquilo tudo era um sonho. Confessou a si mesma que não queria acordar. As mãos dele, o hálito de Damiano, o contato dos corpos, o tamanho dele ereto encostado nela pulsando nervosamente, tudo isso a excitava... Sentiu-se molhada, encharcada... Tinha impressão que escorria pelas suas pernas... e quando Damiano beijou-a, enfiando sua língua como uma serpente na sua boca, sorvendo cada gota de saliva, ela gozou, foram vários orgasmos como nunca teve antes com Adroaldo...suas pernas bambearam, dobraram-se e Damiano a sustentou em seus braços. Os olhos dele diziam:
- Quando terminar todo álbum, me procure. Leve ele completo para minha editora. Não imagina a grande honra que vou ter em recebê-la e mostrar seu prêmio... um prêmio à altura do seu merecimento!
Ela sentia-se amparada naqueles braços. E nunca na vida fora beijada daquele jeito. Sabia que tudo isso era um sonho, mas droga, que sonho delicioso!
- Não se esqueça... terminou o álbum, me procure... estou à sua espera...
- Eu vou, quero ir...
- Ir onde??
Mônica sentiu que era sacudida. Abriu seus olhos aos poucos e com uma ponta de desilusão viu que voltou para sua cama, para o calor infernal e abafado e o barulho do ventilador girando suas hélices azuis mandando vento quente em cima dela. Apoiado com seu cotovelo no colchão, Adroaldo a fitava de cima para baixo. O sono foi dissipando e Mônica, pela primeira vez nos dez anos de casamento, percebeu que o marido tinha mau hálito quando acordava.
- Que foi, Adroaldo? Agora não posso nem dormir em paz... Já basta esse calorão...
- Dormir você pode, mas ficar gemendo e falando que vai, eu vou, eu vou... Tava sonhando com quem?

Continua
No próximo capítulo: Vinte reais não faz falta...

Rogerio de C. Ribeiro