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quarta-feira, 30 de abril de 2014

ACREDITE EM MIM


- Doutor, preciso que o senhor acredite em mim. Isso mesmo, não tive culpa do que teve ontem, juro pro senhor por tudo que é mais sagrado que aquilo tudo foi um acidente. Eu não esperava que terminasse daquele jeito. Sei que é difícil pro senhor acreditar no que eu disse diante dos fatos, mas lhe garanto que é a mais pura verdade. O senhor comentou ontem que muitos que vem aqui na sua sala falam a mesma coisa. Eu não sei dos outros, doutor, só sei que comigo o que viram não era o que parecia.
"O senhor pode dar uma olhada aí na minha carteira. Olha meu crachá. Sou um trabalhador, doutor, sou encarregado de obras na America Construções tem mais de três anos.
"Que isso, doutor!  O crachá não é falso. Olha para minha cara. O senhor acha mesmo que levo jeito de quem falsifica alguma coisa, que faz documentos... nem DVD pirata eu compro, doutor.!Peço que o senhor ligue para a empresa; aí no crachá tem o telefone deles. Dona Yolanda que é do departamento pessoal que vai atender a ligação e pode confirmar tudo que disse agora para o senhor.
"Eu não estou enrolando ninguém, doutor! Olha só, nem advogado tenho para me defender. Mas agora não me importo se tenho advogado ou não, tanto que vou novamente contar o que aconteceu ,porque quem não deve não teme, e o senhor vai ver que o inocente na história sou eu.
"Isso mesmo, meu nome é Antônio Silva, fiz 35 anos em janeiro, sou casado e o nome da minha esposa é Marieta Silva e temos três filhos, que é o Júnior, a Clarice e o Ivan. Sempre fui um homem para minha família, nunca fui ligado em nenhuma facção nem minha família. Somos tementes a Deus, doutor, frequentamos o culto na igreja Jesus Tem Poder com o Pastor Nilson. Se forem lá para averiguar, ele confirma.
" O que o senhor acabou de falar dos bandidos que andam armados, metem terror, matam ou vendem drogas nas ruas e se mostram arrogantes e cruéis, mas quando entram aqui , chegam com a cabeça baixa, choram, se dizem crentes a Deus, e que são mais humildes e mais vítimas que as próprias vítimas; bem,  doutor, isso pode servir para os bandidos,  com certeza isso não me atinge, porque como disse e repeti, eu sou inocente.
" O sargento Pimenta que está aqui no meu lado, foi testemunha do que houve, doutor.
" Juro pela saúde dos meus filhos que na hora que sair daqui vou direto para minha casa. Prometo ao senhor que não vou em nenhum grupo de direitos humanos pra contar a eles dos tapas que levei. Não, não vou fazer nada disso. Quero mais é sair daqui e passar uma borracha nisso tudo e continuar seguindo minha vida, doutor.
"O que eu fazia aquela hora da noite na Presidente Vargas? Eu tava andando pro terminal para pegar o último ônibus da noite.
"O que tem a ver que o endereço da empresa é no Méier e que eu estava na Presidente Vargas às onze e meia da noite? Nada a ver. O ônibus que pego fica lá atrás da Central no Américo Fontinelli; moro em Coelho Branco, já ouviu falar? Isso mesmo, perto de Nova Iguaçu.
"O senhor está sugerindo que no depoimento que dei ontem tá meio confuso, que trabalho em um bairro e depois estou no centro... De trem? Não gosto de andar de trem, doutor. Como tenho meu bilhete único, prefiro andar de ônibus.
"Não tem nada estranho que eu estivesse na Presidente Vargas com a rua Miguel Couto. Sei que fica longe da Central do Brasil. Quando peguei o ônibus no Méier, encostei a cabeça na janela e cochilei. Nem foi bem um cochilo,apaguei mesmo. Nem vi quando passou do ponto da Central e quando me dei conta, fui acordar na Rio Branco. Pedi pro piloto parar e desci na esquina  da Ouvidor. Dali peguei a Miguel Couto e fui pra Presidente Vargas....
"Que foi que o senhor disse? Não entendi direito...Que existe uma ocorrência com meu nome aqui com o senhor? Com certeza deve ser de outra pessoa, doutor. Tem meu nome Antônio da Silva... Brincadeira doutor, só aqui no Rio deve ter centenas ou milhares de pessoas com o nome  de Antônio da Silva...
"Sargento, o senhor podia tirar essas algemas? Tão arranhando meus pulsos... Não pode? Primeiro tem que acabar o depoimento? Estou prestando novamente outro depoimento?  Calma, não estou me fazendo de idiota, Sargento. Não, é que achei...
" O senhor viu agora doutor! Pedi com educação que me tirasse  as algemas e o Sargento Pimenta me deu esse tapa na cabeça. O quê? O senhor não viu nada? Que tava lendo o depoimento de  ontem e comparando com que estou falando agora... sei... mas quero que nesse depoimento esteja bem claro que estou me declarando inocente de tudo que houve na noite de ontem.
"Posso dar um telefonema? Preciso avisar pra minha mulher que ainda vou demorar um pouco... Não posso? Não tenho direito a um telefonema... Mas todo mundo tem!
"Ai, não me bata mais sargento, não quero mais telefonar pra ninguém. Sim, vou continuar a história...
"Sabe que ali na Presidente Vargas andar à noite é perigosa, lá tem muitos  pivetes, viciados que aproveitam de gente que andam sozinhas.
"Esse era o meu caso, doutor. Recebi meu salário ontem em dinheiro, e escondi tudo nos bolsos da minha calça. Por falar em salário, o Sargento Pimenta tomou ele todo quando nos encontramos. Ainda não me deram o documento para assinar dos meus objetos de valor que foi apreendido ontem.
"Tava eu indo pela Miguel Couto apertando meus passos, porque além de pouca iluminação, não tinha viva alma perto. Nenhum barzinho aberto, nenhum camelôs vendendo cerveja na Uruguaiana. As ruas em volta eram um deserto só...
"Quando parei na esquina da Presidente Vargas,  foi aí que ele apareceu do nada. Devia estar escondido em algum canto na Bueno Aires, ou ali perto da igreja do Rosário... Onde ele estava mesmo não sei dizer. Só sei que ele apareceu na minha frente me apontando uma faca, falando 'perdeu, perdeu!' gritando que queria dinheiro.
" Como ele era o sujeito? Você viu, Sargento. Magro, 1,70m, cabeludo, barbudo...
"Agora entendi onde quis chegar, tenho 1,87 de altura, cem quilos, e sou forte. Sim, sou muito forte...
" Isso, também sou negro, peão de obra e o garoto que me ameaçava com a faca pra me roubar não pesava mais que sessenta quilos e era branco e louro. Irônico? Não sei se a palavra certa é ironia, estou dizendo só a verdade.
"O que houve depois que ele apareceu na minha frente armado com a faca? Fiquei onde estava parado, só pensando no meu salário que  escondi nos bolsos da calça...
"O garoto girava a faca de um lado ao outro, gritando que eu entregasse toda grana que eu tivesse ali. Algumas palavras  que ele falava eu não entendi muito bem, ele tava com jeito que tinha muita droga na cabeça. Procurei ficar na minha porque sei que com um viciado em crack todo cuidado é pouco e é arriscado enfrenta-lo na mão pura. Para esses caras é tudo ou nada. Mesmo correndo perigo, não ia entregar meu dinheiro de bandeja assim de graça.
"Consegui manter uma certa distância dele me protegendo que ele me furasse, depois pensei na família que tenho e que dependem de mim. O garoto babava, xingava, ameaçava, e como não tinha ninguém perto para me ajudar fui obrigado a tomar uma decisão rápido.
"Aproveitei o instante que o garoto fez um movimento com a faca para o lado e saltei em cima dele. Caí com meu peso em cima dele no chão e segurei o pulso dele,  e assim consegui imobilizar a mão que segurava a faca, e com outra mão dei dois ou três murros na boca do garoto.
"Minha mão ficou suja com o sangue que saía aos borbotões da boca dele. Quebrei uns dentes dele também, mas mesmo assim o moleque ficou se contorcendo embaixo de mim parecendo um bicho, cuspiu sangue na minha cara e berrava que ia me matar.
"Não sei de onde veio dele aquela força todo que torceu meu braço quando conseguiu levantar sua mão que eu agarrava, e vi a ponta da faca chegando bem perto dos meus olhos. Precisei usar toda minha força para torcer de novo o braço dele para baixo, a mão virou e caiu rápido e pesado... ouvi um barulho estranho e vi que a faca cravou nele bem fundo.
"Ficamos cara a cara, e os olhos dele foram se esbugalhando, e acabou que ele golfou e saiu mais sangue. Levantei, sacudi a poeira na minha roupa e ele continuou deitado.
" Me abaixei, arranquei a faca dele tentando ver se podia ajuda-lo; procurei nos bolsos da calça jeans dele para ver se achava algum documento. Foi aí que apareceu o camburão da polícia na avenida, e o Sargento Pimenta e mais dois policiais desceram da viatura e vieram até onde eu estava.
"Antes mesmo que eu dissesse qualquer coisa, os PMs sacaram suas armas e apontaram para mim. Mandaram que eu ficasse deitado de barriga para baixo, puxaram  meus braços para trás e me algemaram.
"Tentei argumentar mas o Sargento Pimenta me revistou e pegou todo meu salário. Ouvi ele dizendo para outro PM: Esse aqui tá ferrado, tivemos sorte de pegarmos esse vagabundo em flagrante.
"Foi isso que realmente aconteceu ontem a noite...
"O quê? Quer que repita de novo a minha história e que eu diga verdade? Não tem mais nada pra contar, doutor...
"Doutor, nunca fui fichado e também nunca estive envolvido em nenhum crime...
"O retrato aí na sua frente com meu nome é de uma outra pessoa, não sou eu...
"Nem tá dando pra ver direito o retrato desse cara... a foto está escura...
"Não,nunca ouvi esse nome antes... Diogo Torres...
"Esse era o nome do garoto que morreu... empresário com um escritório na Presidente Vargas 590...
"O que sei que esse garoto, Diogo Torres ou outro nome que tenha, apareceu na minha frente me ameaçando com uma faca e falando que ia me matar...
"Não acredita na minha história?
"Pra eu assinar minha confissão?
"Que confissão se não fiz nada...
"Estava me defendendo dele...
"Meu Deus, não sou eu esse homem do retrato, já disse mil vezes. Olhem, nem dá para ver a cara dele direito...
"Ai, ui, por favor não me batam... Ai, ai...
"Não vou assinar droga nenhuma de papel em branco!!
"Preciso telefonar...
"Não sou nenhum assassino,  eu sou a vítima, doutor!
"Tinha que ligar para minha mulher...
"Se assinar, vocês vão me liberar?
"Ela deve estar muito preocupada, nunca passei uma noite fora de casa...
"Claro que não estou tirando sarro com a cara de ninguém!
"Essa cela tá muito cheia... Sargento, por favor, liga pra empresa...
"Eles confirmam que sou trabalhador...
"Esse dinheiro que você pegou dos meus bolsos são do meu salário, nunca foi daquele garoto. Eu não roubei nada...
"Volte aqui, doutor, precisa me escutar, eu não fiz nada... Acredite em mim!"

Rogerio de C. Ribeiro


05 de abril de 2014

terça-feira, 29 de abril de 2014

CONTO BRILHO DO GUME - COMO VEIO PARA MIM

Na semana passada publiquei um pequeno conto com o singelo título de BRILHO DO GUME, que foi escrita originalmente em 1989. Ela surgiu na época que eu pretendia escrever um romance gigantesco, que nunca foi concluído e que os originais batidos na minha máquina de escrever Olivetti Linea 88 simplesmente foram jogados no lixo por uma pessoa que não vou citar nome, mas que até hoje a considero uma energúmena. Não só esse romance (que já tinha mais de 200 páginas escritas) como também mais de 300 contos separados, catalogados por mim, amados por mim. Mas não vem ao caso. O romance evaporou da minha mente, mas alguns dos 300 contos mantive aceso dentro de mim. Por isso resolvi criar esse diário para publica-los antes que também esquecesse com o tempo. 
No caso do conto Brilho do Gume, essa história foi inserida dentro desse romance. Havia uma personagem melancólica que gostava dessas histórias sombrias, e além desse havia um outro, que em breve também vou publicar aqui, e que se chama O Quarto de Lúcia.
Voltando a personagem (esqueci o nome dela) tinha um irmão tirano que a maltratava com palavras ásperas, e como ela era frágil de caráter, se escondia no seu quarto e desandava a escrever. Dessa forma, eu resolvi brincar comigo mesmo, inserir textos curtos como se fosse da autoria dela dentro da minha história. Achei divertido, mas depois aconteceu o inevitável: Perdi os originais e decidi deixar para lá. Mas os dois textos da personagem ficaram comigo, então tomei a história para mim e decidi esquecer o nome dela e o resto do romance.
Brilho do Gume foi escrito de propósito para que não tivesse parágrafos. Inicia com um sujeito sentado com uma faca na mão enquanto espera a irmã chegar da rua. Como ela havia dito que ia deixa-lo para ir viver com o seu namorado, o irmão extremamente passional espera com singular paciência para mata-la.
Um conto sombrio? Sim, acho. Para esse irmão, que é a fera enquanto a irmã é a bela, sua vida era resumida só entre os dois. Um amor incestuoso? Não sei, pode ser. Mas pode também ser o desespero da perda.
Enfim, para ele era uma vida sem parágrafos e nem parênteses, enquanto a da irmã abria-se um leque de oportunidades. Um texto curtinho, mas que gostei de escrever.

Rogerio de C. Ribeiro


segunda-feira, 28 de abril de 2014

COMO NASCE UMA IDEIA PARA MINHAS HISTORIAS

Quero compartilhar com vocês de como vem minhas ideias para escrever minhas histórias. Já contei como surgiu o conto ELA. Hoje vou explicar como nasceu o meu conto que estou publicando em capítulos nas segundas e quintas-feiras aqui no blog, a história EU SEI QUEM VOCÊ É, MAS VOCÊ NÃO SABE QUEM EU SOU.
 Durante minha vida li vários livros de diferentes autores. Havia épocas que só lia os livros de Agatha Christie (acho que só não li os livros que ela escreveu como Mary Westmacott), depois elegi Sidney Sheldon e Harold Robbins como meus autores essenciais, teve o Irving Wallace, Stephen King (que leio até hoje) , A.J.Cronin e um em especial, que tenho um imenso carinho pelos seus livros, J.M.Simmel.
 Esse escritor austríaco (hoje um pouco esquecido e ignorado pela nova geração de leitores) escreveu livros maravilhosos como Nem Só de Caviar Vive o Homem, Ninguém é uma Ilha entre outros. Além da narrativa maravilhosa, o que me atraía mesmo eram seus títulos. Não se via um livro dele com um simples título; não,  eram sempre quilométricos e esperançosos.
Pois bem, influenciado pelos títulos de J.M.Simmel, em 1998 ou 1999, vi um filme com o nome Eu sei o que vocês fizeram no ano passado. Era uma frase! Nos anos 1980 eu havia escrito uma história com um título: Uma Coisa Logicamente Ilógica, pois Ilógicos Somos (com certeza influenciado pelo J.M.Simmel). Um grande título que ainda tenho na minha memória, mas a história em si evaporou-se nesses anos...
 No final dos anos 1990 tive a ideia de escrever sobre uma jovem que atende o telefone e do outro lado da linha escuta uma voz masculina. Pensei: tá aí um conto para ser explorado. Mas por enquanto só tinha aquela cena na cabeça, da moça atendendo o telefone. Foi aí que o título do filme me veio, e decidi criar um parecido, Eu sei quem você é...
 Com o título pronto a cena da moça atendendo o telefone começou a tomar formas. Um desconhecido que liga para ela e sabe da sua vida, mas a moça não tem ideia quem seja. Pensa que é um tio brincalhão passando trote ou um colega seu da faculdade querendo alguma coisa com ela.
Batizei ela como Liliane porque eu quando era um moleque de quinze ou dezesseis anos uma vez fui ligar para um telefone e disquei o número errado e quem atendeu foi uma menina chamada Liliane, que acabei fazendo amizade com ela e ligando outras vezes também.
Então como o enredo ficou pronto na minha cabeça, peguei minha velha Olivetti linea 88 e mandei brasa. Mas por algum motivo que houve, não terminei o conto.
 Agora resolvi voltar ao tema, e no principio pensei em um final para ele. Mas conforme ia correndo a narrativa, como num clique o final que havia planejado há mais de quinze anos me veio de forma cristalina, praticamente berrou dentro de mim, rejeitando assim o término que seria agora.
 Costumo escrever numa tacada só, sei que precisa de revisão, mas a base fica como uma ideia central. Como é um conto com mais de dez páginas no WORD, resolvi coloca-la em capítulos nesses dois dias da semana. Sempre fui apaixonado por histórias em capítulos, no estilo do antigo folhetim. Se funcionar, depois dessa já tenho mais três que também serão em capítulos. Espero que quem leia também goste, e como pedi anteriormente, aos que venham visitar minhas páginas só peço que façam um comentário, seja um elogio, um ponto de vista ou mesmo uma critica. Assim vou saber se minhas histórias estão sendo lidas. E para um autor, mesmo sendo um desconhecido como eu, é sempre bom saber que existem alguns leitores te prestigiando. É o melhor prêmio para um autor, a recompensa de querer contar uma história e que alguém queira ler.

Rogerio de Castro Ribeiro


MEUS CONTOS DAS SEGUNDAS


EU SEI QUEM VOCÊ É, MAS VOCÊ NÃO SABE QUEM EU SOU

TERCEIRA PARTE

Dois dias depois se passaram após aquela estranha ligação, e Liliane Hurtz decidiu que seu pai tinha razão. Quando seu tio voltasse das suas férias ela ia dar o troco nele. Aquilo a assustou bastante.
Deitada na sua cama com um livro nas mãos, Liliane sentiu as suas pálpebras caírem de sono. Repousou o livro de filosofia aberto sobre seu peito e sabia que adormeceria logo.
Dormiria sim, se não fosse o irritante som do telefone: Trimmmm Trimmmmm...
Arregalou os olhos. Aquele insistente som arrepiou os pelos dos seus braços. Sentou-se e pensou: "Não vou atender."
Mais uma vez só tinha ela na casa, e o telefone insistia no seu toque.
Trimmm, Trimmm, Trimmm
A curiosidade falou mais alto que a sensatez. Liliane decidiu atender e descalça, saiu do seu quarto e atravessou o corredor até a mesinha com o telefone preto.
Levantou o gancho e disse:
- Tio Denílson, você não tem coisa melhor pra fazer?
Do outro lado do fio, aquela voz masculina:
- Liliane... Não se lembra mesmo quem tá falando...
Liliane perdeu a paciência. Apertou tanto o fone que segurava que as pontas dos seus dedos ficaram brancos:
- Olha aqui, não tenho tempo pra ficar brincando no telefone. Fala logo quem é pra acabar com essa palhaçada...
Mais uma vez o silêncio. Liliane pensou que tivessem desligado e ia pousar o fone no gancho quando ouviu:
- Você pode não saber quem eu sou, mas sei muito bem quem é você, Liliane. Há onze anos que sei quem é você!
Onze anos? Há oito anos ela tinha doze anos!
- Vem cá - disse ela, nervosa: - Não tá me confundindo com outra Liliane?
- Claro que não, Liliane... Hurtz.
Ela gelou. Seu coração disparou e sentiu que suas pernas fraquejavam. Precisou sentar-se na cadeira com forro de palha, outra antiguidade que seu pai adquirira, para tentar se acalmar. Respirou fundo, encostou o fone no ouvido e falou de modo cauteloso:
- Tá bom, você ganhou. Não sei quem tá falando. Mas vamos acabar com essa brincadeira... já chegou no seu limite...
- Meu Deus - o tom da voz agora era de tristeza. Uma voz magoada. - Ainda tá achando que sou o idiota do seu tio? Não, Liliane, não sou ele e nem um amigo seu da faculdade de filosofia...
Liliane sentiu uma pontinha de esperança aparecendo. Ele disse faculdade de filosofia... Veio à sua cabeça o nome de Eduardo. Tão tímido, que não gostava de olhar nos olhos dos outros, que a espiava furtivamente durante as aulas... era ele, com toda certeza. Liliane decidiu entrar naquele joguinho. Precisava desmascara-lo, e quando o visse na faculdade, ainda ia ouvir muito dela...
- É mesmo. Meu tio nunca ia conseguir imitar essa voz máscula e ao mesmo sensual, a voz dele é igual a de uma taquara rachada...
- Então se convenceu que não sou o idiota do seu tio.
- Sim, estou convencida, só que não precisa repetir que ele é idiota.
- Você não sabe como fico aliviado. Sabe, houve um tempo que fiquei impossibilitado de te ligar. Não me deixavam falar.
- É mesmo? - Liliane mostrou-se preocupada, mas o que queria mesmo era que Eduardo revelasse seu nome.
- Mesmo. Mas te juro, Liliane, nunca me esqueci de você. Pensava nas vezes que ficávamos horas conversando...
- A gente ficava horas?
- Não deve se lembrar, isso foi quando? Você tinha treze anos...
- Me lembre então - O Eduardo é mais louco que imaginei, pensou ela.
- Vai se lembrar - a voz era carinhosa, terna. - Uma vez você me disse que estava de castigo por causa de uma nota baixa que teve na prova de... física? Física... não, em química. Seu pai te proibiu de ir na festa da sua melhor amiga, a Simone se não me engano. Eu te falei que os pais são todos iguais, só querem o bem dos seus filhos.
Que conversa foi essa? Liliane tinha uma vaga lembrança...
- Depois dessa conversa, você prometeu que ia estudar mais e nunca mais seu pai ia te punir por causa das notas do colégio. Lembra o que eu falei?
- Não - disse Liliane, o medo voltando.
- Falei pra você: Não fique mais chateada com seu pai, ele só quer seu bem. E se ele te botar de castigo de novo, eu daria um jeito nele.

Continua ...

Rogerio de Castro Ribeiro 

sábado, 26 de abril de 2014

SÁBADOS: COMO SURGEM AS IDEIAS DAS MINHAS HISTÓRIAS



Os contos que venho publicando no blog alguns deles foram escritos nas décadas de 1980 e 1990. O conto ELA foi escrito em 1996; nesse ano eu morava em um apartamento na Rua Barão de Amazonas esquina com a Amaral Peixoto, principal avenida no Centro de Niterói. Da varanda do meu apartamento tinha uma vista dessa avenida. Durante a manhã e a tarde o tráfego era imenso, as pessoas iam e vinham em ritmos frenéticos apressadas em seus compromissos, as mesinhas nas calçadas lotadas de gente bebendo seus chopes no entardecer. Tudo era agitado até dez horas da noite, quando os "turistas do centro" evaporavam-se, e os que ficavam eram só os moradores dos prédios residenciais, muito deles quitinetes. E em um edifício em especial seus moradores desciam dos seus apartamentos, montavam barraquinhas de churrasco, isopores com refrigerantes e cervejas, espalhavam mesinhas pela calçada na frente do prédio até a esquina onde até hoje tem uma agência do Itaú.
Quem conhece o centro de Niterói sabe que edifício é esse que menciono. Os apartamentos são quitinetes e sua fama não é lá tão boa.  Em frente a portaria reúnem-se os mais variados tipos das noites: cafetões, prostitutas, travestis e traficantes. Quando eu estava sem sono costumava fumar um cigarro na varanda e observava todo movimento que se formava ali. E sempre via uma viatura da polícia junto a esse grupo heterogêneo. Os PMS paravam, comiam um churrasquinho de gato, bebiam, contavam piadas e com certeza levavam seus arrego.
Independente disso tudo, o que sempre me intrigou eram as meninas que desfilavam nas esquinas competindo com os travestis os clientes que por lá surgiam, e não eram poucos. Vinham lentamente com os faróis altos piscando, o carro parava e começava a briga dos travestis com as meninas. Muitas delas menores de idade.
Observando esse cotidiano marginal, imaginei a história de uma menina se prostituindo no centro. O título do conto me veio logo, seria apenas ELA. Não quis dar nome para nenhum personagem, e seriam apenas alguns entre milhares que vivem dessa forma. Tentei não transforma-la em uma heroína, procurei ser o mais imparcial possível. O conto de uma menina de treze anos que sonha com dias melhores, e na atual circunstância no meio que ela vivia, acreditava que esse seria seu único caminho para uma vida melhor.
Quando a história se formou completa na minha cabeça, fui para minha máquina de escrever ( isso em 1996) e escrevi numa tacada só.
Não pretendo ser moralista e nem abraço nenhuma causa sobre essa vida. Minha intenção é que as pessoas leiam e reflitam sobre a vida dessas pessoas, e principalmente das milhares de meninas que acreditam que esse caminho é a solução.

Rogerio de C. Ribeiro
26/04/2014

sexta-feira, 25 de abril de 2014

ELA

                                                                       

Durante o dia, a avenida principal do centro da cidade, na grande extensão de dois quilômetros, multidões apressadas caminham pelas calçadas abarrotadas e pelas ruas transversais; executivos com suas pastas nas mãos, donas de casa agarrando suas bolsas coladas em seus corpos, estudantes indo e vindo das escolas e faculdades, carros e ônibus parados em sinais fechados ou em engarrafamentos; um turbilhão de comércios dos mais variados, bancos, Shopping Center.
Mas quando começa o anoitecer, essa multidão desaparece das ruas, os comércios fecham suas portas, os estudantes voltam para casa. A avenida do centro só abriga seus moradores, muitos morando em quitinetes, a maioria solteira, que alugam vagas e quartos dos poucos apartamentos antigos.
E quando chega dez horas da noite, os poucos carros que passam pela avenida são, na sua maioria, de homens e mulheres em busca de aventuras sexuais. Porque ali na avenida, quando chega onze horas, prostitutas, travestis, traficantes ocupam seus pontos de negócio.
E para o morador insone que costuma fumar na janela e sua vista é a avenida, já está acostumado com aquela cena, e sabe que a polícia é conivente com aquele mercado da madrugada.
Por isso, para quem é morador do centro da cidade, e principalmente da avenida principal, preferem ficar em seus quartos, quitinetes, a não ser que estejam em busca dessas aventuras, ou que sejam participantes desse mercado.
E o insone solitário morador, que fique na janela com metade do cigarro nos dedos esperando que o sono vença, verá nas esquinas os travestis com suas minúsculas saias, com seus sapatos plataformas, exageradamente maquiadas, conversando com os motoristas que lá param, agachadas pela janela do carona, combinando preços, rindo, enquanto outros travestis se espalham pela avenida, ao lado das prostitutas. Mas esse solitário morador, que frequentemente fuma um cigarro antes de tentar dormir, também verá ela, figura tarimbada no meio dos travestis e prostitutas.
Ela, uma menina ainda, que devia ter treze, quatorze anos, era veterana na avenida. Ela, a menina que chegava na adolescência, era bonita, seus cabelos castanhos sempre arrumados, usando uma blusa fina que mostrava o formato dos seus pequenos seios, usando um short pequeno onde um par de pernas esguias se equilibravam em cima de um sapato de salto alto.
Ela gostava de bastante maquiagem, principalmente para esconder algumas espinhas que brotavam no seu queixo e na bochecha. Ela tinha olhos grandes e redondos, e tinha um ar desafiador. Ela conquistou seu espaço na avenida graças com seu carisma. As prostitutas mais antigas a protegiam dos cafetões e a aconselhavam em relação às drogas e dos clientes. Diziam para ela que nunca fizesse nenhum programa longe da avenida, que por ali tinha a proteção da polícia para que nada de ruim lhe fosse acontecer.
Ela ouvia os conselhos, mas na maioria das vezes achava que eram exagerados. Sabia que era esperta, e que sabia se proteger sozinha.
O camburão da polícia costumava passar pelo ponto, que ficava em frente ao edifício 357 da avenida, prédio de quitinetes em que a maioria era composta de quartos com três camas separadas por biombos, alugada por cafetões.
E nesse edifício de número 357 ela morava com sua mãe, sua irmã de nove anos e seu padrasto no apartamento 829. Dividiam um quitinete com um pequeno banheiro, e o quadrado que se dizia sala tinha um sofá-cama que sua mãe dormia com o seu padrasto, e ela dividia um colchão de solteiro no chão ao lado deles com sua irmã.
Ela cultivava planos de um dia poder sair dali, comprar um apartamento enorme de frente para praia, poder dar conforto material e financeiro para sua família.
Mas o pouco que conseguira ganhar nesse seu primeiro ano de avenida mal dava para comprar suas roupas. Ela dizia para sua mãe, que era faxineira em uma casa de família na zona sul da cidade, que as tiraria da pobreza. Sua mãe ria, fingindo que acreditava nela. Só dizia: Em vez de ficar sonhando, tem que arrumar um trabalho, nem que seja em casa de família. Não vê o quanto ralo para botar comida em casa? Ainda tem sua irmã, sempre com saúde frágil, sempre tossindo e com febre. Seu pai anda reclamando da sua preguiça, da sua mania de sair todos dias para essas festas com suas amigas. Ele me disse que é pra ficar de olho em você, menina. E ele tem razão, você é mais uma para comer aqui e para comer, tem que botar dinheiro em casa.
O pai que sua mãe se referia era seu padrasto. Um inútil, que dormia até meio-dia, almoçava e saía para jogar com seus amigos bêbados. Ele era um parasita, mas um parasita que sua mãe acolheu como companheiro.
Ela então decidiu, no ano passado, em ficar na avenida. Já conhecia as prostitutas que lá faziam ponto, e por várias vezes foi cantada pelo cafetão que mandava na área para fazer ponto também.
Ela dizia para si mesma que era uma menina corajosa. Não sentia pudor de se expor, e com o trocado que ganhava, ajudava sua mãe.
Já sua mãe, quando pegava o dinheiro que ela deixava na mesa todas manhãs, nunca questionou qual era a procedência do mesmo. Simplesmente pegava a metade, colocava na sua carteira e deixava a metade para seu companheiro. A sua mãe acreditava que seu parceiro de sofá-cama era um azarado nos empregos, e se alguém fosse perguntar o que ele fazia nas tardes, respondia que ele estava preenchendo fichas em agências de emprego ou em filas na frente de empreiteiras para poder ser fichado para um serviço.
E nessa pseudo-crença na sua casa, ela continuava fazendo seus pontos na avenida, nas madrugadas. Em uma noite de sorte conseguia fazer três programas. Mesmo sendo a mais bonita entre os travestis e putas, muitos clientes a rejeitavam por ser menor. Ela mentia na sua idade, mas os clientes, com as ondas de prisões a pedófilos, e vendo o camburão com os quatro policiais que estacionava em frente ao prédio e iam comer um churrasquinho que uma nordestina preparava, ou iam embora zarpando nos seus carros ou chamavam uma prostituta mais velha para o programa.
O insone morador do prédio em frente que acendia outro cigarro porque naquele madrugada quente o sono não vinha, tinha sua atenção na menina, que às vezes ficava sentada em uma mesa junta de outros caras, bebendo cerveja, deixando-se ser bolinada por um mais afoito, pedindo um hambúrguer e escutando  algum convite vindo de um senhor de uns 60 anos, que mantinha suas mãos grandes nas pernas magras da menina. E quando ela via que não teria muito lucro vindo desses parasitas que só queriam beber, ela se levantava, se despedia gentilmente e agradecia pela cerveja ou pelo sanduíche, e ia para a esquina, sentava em um bloco redondo de cimento e conversava com suas colegas de profissão.
O que o insone e solitário morador na janela do seu quitinete em frente ao prédio 357 não soube o que houve de verdade com sua musa das noites quentes e solitárias em uma madrugada não tão distante.
Ela estava de pé, na esquina da avenida com uma rua transversal que permanecia deserta, quando veio uma luz no fim da rua se aproximando. O morador solitário, com seu cigarro quase apagado, viu quando ela debruçou-se na janela do carona e falou com o motorista. Mas ele não ouviu o que foi dito naquele instante:
- Vamos fazer um programa, garota, mas tem que ser na minha casa - disse o motorista, um jovem de 20 e poucos anos, com um pequeno cavanhaque no queixo.
Ela lembrou-se dos conselhos recebidos das suas colegas de avenida, de que era roubada fazer um programa longe da área, que para isso tinha as camas nos prostíbulos do prédio 357; tentou argumentar que não, mas o jovem negociou, os olhos brilhando pelo corpo da menina, prometeu pagar o dobro se ela fosse ao apartamento dele. Ela então pensou que não tinha mais dinheiro, nem para dar a sua mãe, nem para comprar o remédio para sua irmã.
Então ela decidiu, mesmo a contragosto: entrou no Ford Ranger do cliente e ele deu partida, seguindo rua abaixo.
O jovem prometia que depois a deixaria ali próximo, mas que ela tinha que ficar uma hora com ele, pelo menos. Com o que ia receber de pagamento pelo programa, para ela estava sendo tudo ótimo.
Quinze minutos o carro diminuiu a velocidade em frente de um edifício alto e luxuoso. Parou em frente da garagem e buzinou. A porta levantou-se devagar e ele entrou, rápido. Depois de estacionar, foram os dois para o elevador e quando entraram, o rapaz apertou o botão do décimo andar. Entraram no apartamento 1001, e o rapaz disse que ia ao banheiro. Ela ficou parada, no meio da sala, fascinada com tudo que via, as grandes janelas que davam para a praia em frente, para os móveis luxuosos, os quadros pendurados nas paredes, tudo limpo, sem nenhuma poeira. Ela sentou-se no grande sofá e sentiu-se afundar nele. Ela tinha certeza que um dia teria um apartamento igual a esse. Sabia que ia ter que fazer bastantes programas, aturar os clientes decrépitos em carros velhos que lhe pagavam só para olhar seus peitinhos enquanto se masturbavam ao seu lado; os clientes que cismavam em passar das contas com ela, mas que eram contidos pelo cafetão da área; àqueles que alisavam suas pernas e soltavam gracejos regados ao bafo fétido de cerveja ou cachaça. Sim, ela aturaria a isso tudo, até a chantagem que recebia do porteiro do prédio que morava, que a ameaçava que ia contar tudo para sua família e ela para pagar o silêncio dele tinha que masturba-lo na recepção, atrás do grande balcão onde ele recebia as correspondências ou às vezes fazendo um sexo oral nele.
Não, ela ia subir rápido na vida, se todo dia tivesse um cliente como agora, jovem, rico e ingênuo - disposto de pagar o dobro do programa.
Ela o ouviu saindo do banheiro e resolveu tirar suas roupas. Será que fará ali naquele sofá gostoso ou em uma imensa cama de casal? O lugar não importava, o que seria prazeroso seria quando pegasse o dinheiro e saísse fora dali. O rapaz chamou-a para o quarto e ela foi, só usando uma calcinha preta rendada e descalça pisava em um felpudo tapete que se esparramava pelo chão do corredor iluminado com lâmpadas fluorescentes. Viu uma porta semiaberta e ela entrou, confiante. Nunca abandonava sua eterna autoconfiança.
E ao lado de uma cama de casal, que não era como ela imaginara antes, estava o rapaz, nu em pelo. E ali dentro do quarto, além do rapaz, tinha outro deitado na cama e outro atrás da porta. Ela gritou, dizendo que não fazia programas em grupo. Tentou correr de volta para a porta, mas o jovem que estava atrás a empurrou. Ela caiu sentada. Tentou esconder os seios, como num gesto de pudor, mas o rapaz do carro pegou-a pelos cabelos e a obrigou em ficar de pé. Ela implorou, dizendo que não queria mais fazer nenhum programa, mas o rapaz do carro deu um tapa na cara dela, o barulho do tapa ecoou dentro da cabeça da menina. Ficou tonta e caiu deitada na cama. O jovem deitado agarrou seus seios, outro arrancou sua calcinha e enfiou o nariz no meio de suas pernas; o rapaz do carro preferia bater nela, dava tapas, socos, puxou os cabelos até arrancar alguns fios. Um montou sobre ela e a penetrou com raiva, com violência, fazendo-a gritar alto. Enfiaram uma fronha na sua boca, e ela sentiu-se sufocada. E mais tapas, socos, um urinou no seu rosto, essa sessão de violência nela parecia que durava horas, para ela aquilo tudo era interminável. Não usaram preservativos, dois deles se drogaram sentados no quarto, um tinha uma seringa e aplicou no braço dela. Berravam e uivavam feito lunáticos; diziam olha a viagem, viagem, viagem, virgem,virgem... As palavras se amontoavam, misturavam-se, ela não entendia mais nada, só sentia dor entre suas pernas, dor no soco que levou no olho direito, dor na cabeça pelo tufo de cabelos arrancados.
E depois, muito mais tarde, onde ela achava que não teria mais fim, o rapaz do carro ordenou que ela fosse embora. Caída no chão, rastejava em direção da porta quando levou chutes no peito e nas costelas. Um rapaz dormia, outro fumava maconha, entretido ao lado do banheiro da suíte.
Ela andou, capengando para a sala, e vestiu-se. Tudo nela doía. O rapaz do carro jogou três notas de cinquenta em cima dela, e o dinheiro espalhou-se no chão. Disse para ela pegar a grana e sumir de lá. Lembrou-a que era filho de um importante empresário, e se ela fosse denunciar para a polícia, ele acabaria com a vida dela. Chamou-a de porca para baixo e a empurrou para fora do apartamento.
Ela desceu, passou por um porteiro que cochilava, saiu e esperou o ônibus para o centro. Quando conseguiu pegar, pagou e sentou-se em um banco, enfiando seu rosto pela janela aberta. O vento amenizou a dor que sentia no rosto, e alguns passageiros mal notaram uma menina de treze anos descabelada, com um olho roxo, sangue pisado no lábio inferior, fora a mancha roxa na altura das costelas.
Já amanhecia quando saltou do ônibus. Suas colegas e conhecidos que fazem plantão em frente do 357 já haviam se recolhido; agora era a hora da multidão, dos escritórios abertos, dos bancos e comércios abertos para seus fregueses.
Ela entrou no seu apartamento, e viu sua mãe terminando de beber um copo de café. A mãe olhou para ela, mas não mostrou surpresa nem piedade em seu rosto. Sua mãe só tinha olhos de espera. O padrasto roncava, deitado de lado no sofá-cama, e sua irmã dormia debaixo de um lençol no colchão fino ao lado.
Ela tira duas notas dentro do seu short e estende a mão com o dinheiro. A mãe pega os cem reais, guarda-os na bolsa, diz que está atrasada, e reclama que precisam fazer uma compra de mês. E sai, simplesmente sai, trancando a porta por fora.
Ela arranca toda roupa, mete-se debaixo do chuveiro e fica ali uns quarenta minutos. Vestida com uma camisola, enfia-se debaixo do lençol, abraça sua irmã por trás sentindo que ela estava febril. O ronco do padrasto a incomoda. O sol inclemente da manhã invade na única janela da quitinete. Sentindo os olhos pesando de sono, esquece as dores que atormentam todo corpo físico e abraça sua irmã mais forte. Hoje era dia de batalha. E amanhã também. E antes que caísse no sono, com o dinheiro que restou do programa e estava no bolso do seu short pendurado no banheiro,  poderia comprar o vestidinho decotado na loja que vira e tanto gostara.


Rogerio de Castro Ribeiro

05/04/2014

MINHAS HISTÓRIAS




 A finalidade do blog "Quem quer contar um conto" é para divulgar meus contos. Como já tenho um grande acervo de histórias escritas, imaginei um diário que pudesse lança-los mesmo que não fossem lidos, mas com uma leve esperança que sim. Qual é o autor que não gosta de ter os seus leitores?

 Eventualmente os primeiros leitores de um autor iniciante são seus parentes mais próximos ou seus amigos. Quando escrevemos um conto, uma poesia ou um romance sempre acreditamos que é uma obra de arte. E quando os mostramos para uma opinião, podemos ficar chateados com as críticas que recebemos.

 Isso já aconteceu comigo. Minha primeira leitora foi minha mãe e eu tinha 17 anos. Mostrei alguns contos e ela ficou horrorizada com os temas que eu acreditava serem originais. Fiquei chateado, mas nunca mudei minhas ideias para minhas histórias. Claro que com o tempo fui me aperfeiçoando, e no início quando escrevia influenciado por Nelson Rodrigues e Shakespeare, consegui encontrar o meu estilo.

 E qual é o meu estilo? Gosto de histórias. A ideia me vem na cabeça e passo para o papel ( ou no Word ). Não me atenho a um tipo só.

 Quem acompanhar o blog poderá perceber os vários estilos que tenho, temas dos mais variados, mas sempre com minha marca.

 Gosto de escrever contos introspectivos onde mostro só um personagem e seus dilemas diante da vida, contos que extrapolam a normalidade, contos grotescos, góticos, esperançosos, críticos, absurdos, surrealistas...

 Mas independente dos temas, sempre foco em pessoas normais, pessoas que convivem aos nossos lados e que não percebemos se tem problemas ou não.

 Atualmente estou finalizando três contos bem interessantes, diferentes entre si.

 No conto intitulado O Prêmio narro a vida de uma dona de casa desiludida com sua vida que é cuidar do marido mal humorado e de três filhos. Sua vida é tão insossa que ela se submete a tudo sem reclamar. Isso muda até que ela vê um anúncio na televisão, e a partir daí ela se transforma em outra pessoa, mesmo que para isso possa destruir sua família.

 E no conto Interligados o tema é sobre duas mães que tem seus filhos na mesma noite e por um erro as crianças são trocadas. E trinta anos depois, uma das crianças trocadas pratica um assalto na casa de um milionário, e que desconhece que seja seu pai biológico.

 E o conto Uma História Logicamente Ilógica pois Ilógicos Somos é sobre um dia na vida de um sujeito que nada dá certo, que beira ao absurdo. Uma história mais leve que as duas acima.

 Como disse, estou finalizando os três, que publicarei no meu blog, provavelmente em capítulos. Sempre gostei dos folhetins em capítulos, e nas segundas-feiras e quintas-feiras são os dias destinados para isso. E uma vez por semana um conto completo.

 Sinceramente espero para aqueles que acessem o blog e leiam algum conto meu, que faça um comentário, que seja uma crítica ou até um elogio. Só assim vou poder saber se aquilo que escrevo vale alguma coisa ou não.

 E para aqueles que também escrevem e queiram trocar ideias, estou à disposição. Nossa tribo é muito restrita e é sempre bom nos unirmos para nos fortalecermos nesse mercado não tão valorizado como merece ser.

 Espero que se divirtam e estou aberto a todos comentários.


Rogerio de Castro Ribeiro
25 de abril de 2014

quinta-feira, 24 de abril de 2014

MEUS CONTOS DAS QUINTAS

EU SEI QUEM VOCÊ É, MAS VOCÊ NÃO SABE QUEM EU SOU

SEGUNDA PARTE



Quando voltou da faculdade, seus pais ainda estavam acordados e assistiam um filme na televisão. Liliane largou sua bolsa em cima da mesa da sala e comentou:
- Pai, o senhor tem que comprar um aparelho de bina para nosso telefone .
Cirilo, o pai, disse:
- Boa noite, Liliane.
Zoraide, a mãe, também disse:
- Boa noite, meu amor.
Liliane sentou no sofá entre os pais e disse:
- Hoje de tarde recebi uma ligação estranha.
Cirilo:
- Um trote?
- No início achei, mas depois uma voz de homem disse meu nome e aí pensei que era mais uma brincadeira do tio Denílson.
Zoraide:
- Seu tio? Ele viajou de férias na semana passada com sua tia Belinha e as crianças para o Nordeste.
Liliane, preocupada:
- Não sabia...
- E quem era o cara na linha - perguntou Cirilo.
- Não sei, pai. Também pensei que pudesse ser o Eduardo...
- Eduardo? - Cirilo fingiu que estava zangado.
- Pai, Eduardo é meu colega no curso de Filosofia. Só isso.
- Tá bom, se não foi Denílson e nem esse tal de Eduardo...
Liliane deu de ombros.
- Não tenho a mínima ideia. O senhor podia era trocar esse aparelho pré-histórico por um que tenha identificador de chamadas.
- Esse aparelho é uma relíquia - protestou Cirilo. - E além do mais, hoje em dia quase ninguém liga para telefone fixo. É só celular.
- Mas ligaram.
- Quem tem o número do telefone fixo? Tirando nossa família, ninguém mais tem.
- E esse que me ligou hoje?
Cirilo voltou sua atenção para sua tevê e no filme que passava e decretou:
- Com certeza deve ser alguém da família. Quem sabe o Denílson que ligou da Bahia pra passar um trote...

Liliane não acreditou muito nessa possibilidade. O grito que ouviu... Não parecia ser do seu tio. Por mais brincalhão que fosse, ele não ia imitar uma voz insana. Não...

Continua...

Rogerio de Castro Ribeiro

quarta-feira, 23 de abril de 2014

BRILHO DO GUME

BRILHO DO GUME

Ele estava ali sentado na velha cadeira de fórmica na pequena sala com as luzes apagadas de frente para a porta esperando que ela chegasse. Já tinha olhado as horas no velho relógio de pilha pendurado na parede, eram onze e meia da noite. Daqui a pouco ela chegaria, e ele estaria ali de plantão para recebê-la. E quando ela abrisse a porta, seria a última vez que pisaria naquela sala. Porque ela mesma já tinha dito isso a ele no dia anterior que no máximo em dois dias ia arrumar suas malas e se mudar para o apartamento dele. Ele nunca foi apresentado ao outro, e nem queria saber como era. O importante era ela, e ela enfatizou que precisava viver sua vida. Só que esse argumento era frágil, e ele sabia que o que ela queria era se ver livre dele, da casa, do passado. E do modo enfático como disse, ele sabia que sem ela seria o seu fim. Mas também seria o fim dela. Por isso estava sentado em absoluto silêncio na cadeira de fórmica, e segurava com as duas mãos uma imensa faca de cortar carnes. Se concentrava ao máximo para poder escutar o ruído do carro dele estacionando e o barulho dos saltos do sapato dela pisando na entrada de cimento cru até a porta. E procuraria o chaveiro da casa dentro da bolsa. Enquanto procura as chaves, vira a cabeça para trás e se certifica que ele continua estacionado esperando que ela entrasse em casa. E ela encontra a chave, coloca na fechadura e gira a chave duas vezes. Volta-se de novo e manda um beijo para o cara, que acena e vai embora em disparada. Essa cena ele viu centenas de vezes escondido por detrás das cortinas da janela. O ciúme que sentia quando via essas cenas românticas o trucidavam por dentro. Mas era ela entrar que o ciúme amainava um pouco. Porquê ela ficava com ele sempre. Nunca mencionou que ia embora. Eram como siameses, a vida deles era sem parágrafos e nem parênteses. Era uma vida dentro de uma redoma de cumplicidade, de segredos. Ela o escondia de todos. Mas ele não se importava em ser excluído dos círculos dela porque ela ainda ficava com ele. Era a promessa que um fez ao outro que os fortaleciam. Porque ela dependia dele e ele dela. Desde que eram crianças. Quando perderam seus pais e ficaram a mercê do mundo. Mas ele a protegia dos riscos, furtava para comerem, dormiram na rua, mas um dia ele foi trabalhar e pôde alugar essa casa. E bancou os estudos dela. Ela se formou e agradeceu a ele tudo que fizera. E ele acreditou nas palavras dela. E um dia ela conseguiu o emprego. A vida ia melhorar para eles. Entre os dois nunca era no singular, era sempre no plural. Ele que trabalhava de coveiro no cemitério municipal convivia com a morte todos dias e quando chegava em casa e via sua irmã o esperando, respirava vida. Ela era seu oxigênio e queria tirar isso dele. Mas ele não ia deixar. A promessa que fizeram quando crianças foi de um nunca abandonar o outro. E ela quebrou a promessa. Então ele resolveu que nessa noite a esperaria para se despedirem um do outro. Ele a abraçaria e enfiaria a faca até o cabo nela e depois se mataria. Eram como siameses, eram como um só, ela a bela e ele a fera. Tinham uma vida sem parágrafos e nem parênteses. Ele olha a lâmina da faca e no escuro consegue enxergar o brilho do gume. Tira os olhos da faca e volta a atenção para a porta trancada. São meia-noite, é a hora dos monstros e dos vampiros, a hora do terror. E ele permanece feito estátua, com as costas curvadas de tanto cavar e tapar buracos, esperando pacientemente o som do carro e dos passos. E quando bate duas e meia finalmente ouve. Se apruma na cadeira atento. E escuta a porta do carro batendo. E um vago som de risos. Claro que ela estaria rindo dele, o coveiro, o monstro corcunda que assustava as crianças. Até ontem ele não tinha defeitos para ela, agora era o aleijado que atrapalhava o futuro dela. Ela quebrou a promessa e jogou dentro da privada. Não queria saber como ele seguiria na vida sem ter ela ao lado. Por causa de um cara de dinheiro, bonito, ela esqueceu-se de tudo. Mas ele não esquecia de nada. Sua vida era sem vírgulas e nem de acentos. Mas daqui a pouco a vida dos dois teria o ponto final. Ouviu agora o portão sendo aberto e depois fechado, mesmo ali sentado na escuridão visualizava ela sorrindo para o cara e mandando beijos. Escuta o som dos saltos altos dos sapatos dela pisando no caminho de cimento. E o barulho dela mexendo na bolsa procurando as chaves. Agora está empertigado na cadeira. Mantém o braço caído ao lado do corpo segurando a faca de cortar carnes pelo cabo. Era impressão sua ou via o brilho do gume iluminado a porta em frente? Não importa, já escutou o barulho das chaves no chaveiro em forma de coração que ele deu a ela tempos atrás. O barulho da chave sendo introduzida na fechadura. A primeira volta. Ele ficou de pé. Agarrou com mais força o cabo da faca. Não tirava os olhos da porta. Segunda volta na chave. Silêncio. Ela mandava um beijo para o cara que acenava de volta. Ouviu agora o barulho do arranque do carro. Agora ele relaxou a mão que segurava o cabo. Uma vida sem parágrafos e nem parênteses. Era uma vida só deles, os dois dentro de uma redoma para se protegerem do mundo lá fora. E ela quebrou a redoma. E queria voar. Fugir dele. Sentia sua respiração ofegante. E viu, como em camera lenta a maçaneta da porta girar. E a porta abriu. E um vulto entrou na escuridão da sala...


Rogerio Ribeiro

21 de abril de 2014  

segunda-feira, 21 de abril de 2014

MEUS CONTOS DAS SEGUNDAS

EU SEI QUEM VOCÊ É, MAS VOCÊ NÃO SABE QUEM EU SOU
PRIMEIRA PARTE

Tudo começou no dia que o telefone fixo tocou e Liliane Hurtz veio correndo apressada da cozinha para atender. Era um daqueles antigos aparelhos de telefones da cor preta, com um disco redondo e sem identificação de chamada. Coisas do seu pai, pensou Liliane, com sua mania irritante de ficar colecionando objetos antigos dentro de casa.
O som do toque antigo, TRIMMM TRIMMM TRIMMMM, irritou os nervos da moça. Pegou o pesado fone e disse:
- Alô!
No outro lado da linha só havia o silêncio, marcado pelos ruídos do aparelho.
Liliane era uma moça de 23 anos, e com essa idade as moças ainda não tem a mesma paciência de uma pessoa de meia-idade. Ela repetiu:
- Alôo...
Ouviu um clique. Ela olhou para o fone como se ele pudesse dizer qualquer coisa e o pôs no gancho. Podia ter sido um engano. Bem, seja lá o que tenha sido, ela resolveu voltar para a cozinha onde seu lanche da tarde estava te esperando, e esqueceu da ligação.
Mal ela terminou de comer seu sanduiche e esvaziado o copo de vitamina que sua mãe havia deixado na geladeira, ouviu o trimmm do telefone de novo.
Voltou para a sala, agora sem muita pressa, e foi até a mesinha do corredor que ligava a sala para os quartos, onde estava o telefone preto tocando sua irritante campainha.
- Já até imagino quem seja - pensou Liliane ao lado do aparelho, que insistia no antigo toque. - Aposto que deve ser o Eduardo...
Eduardo era seu colega na faculdade que estudavam, no curso de filosofia. Liliane desconfiava que ele estivesse interessado nela, mas nas poucas vezes que conversaram, ele sempre se mostrou tímido.
Liliane pegou o fone pesado e em tom suave, disse:
- Alô...
Silêncio.
Será que esse telefone está com defeito? Não me surpreenderia muito, por mim estaria num asilo de telefones caducos...
Tentou mais uma vez e disse, agora não tão suave assim:
- Oi, olá, alô, tá me escutando?
Ouviu um som de respiração funda como se estivesse puxando todo ar para os pulmões. E uma voz masculina disse:
- Liliane?
- Sim.
Silêncio de novo.
Liliane se viu no reflexo do espelho que tinha em cima da mesinha do telefone. Parecia ridícula segurando aquele fone pré-histórico na orelha.
- Alô...
- Oi, Liliane.
- Eduardo? - Arriscou ela.
- Quem?
- É Eduardo que tá falando?
- Não - disse a voz masculina.
- Quem é?
- Não se lembra de mim?
- Sei lá quem tá falando, não tenho a menor ideia...
Veio uma lembrança na sua cabeça. Liliane riu e disse:
- Já sei quem é!
- Sabe mesmo?
- Tio Denílson! - O tio Denílson era irmão da sua mãe, gostava de pregar peças, de dar sustos, de mentiras...
Mais uma vez o silêncio no outro lado da linha.
- Viu só, adivinhei! Tio, estou terminando de me arrumar pra faculdade e to meio atrasada para...
- Fiquei triste - disse a voz masculina. - Muito chateado.
- Tio...
- ASSIM VOCÊ ME MAGOA, LILIANE!!!
Liliane soltou o fone, que caiu pesado no chão. Levou um susto com o grito no seu ouvido. Mesmo com o fone caído, ela ainda podia ouvir sons vindo dele em palavras entrecortadas:
- Sei que nunca mais... era interessante...contou que...liane...liane...
Cautelosa, pegou o fone pelo fio em espiral e colocou-o no gancho. Com certeza não era seu tio. E nem Eduardo...

Continua dia 24/04/2014

Rogerio de Castro Ribeiro