- Doutor,
preciso que o senhor acredite em mim. Isso mesmo, não tive culpa do que teve
ontem, juro pro senhor por tudo que é mais sagrado que aquilo tudo foi um
acidente. Eu não esperava que terminasse daquele jeito. Sei que é difícil pro
senhor acreditar no que eu disse diante dos fatos, mas lhe garanto que é a mais
pura verdade. O senhor comentou ontem que muitos que vem aqui na sua sala falam
a mesma coisa. Eu não sei dos outros, doutor, só sei que comigo o que viram não
era o que parecia.
"O
senhor pode dar uma olhada aí na minha carteira. Olha meu crachá. Sou um
trabalhador, doutor, sou encarregado de obras na America Construções tem mais
de três anos.
"Que
isso, doutor! O crachá não é falso. Olha
para minha cara. O senhor acha mesmo que levo jeito de quem falsifica alguma
coisa, que faz documentos... nem DVD pirata eu compro, doutor.!Peço que o
senhor ligue para a empresa; aí no crachá tem o telefone deles. Dona Yolanda que
é do departamento pessoal que vai atender a ligação e pode confirmar tudo que
disse agora para o senhor.
"Eu
não estou enrolando ninguém, doutor! Olha só, nem advogado tenho para me
defender. Mas agora não me importo se tenho advogado ou não, tanto que vou novamente
contar o que aconteceu ,porque quem não deve não teme, e o senhor vai ver que o
inocente na história sou eu.
"Isso
mesmo, meu nome é Antônio Silva, fiz 35 anos em janeiro, sou casado e o nome da
minha esposa é Marieta Silva e temos três filhos, que é o Júnior, a Clarice e o
Ivan. Sempre fui um homem para minha família, nunca fui ligado em nenhuma facção
nem minha família. Somos tementes a Deus, doutor, frequentamos o culto na igreja
Jesus Tem Poder com o Pastor Nilson. Se forem lá para averiguar, ele confirma.
"
O que o senhor acabou de falar dos bandidos que andam armados, metem terror, matam
ou vendem drogas nas ruas e se mostram arrogantes e cruéis, mas quando entram
aqui , chegam com a cabeça baixa, choram, se dizem crentes a Deus, e que são
mais humildes e mais vítimas que as próprias vítimas; bem, doutor, isso pode servir para os bandidos, com certeza isso não me atinge, porque como
disse e repeti, eu sou inocente.
"
O sargento Pimenta que está aqui no meu lado, foi testemunha do que houve,
doutor.
"
Juro pela saúde dos meus filhos que na hora que sair daqui vou direto para minha
casa. Prometo ao senhor que não vou em nenhum grupo de direitos humanos pra contar
a eles dos tapas que levei. Não, não vou fazer nada disso. Quero mais é sair
daqui e passar uma borracha nisso tudo e continuar seguindo minha vida, doutor.
"O
que eu fazia aquela hora da noite na Presidente Vargas? Eu tava andando pro
terminal para pegar o último ônibus da noite.
"O
que tem a ver que o endereço da empresa é no Méier e que eu estava na
Presidente Vargas às onze e meia da noite? Nada a ver. O ônibus que pego fica
lá atrás da Central no Américo Fontinelli; moro em Coelho Branco, já ouviu
falar? Isso mesmo, perto de Nova Iguaçu.
"O
senhor está sugerindo que no depoimento que dei ontem tá meio confuso, que trabalho
em um bairro e depois estou no centro... De trem? Não gosto de andar de trem,
doutor. Como tenho meu bilhete único, prefiro andar de ônibus.
"Não
tem nada estranho que eu estivesse na Presidente Vargas com a rua Miguel Couto.
Sei que fica longe da Central do Brasil. Quando peguei o ônibus no Méier, encostei
a cabeça na janela e cochilei. Nem foi bem um cochilo,apaguei mesmo. Nem vi
quando passou do ponto da Central e quando me dei conta, fui acordar na Rio
Branco. Pedi pro piloto parar e desci na esquina da Ouvidor. Dali peguei a Miguel Couto e fui pra
Presidente Vargas....
"Que
foi que o senhor disse? Não entendi direito...Que existe uma ocorrência com meu
nome aqui com o senhor? Com certeza deve ser de outra pessoa, doutor. Tem meu
nome Antônio da Silva... Brincadeira doutor, só aqui no Rio deve ter centenas
ou milhares de pessoas com o nome de
Antônio da Silva...
"Sargento,
o senhor podia tirar essas algemas? Tão arranhando meus pulsos... Não pode?
Primeiro tem que acabar o depoimento? Estou prestando novamente outro depoimento?
Calma, não estou me fazendo de idiota,
Sargento. Não, é que achei...
"
O senhor viu agora doutor! Pedi com educação que me tirasse as algemas e o Sargento Pimenta me deu esse tapa
na cabeça. O quê? O senhor não viu nada? Que tava lendo o depoimento de ontem e comparando com que estou falando
agora... sei... mas quero que nesse depoimento esteja bem claro que estou me
declarando inocente de tudo que houve na noite de ontem.
"Posso
dar um telefonema? Preciso avisar pra minha mulher que ainda vou demorar um
pouco... Não posso? Não tenho direito a um telefonema... Mas todo mundo tem!
"Ai,
não me bata mais sargento, não quero mais telefonar pra ninguém. Sim, vou
continuar a história...
"Sabe
que ali na Presidente Vargas andar à noite é perigosa, lá tem muitos pivetes, viciados que aproveitam de gente que andam
sozinhas.
"Esse
era o meu caso, doutor. Recebi meu salário ontem em dinheiro, e escondi tudo nos
bolsos da minha calça. Por falar em salário, o Sargento Pimenta tomou ele todo
quando nos encontramos. Ainda não me deram o documento para assinar dos meus
objetos de valor que foi apreendido ontem.
"Tava
eu indo pela Miguel Couto apertando meus passos, porque além de pouca
iluminação, não tinha viva alma perto. Nenhum barzinho aberto, nenhum camelôs
vendendo cerveja na Uruguaiana. As ruas em volta eram um deserto só...
"Quando
parei na esquina da Presidente Vargas, foi aí que ele apareceu do nada. Devia estar
escondido em algum canto na Bueno Aires, ou ali perto da igreja do Rosário... Onde
ele estava mesmo não sei dizer. Só sei que ele apareceu na minha frente me
apontando uma faca, falando 'perdeu, perdeu!' gritando que queria dinheiro.
"
Como ele era o sujeito? Você viu, Sargento. Magro, 1,70m, cabeludo, barbudo...
"Agora
entendi onde quis chegar, tenho 1,87 de altura, cem quilos, e sou forte. Sim,
sou muito forte...
"
Isso, também sou negro, peão de obra e o garoto que me ameaçava com a faca pra
me roubar não pesava mais que sessenta quilos e era branco e louro. Irônico?
Não sei se a palavra certa é ironia, estou dizendo só a verdade.
"O
que houve depois que ele apareceu na minha frente armado com a faca? Fiquei onde
estava parado, só pensando no meu salário que escondi nos bolsos da calça...
"O
garoto girava a faca de um lado ao outro, gritando que eu entregasse toda grana
que eu tivesse ali. Algumas palavras que
ele falava eu não entendi muito bem, ele tava com jeito que tinha muita droga
na cabeça. Procurei ficar na minha porque sei que com um viciado em crack todo
cuidado é pouco e é arriscado enfrenta-lo na mão pura. Para esses caras é tudo ou
nada. Mesmo correndo perigo, não ia entregar meu dinheiro de bandeja assim de
graça.
"Consegui
manter uma certa distância dele me protegendo que ele me furasse, depois pensei
na família que tenho e que dependem de mim. O garoto babava, xingava, ameaçava,
e como não tinha ninguém perto para me ajudar fui obrigado a tomar uma decisão
rápido.
"Aproveitei
o instante que o garoto fez um movimento com a faca para o lado e saltei em
cima dele. Caí com meu peso em cima dele no chão e segurei o pulso dele, e assim consegui imobilizar a mão que segurava
a faca, e com outra mão dei dois ou três murros na boca do garoto.
"Minha
mão ficou suja com o sangue que saía aos borbotões da boca dele. Quebrei uns
dentes dele também, mas mesmo assim o moleque ficou se contorcendo embaixo de
mim parecendo um bicho, cuspiu sangue na minha cara e berrava que ia me matar.
"Não
sei de onde veio dele aquela força todo que torceu meu braço quando conseguiu
levantar sua mão que eu agarrava, e vi a ponta da faca chegando bem perto dos
meus olhos. Precisei usar toda minha força para torcer de novo o braço dele
para baixo, a mão virou e caiu rápido e pesado... ouvi um barulho estranho e vi
que a faca cravou nele bem fundo.
"Ficamos
cara a cara, e os olhos dele foram se esbugalhando, e acabou que ele golfou e
saiu mais sangue. Levantei, sacudi a poeira na minha roupa e ele continuou
deitado.
"
Me abaixei, arranquei a faca dele tentando ver se podia ajuda-lo; procurei nos
bolsos da calça jeans dele para ver se achava algum documento. Foi aí que
apareceu o camburão da polícia na avenida, e o Sargento Pimenta e mais dois
policiais desceram da viatura e vieram até onde eu estava.
"Antes
mesmo que eu dissesse qualquer coisa, os PMs sacaram suas armas e apontaram
para mim. Mandaram que eu ficasse deitado de barriga para baixo, puxaram meus braços para trás e me algemaram.
"Tentei
argumentar mas o Sargento Pimenta me revistou e pegou todo meu salário. Ouvi
ele dizendo para outro PM: Esse aqui tá ferrado, tivemos sorte de pegarmos esse
vagabundo em flagrante.
"Foi
isso que realmente aconteceu ontem a noite...
"O
quê? Quer que repita de novo a minha história e que eu diga verdade? Não tem
mais nada pra contar, doutor...
"Doutor,
nunca fui fichado e também nunca estive envolvido em nenhum crime...
"O
retrato aí na sua frente com meu nome é de uma outra pessoa, não sou eu...
"Nem
tá dando pra ver direito o retrato desse cara... a foto está escura...
"Não,nunca
ouvi esse nome antes... Diogo Torres...
"Esse
era o nome do garoto que morreu... empresário com um escritório na Presidente
Vargas 590...
"O
que sei que esse garoto, Diogo Torres ou outro nome que tenha, apareceu na
minha frente me ameaçando com uma faca e falando que ia me matar...
"Não
acredita na minha história?
"Pra
eu assinar minha confissão?
"Que
confissão se não fiz nada...
"Estava
me defendendo dele...
"Meu
Deus, não sou eu esse homem do retrato, já disse mil vezes. Olhem, nem dá para
ver a cara dele direito...
"Ai,
ui, por favor não me batam... Ai, ai...
"Não
vou assinar droga nenhuma de papel em branco!!
"Preciso
telefonar...
"Não
sou nenhum assassino, eu sou a vítima,
doutor!
"Tinha
que ligar para minha mulher...
"Se
assinar, vocês vão me liberar?
"Ela
deve estar muito preocupada, nunca passei uma noite fora de casa...
"Claro
que não estou tirando sarro com a cara de ninguém!
"Essa
cela tá muito cheia... Sargento, por favor, liga pra empresa...
"Eles
confirmam que sou trabalhador...
"Esse
dinheiro que você pegou dos meus bolsos são do meu salário, nunca foi daquele
garoto. Eu não roubei nada...
"Volte
aqui, doutor, precisa me escutar, eu não fiz nada... Acredite em mim!"
Rogerio
de C. Ribeiro
05
de abril de 2014