UM BOM VIZINHO
CAPÍTULO DOIS
V
Depois que Mário Regino conheceu Rodrigo, o seu vizinho, vieram as insônias nas madrugadas. Enquanto
ouvia o ronco de Laurinda ao seu lado na cama , ruminava sobre o estilo e padrão de vida do casal do
apartamento 802.
As comparações martelavam sua cabeça: Rodrigo era bem sucedido na vida profissional e amorosa; e fazia
questão de deixar isso bem claro para que qualquer pessoa soubesse; já
ele era apenas um insignificante funcionário administrativo que controlava centavos para
comprar pão de manhã. Apesar de magro, Rodrigo exibia um corpo atlético e com seu charme atraía mulheres bonitas; ele era gordo, calvo e feio. Desde criança Sempre fora
meio estranho . Nunca teve sorte com nenhuma mulher durante sua juventude,
e só casou-se com Laurinda, porque foi a única que demonstrou que se interessava por dele. Só demonstrou, porque na realidade ela queria que algum trouxa a bancasse, o que conseguiu
com ele. O apartamento do jovem casal quitado à vista era mobiliado
com ótimo gosto, seus móveis eram novos, e sua tevê LED era a mais cara do
mercado. E o seu apartamento, que ainda devia prestações pela Caixa Econômica, os
móveis velhos quebrados eram da tempo do seu casamento, e sua tevê só
sintonizava a Globo com chuviscos na imagem, o apartamento também fedia a mofo e
uma legião de baratinhas francesas circulavam pela pia da cozinha, dentro da
velha geladeira e no armário de cozinha onde faltava uma porta pelos pratos e
copos. Enquanto Rodrigo e Samanta saíam para restaurantes de massas ou em
churrascarias, ele era obrigado a engolir a comida insossa e mal feita que
Laurinda fazia enquanto fumava um cigarro em cima do outro. A comida vinha com aroma de alcatrão e gosto de nicotina. Rodrigo e Samanta, que demonstravam
publicamente o amor que sentia pelo outro, Mário Regino e Laurinda, o tédio e o
desprezo que um sentia pelo outro.
Essas comparações que o incomodavam. Na tempo
que o apartamento 802 ficou vazio (e foi por muito tempo; o último morador foi
um viúvo que vivia enclausurado, e quando caiu doente um
dos filhos o levou ao hospital e não voltou mais), Mário Regino foi seguindo
com sua vida medíocre, mas também tranquila. Mas agora, com Rodrigo o elegendo
como seu melhor amigo, e tomando-o como uma figura paterna para substituir o pai que ficou estraçalhado com a pancada violenta que levou do Chevette, e de repetir à exaustão sua prosperidade , isso tudo estava lhe tirando o
sono.
Mário Regino não queria pensar nisso, mas seu
íntimo urrava: Ele sentia ódio daquele garoto. A raiva que minava dentro dele
era tanta que chegou a verter umas lágrimas dos olhos porcinos. Até de Deus
sentia raiva... enquanto alguns tinham tudo, ele, Mário Regino, não tinha nada.
VI
A vida dos dois vizinhos se modificaria de forma
drástica depois do dia que Rodrigo anunciou que ia ser pai.
Almoçavam em um restaurante de massas na rua da
Quitanda, e entre garfadas de lasanha verde e falando amenidades, Rodrigo de
repente declarou:
- Vou ser pai. Samanta tá grávida de dois meses!
Mesmo com a boca cheia de lasanha, Mário Regino o
parabenizou. Rodrigo parecia exultante e pediu uma garrafa de vinho ao garçom.
- Não vai te causar problemas de beber na hora de
serviço?
- Que nada, um copinho só não mata ninguém. E além
do mais - Rodrigo encheu as taças e entregou uma a Mário Regino. - uma notícia
como essa merece uma bela comemoração!
Ele ergueu sua taça e Mário Regino pegou a sua que
estava cheia até a ponta com vinho tinto. Saudaram, e Rodrigo esvaziou sua taça
em três goles.
Mário Regino deixou sua taça cheia esquecida ao
lado. Ainda preferia a lasanha.
VII
Um mês e meio depois, retornavam do centro da
cidade no carro novo que Rodrigo comprou, um Renault quatro portas; estavam
parados em um gigantesco engarrafamento na Radial Oeste. Mário Regino
notou Rodrigo meio chateado, e falando pouco, que não era seu normal.
Perguntou se algo grave havia acontecido, e o rapaz disse:
- Samanta...nos últimos dias ela anda muito
estranha comigo, Mário. Eu sei que pode ser a gravidez, mas nunca imaginei
que quando as mulheres ficam grávidas também se tornam chatas!
- Eu não posso expressar nenhuma opinião sobre
isso... - É claro que não posso, pensou ele, esmagado no cinto de segurança,
olhando os faróis de freios dos carros em frente acendendo e apagando,
acendendo e apagando... Nunca tivera filhos, o que não era tão ruim assim.
Repetia para si mesmo: Minha mulher é seca, minha mulher é árida, um deserto do
Saara! Quando se casou com Laurinda, já na primeira noite ela mostrou na cama
que era mais fria que um freezer vazio e com o termostato ligado no volume máximo.
Quando a penetrava, ela admirava o teto com seus olhos vazios e bocejava.
Perguntava de minuto a minuto se ele já havia gozado. E ele suando, no início
não queria acreditar naquilo; mas no decorrer dos anos a frieza também o
contagiou, e quando tinha necessidade, a penetrava com olhos fechados para não
ter mais que vê-la bocejando na sua cara. É por esse motivo que agradecia por
não ter tido filhos.
Rodrigo agarrava o volante e mantinha sua atenção
no engarrafamento. Quando falou, foi mais por desabafo do que reclamação:
- Engraçado... No início tudo é bom, tudo são
flores. Você sabe, já passou por isso. Mas quando a mulher engravida, é o sinal
que a lua de mel acabou, que foi pro espaço. Samanta anda chata, reclama de
tudo até do cheiro do meu sabonete e desodorante. Tô achando que ele sente nojo
de mim.
- Impressão sua - Mário Regino disse, mas não
acreditou nas suas palavras. - É só uma fase, isso vai passar...
Quando os carros em frente puderam andar um pouco
mais, Rodrigo aproveitou a brecha para dobrar com o Renault na primeira
esquina. Mário Regino perguntou para onde iam, e o rapaz informou:
- Logo ali tem um barzinho de um amigo meu. Podemos comer bolinho de bacalhau que é uma beleza. Vamos beber uma cervejinha até que
esse engarrafamento acabe.
- Mas você está dirigindo!
- Ah, Mário, e daí? Uma cerveja não vai me
nocautear!
Parou o Renault em frente do bar com algumas
mesas vazias na calçada. Sentaram em uma delas e um mulato deixou um isopor com
meia dúzia de garrafas de cervejas no gelo. Rodrigo encheu os copos, esvaziou o
seu em um só gole e disse:
-Tem horas que uma cerveja opera milagres para mim.
Nos últimos dias tenho tido muita pressão lá no trabalho, um novo chefe que veio
transferido e parece que não foi muito com minha cara. Todo dia anda questionando minhas
tarefas. Isso também está me afetando. Me aporrinho na empresa e quando chego
em casa, onde espero pelo menos ter paz na minha cabeça, vem Samanta enchendo
meu saco também.
Ele virou a garrafa, encheu seu copo de novo e
continuou:
- Eu não te falei antes, mas Samanta agora vive se
queixando que todo dia quando chego em casa estou fedendo a bebida. Poxa, do
jeito que ela fala dá a impressão que sou um alcoólatra, do tipo daqueles que
mal acordam já enche um copo de conhaque! Vira e
mexe azucrina meu ouvido para eu largar a cerveja. Vê se faz sentido,
Mário, já sou cobrado o dia inteiro por um chefe que só quer me boicotar e
ainda ela pede que tenho que largar meu prazer que é de beber uma gelada? O que
ela quer, que eu me transforme em outra pessoa? Ela já me conheceu assim,
bebendo...
Aquela confissão do Rodrigo atiçou a curiosidade de
Mário Regino. Finalmente encontrou um ponto fraco naquele rapaz tão senhor de
si. Deixou que ele monologasse à vontade e pediu outro isopor com mais
cervejas. Seu copo continuava intacto, mas sabia que Rodrigo não ia notar esse pequeno detalhe.
Saíram do bar quase meia-noite. Rodrigo ia
tropeçando nas próprias pernas em direção do Renault. Mário Regino permanecia sóbrio.
No caminho para o Méier, Rodrigo falava em uma voz arrastada:
- Pra mim você é como um pai, Mário. Tive muita
sorte de ter te conhecido. Nunca na vida tive um amigo de verdade como você,
que me ajuda com seus conselhos...
"Conselhos? Nunca te dei conselhos, pirralho.
Você não deixa ninguém abrir a boca. Só você tem o direito da palavra, do
discurso... É, discurso, porque quando fala, parece que está em cima de um
palco, segurando microfone , enchendo o saco e a paciência dos outros que pra
você são apenas meros espectadores"...
Mário Regino cortou sua linha de pensamentos e
escutou Rodrigo dizendo:
- ... ela me dá mole todos dias... Outro dia veio
com uma roupa decotada que pareciam que seus peitos iam pular fora.
Foi pegar um relatório na minha mesa e quando se abaixou na minha frente me
impregnou todo com seu perfume... e sabe, pra você posso contar, na hora me
bateu um tesão... se não é Samanta, sei não, acho que ia cometer uma loucura
ali na minha sala mesmo...
Mário Regino não quis fazer mais nenhum comentário.
Apenas sorriu, e dessa vez era um largo e esfuziante sorriso .
(No próximo episódio: Uma festa de fim de ano e
suas consequências)
Rogerio de C. Ribeiro
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