No capítulo anterior: E Mônica continuou no mesmo lugar,
sentada, assistindo a tudo passivamente. Na verdade, ela nem estava prestando
atenção no marido e nos meninos. Sua cabeça agora viajava em um armarinho da
área, onde havia uma sacola de plástico escondida, que representava seu futuro,
sua felicidade, seu grande prêmio.
CAPÍTULO 5
Envolvida na escuridão do quarto com o
irritante matraquear do ventilador e seu bafo quente, aguardava, ansiosa, pelo
primeiro ronco de Adroaldo para se levantar e ir para a área de serviços.
Depois que Adroaldo aplicou uma surra de cinto nos meninos e colocou-os de
castigo, ele voltou ao seu normal. Jantou, assistiu o jornal da noite e se
deitou. Depois do discurso, não abriu mais a boca. E Mônica que ia repreende-lo
pela surra dada nos meninos, decidiu ficar quieta. Esquentou o jantar, fez o
prato do marido como se nada tivesse acontecido. O que ela queria mesmo era que
Adroaldo caísse no sono pesado de sempre; assim ela ficaria livre para fazer o
que queria desde cedo.
No primeiro ronco Mônica nem esperou
pelo segundo; levantou-se, desgrudou a camisola colada no seu corpo suado e
pisou descalça no chão para não fazer barulho. Girou a maçaneta da
porta, olhou por sobre os ombros e viu Adroaldo deitado de barriga para cima só
de cueca, encharcado de suor, que descia em filetes pelo seu rosto e pelas
costelas, molhando o lençol. Mônica abriu a porta e depois fechou com todo
cuidado; seguiu pelo corredor iluminado por uma lâmpada ao lado do banheiro e
chegou na sala. Mônica não precisou ligar o interruptor de luz para encontrar o
que queria; conhecia todas posições dos móveis com olhos fechados. Tateou no
armário e bateu em cima da capa do álbum. Tirou da prateleira, dobrou-o e
seguiu para a área.
Entrou na cozinha, abriu a geladeira e
pegou uma garrafa de água gelada e encheu um copo. Bebeu um gole e levou o copo
pela metade em caso de Adroaldo fosse surgir de repente na cozinha. O copo
d'água era seu álibi. Diria: Estava com a garganta seca e vim beber água. E se
Adroaldo visse o álbum de figurinhas embaixo do braço dela, ela podia dizer:
Sabe como são os meninos, sempre bagunceiros (além de ladrões!), deixam rudo
espalhados! Claro que ele acreditaria nela. Mônica aprendeu que mentir era
necessária para que pudéssemos atingir nossos objetivos. E ela
descobriu, sem querer, que sabia mentir, e muito bem!
Uma porta de madeira separava a cozinha
da área. Ela girou a chave e pisou no chão de cimento. Deixou o álbum e o copo
d'água em cima de uma pequena mesa onde se guardavam um pote cheio de
pregadores e um refil com amaciante. Abriu o armarinho e precisou ficar na ponta
dos pés para alcançar a sacola de plástico; ela estava enrodilhada nos fundos,
entre uma caixa de sabão em pó e uma garrafa de água sanitária. Conseguiu pegar
a sacola, voltou para a mesa e sentou-se em um banco redondo de madeira.
Acendeu a luz da área, e o lugar se iluminou fracamente. Os seus dedos tremiam
quando rasgou os pacotinhos. Foi tirando os cromos e espalhando-os em cima da
mesa. Foi colando uma a uma e as repetidas deixando de lado. Seu coração batia
descompassado e gotículas de suor brilhavam em cima dos seus lábios. Não
demorou nem quinze minutos e tinha colado todas figurinhas. Guardou as
repetidas dentro da sacola de plástico, e a escondeu de novo dentro do
armarinho.
Depois voltou para saborear o álbum. Já
tinham mais de sessenta figurinhas novas, mas nenhuma página ainda foi
completa. Em cada página havia um tema do corpo humano. Na primeira eram
precisos oito cromos para formar o quadro de um crânio humano - só tinham três
cromos colados, a fronte lateral, um que era da mandíbula e uma parte do
maxilar.
Na página seguinte era do sistema
circulatório. Ali cinco cromos mostravam quase o quadro completo do coração
humano. Mais uma vez ficou impressionada com a nitidez e a riqueza de detalhes
de cada figurinha. Era como se estivesse vendo um coração na sua frente. Mônica
soltou uma risadinha nervosa com a súbita imaginação fértil; durante sua vida
inteira foi uma mulher prática, que nunca sonhou e nem fantasiou com coisas que
não existisse ao seu redor.
Virou as páginas freneticamente até que
chegou na última delas. Mônica ficou sem ação por um momento; a última página,
agora iluminada por uma fraca lâmpada de 60 velas, mostrava um quadro com o
número 280. Só uma figurinha completava essa página. Ela leu na legenda e ali
só estava especificado: CROMO FINAL.280.
Voltou as páginas e conferiu-as: Todas
tinham um índice. Uma era do crânio humano, outra das artérias, outra do
coração... Todas tinham uma descrição. Só a última que não, era só o único e
solitário quadradinho com o número 280, e escrito Cromo Final.
Mônica fechou o álbum e balançou a
cabeça. Quando viesse essa figurinha número 280, ia saber do que se tratava. De
repente podia ser a foto do corpo humano em miniatura...
Precisava voltar ao seu quarto antes
que Adroaldo interrompesse seus roncos para ir no banheiro. E se ele não a
visse deitada e suada, embalada pelo vento quente do ventilador, ia procura-la
pela casa toda. E se a encontrasse ali na área com o álbum de figurinhas, com
certeza não ia sorrir.
Sem perceber, ela escondeu o álbum
dentro do armarinho, desligou a luz da área e voltou correndo descalça para seu
quarto. "Meu ninho do amor!", pensou. Controlou o riso iminente para
não acordar seu marido. Deitou-se, virou de lado e pensou:
"Preciso de mais dinheiro para
comprar figurinhas. Vou completar esse álbum logo. Esse prêmio vai ser
meu!"
Dormiu quase imediatamente, dessa vez
um sono sem sonhos.
Continua...
No próximo capítulo: Mônica às voltas
com sua vizinha fofoqueira.
Rogerio de C. Ribeiro
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