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quinta-feira, 8 de maio de 2014

UM BOM VIZINHO


PRIMEIRO CAPÍTULO 

I

Mário Regino assistia o programa Esporte Espetacular enfiado na sua velha poltrona de couro desfrutando a paz que reinava no ambiente já que Laurinda, sua esposa, ainda continuava agarrada pelos braços de Morfeu quando de repente escutou vindo do corredor do lado de fora móveis sendo arrastados de frente à porta do seu apartamento. Levantou-se da poltrona com certa dificuldade e foi arrastando os chinelos de dedo pelo sinteco de tacos gastos e abriu a porta para saber quem era o responsável pelo barulho.
No apartamento 802, viu que a porta estava aberta e dois homens carregavam um armário na sala vazia. Um rapaz magro e com cabelos crespos estava parado no corredor ao lado da soleira da porta observando o movimento dos homens da mudança. O rapaz ouviu a porta do vizinho se abrindo, virou-se rápido e mostrou um sorriso exibindo dentes perfeitos e brancos. Ele disse:
- Bom dia! Tomara que esse barulho não esteja incomodando o senhor em pleno domingo!
Mário Regino retrucou:
- Não me incomodou em nada. Estranhei um pouco porque o dia para mudanças sempre é nos sábados.
- Ia ser ontem, mas tivemos que embalar tudo correndo para poder entregar o apartamento que alugávamos. Graças a Deus, esse aqui é nosso.
- Isso é bom - disse Mário Regino enquanto avaliava o jovem na sua frente com seus olhos porcinos. - E sua família é grande?
O jovem riu.
- Não, por enquanto só eu e minha esposa. Somos recém-casados.
Mário Regino concordou e sorriu,mostrando seus dentes pequenos e amarelos :
- Bacana. Meus parabéns. Sejam bem vindos, vizinhos.
Dois homens com uniforme pediram licença e passaram por eles carregando uma geladeira frost free e foram direto para a cozinha do apartamento. Enquanto Mário Regino avaliava o preço daquela geladeira, ouviu uma voz de mulher; provavelmente era a esposa do rapaz.
- Mas que educação minha - disse o jovem batendo na testa e estendeu a mão. - Meu nome é Rodrigo.
- Oi, Rodrigo, e o meu é Mário Regino - ele estendeu sua mão balofa e apertou a outra com força. - Vou repetir de novo que o casal seja bem vindo,e precisando de alguma coisa é só bater . Vizinhos são pra isso mesmo!
Rodrigo riu.
- Tem toda razão, e  te digo o mesmo.
Uma moça loura de corpo esguio, veio da cozinha. Ela vestia uma camiseta branca e um pequeno short que exibia grossas coxas. Rodrigo passou seu braço em torno da cintura dela e apresentou:
- Amor, esse é nosso vizinho Mário Regino. Minha esposa, Samanta.
Mário Regino balançou a cabeça fingindo desinteresse, mas seus olhos varriam todo corpo da moça avaliando. Sentiu uma súbita ereção e pôs as mãos em frente para disfarçar. Disse:
- Qualquer coisa, é só bater.
Antes de fechar e trancar a porta, arriscou uma última olhada para o jovem casal e os móveis que enchiam o apartamento deles.

II

Mário Regino lia o jornal no momento que sua esposa Laurinda acordou. Ele baixou o jornal no seu colo e conferiu que no seu relógio de pulso marcava onze e meia da manhã.
Laurinda saiu do quarto com uma velha camisola que cobria um corpo magro e seco. Tinha os cabelos embaraçados com alguns grampos presos e pendurados. Mário Regino comentou:
- A cama tava boa! Teve uma hora que achei que tinha morrido. Mas seria muita sorte para mim...
- Não enche o saco, Regino - disse Laurinda, a voz pastosa. - Essa noite mal preguei o olho. E ainda  hoje de manhã, com aquela barulheira lá fora...
"O que você sabe é dormir, fumar e ver televisão. Que bela mulher que tenho", pensou Mário Regino.
No almoço, Mário Regino ouviu vozes vindo do apartamento vizinho. Deduziu que fosse a família do rapaz ou da esposa gostosa. Enquanto enrolava o macarrão no garfo, viu Laurinda, que já tinha terminado de comer ,sentada na sua frente em silêncio  e acendendo um  cigarro fedorento na mesa com um isqueiro BIC; Sua vontade era pegar o seu prato cheio de macarrão com molho de salsicha e joga-lo na cara dela. Procurou manter o controle, continuou mastigando e aguçou a audição, tentando ouvir o que conversavam lá fora.

III

Um mês se passou e os dois vizinhos se encontraram em frente do elevador na manhã de uma terça-feira. Rodrigo usava um terno de linho e carregava uma pasta na mão. Ele disse:
- Como vai, vizinho?
Mário Regino, em sua velha camisa de botões e meio apertada, que  mostrava uma protuberante barriga, respondeu que ia bem.
- Estou indo para a cidade, quer uma carona? - Perguntou Rodrigo
Mário Regino, que todos dias pegava um ônibus que sempre vinha lotado até o centro da cidade, respondeu:
- Se não incomodar...
- Incomoda nada! - Rodrigo riu. Era um riso franco e jovial. - Todo dia vou pro centro de carro sozinho. Vai ser um prazer.
E Mário Regino foi de carona. Era um Palio de duas portas e com ar condicionado. No caminho do Méier para a cidade, foram batendo papo e Mário Regino soube que o rapaz trabalhava como consultor chefe em um famoso escritório de engenharia, 
Mário Regino sentiu dentro dele um súbito mal estar, não sabia se a razão disso era por causa do cinto de segurança que apertava sua imensa barriga ou do fato que o rapaz possuía um ótimo emprego enquanto que ele, aos 48 anos  era apenas um medíocre funcionário administrativo, que mal dava para segurar o salário até o fim do mês.

Dias depois se encontraram na portaria do prédio, e novamente Rodrigo ofereceu carona . Mário Regino se fez de rogado, que não queria abusar. No que Rodrigo disse:
- Mário, eu te conheço há pouco tempo, mas sei muito bem diferenciar um sujeito aproveitador de um trabalhador honesto. Já disse antes que não me custa te dar carona e afinal de contas, pra que servem os vizinhos? - Disse e deu um tapa nas costas de Regino, rindo.
Mário Regino apenas sorriu.
E nos meses seguintes a amizade entre os dois foi se aprofundando . Rodrigo era expansivo, gostava de conversar, e Mário Regino era do tipo que só escutava. Às vezes almoçavam juntos em um restaurante na Rua do Rosário, e Rodrigo sempre pagava a conta. Nos fins de semana, marcavam no playground do prédio onde tinha uma mesa de sinuca, e jogavam. As partidas eram sempre regadas a várias garrafas de cerveja. Rodrigo, além de falar bastante, bebia compulsivamente. Já Mário Regino que mal tocava no seu copo,  ainda derramava ele cheio na pia que tinha ao lado da churrasqueira.

IV

Aos domingos se reuniam na casa de Rodrigo para assistirem ao futebol. Vascaíno doente, Rodrigo exibia os uniformes que colecionava, inclusive um que pertencera ao seu pai autografado pelo Roberto Dinamite. Bastante embriagado das cervejas que consumira desde a manhã , ele mostrou a camisa e disse:
- Olha só essa aqui Mário, essa camisa é de 1974, no ano que Vasco foi campeão brasileiro... Meu pai era conselheiro do clube e ganhou do Dinamite... Meu pai... - Havia lágrimas nos seus olhos. - Pobre do meu pai, morrer daquela forma...
Pela enésima vez Mário Regino ouviu a história do pai de Rodrigo que morreu em 1982 atropelado na Praça da Bandeira por um Chevette que corria em alta velocidade. Na época Rodrigo tinha seis anos , e hoje com quase 30 anos ainda sentia muita falta dele.
Samanta pediu, um pouco nervosa:
- Amor, dá pra parar de beber um pouco, você está chateando seu Mário...
Laurinda, que estava de pé na janela com um cigarro preso entre os dedos e segurando um copo de plástico com um restinho de cerveja que já estava preta pelas cinzas que depositava ali, disse:
- O Mário? O Seu Mário Regino? Esse aí adora ouvir histórias... se for triste então...hummmm...lambe os beiços...
Mário Regino fuzilou a esposa num olhar, mas Laurinda pouco se importou. Continuou dizendo:
- Queridinha, tem como pegar uma outra cerveja, mas dessa vez bem gelada? Adoro quando marcamos essas nossas reuniões nos domingos. Antes nosso andar aqui era um marasmo... quando eu ficava sozinha só olhando a cara de Regino. Um verdadeiro tédio! Regino nunca foi de falar muito... Agora pelo menos temos conversas agradáveis com vocês, existe juventude...
A vontade que Mário Regino sentiu foi se levantar da cadeira onde estava sentado, ir até Laurinda e apertar seu pescoço até que quebrasse. Mas fingiu que não tinha ouvido o matraquear da da sua mulher estúpida  e bebericou seu copo de cerveja quente, que para ele nesse momento tinha gosto de urina.

CONTINUA
(No próximo episódio: O gosto amargo da inveja)

Rogerio de C. Ribeiro

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