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quinta-feira, 15 de maio de 2014

OLHOS QUE SEGUEM

O dia ainda não tinha amanhecido e na praia um grupo de pescadores puxavam seus barcos para o areal; em cada embarcação, quatro ou cinco voluntários, em um esforço hercúleo, segurando firme as cordas, conseguiam atracar os barcos depois da arrebentação das ondas.
Os pescadores iniciaram a separação dos peixes selecionando-os em espécies, tipos, tamanho;  olham nas redes e tarrafas lulas, polvos, camarões, e para alguns sortudos, lagostas.
Alguns madrugadores surgiram nas areias e se espalharam pelas várias embarcações, primeiro em silêncio enquanto os pescadores selecionavam os melhores peixes para a venda; depois o alvoroço, quando compravam a preço irrisórios os peixes menos valorizados.
Grandes caixas de isopores abarrotados com gelos guardavam as mercadorias para irem direto às peixarias. Alguns donos de barcos, que nunca entraram no alto mar e nem tem intimidade com redes e tarrafas, enviam seus gerentes e homens de confiança com suas caminhonetes para levarem as caixas de isopores aos seus clientes, na sua maioria , donos de restaurantes.
Mas entre esses pescadores, existe um que é dono do seu próprio barco. O pouco que consegue pescar  já é suficiente para o seu sustento. Alaôr ia fazer sessenta anos, quase o mesmo tempo que tinha de mar, e é um dos últimos pescadores nativos que nunca se curvou à ganância capitalista que assolou no Vilarejo Santana do Mar. Anos atrás, quando alguns mochileiros descobriram aquela aldeia de pescadores escondido entre a serra e o mar, a paz da vila foi se acabando aos poucos com o tempo. Depois dos mochileiros vieram os biólogos marinhos, que foram estudar as espécies naquela praia nativa. Alguns pescadores, visualizando o início do progresso na aldeia, transformaram suas casas em pousadas para os turistas da temporada. E aí chegaram os estrangeiros, aproveitaram os preços baixíssimos dos terrenos da vila e ergueram pousadas gigantescas e hotéis luxuosos.
Alaôr sempre foi contra à essas mudanças que se transformava sua cidade. Na associação dos pescadores era a voz solitária contra o que podia ser o fim dos seus sustentos.  Sua voz  soava vazia nos ouvidos dos pescadores que enxergavam a riqueza.
- Não podemos estragar a terra que nascemos em troca dos que os de fora estão prometendo. Será o nosso fim!
Mas ninguém prestava atenção naquele discurso. Alguns até zombavam dele.
Alaôr era viúvo e não tinha filhos. Sua única companhia era um vira-lata de oito anos, o Zeca, que o acompanhava sempre para onde quer que estivesse indo.
E depois dos hotéis e comércios que foram sendo erguidos no vilarejo, veio também a poluição. Um grupo de estrangeiros haviam construído várias fábricas de sardinhas enlatadas, e o lixo era despejado no mar.
Alaôr se desesperou com o tamanho descaso naquela situação toda. Era uma destruição depois da outra. A antes pacata cidade agora quase se transformava em uma metrópole, e antigos moradores, que não tinham mais como brigar com grandes barcos e traineiras de empresários inescrupulosos, iam embora de lá.
Dos pescadores nativos, só Alaôr continuou morando no vilarejo, ele e seu barco e seu único companheiro, o Zeca.
Com a poluição veio também a escassez de peixes. Onde antes a pesca era abundante, agora só os grandes barcos seguiam para o alto-mar e conseguiam seus lucros.
No pequeno bar onde costumava beber sua cachaça todas tardinhas, Alaôr sentia-se desanimado. Zeca dormia no seu lado quando ele disse para Levi, o dono da birosca:
- Amanhã vai ser minha última pesca. Do jeito que as coisas andam, daqui a pouco nem sardinha vai ter. Me dá uma tristeza ter que ir embora daqui... mas hoje estou morando numa cidade que não é minha...
Levi concordou; bons tempos quando os pescadores se reuniam e dividiam suas pescas entre eles. Agora tudo era dos forasteiros. Aquela cidade deixou de ser vilarejo e agora era um município emancipado.
- Vamos, Zeca, vamos pra casa - chamou Alaôr. O cachorro levantou as orelhas e preguiçosamente foi atrás dele, abanando o rabo.
Alaôr chegou na praia antes de duas da manhã. Puxou seu pequeno barco e saltou dentro dele, remando para o mais longe possível. Zeca ficou deitado como sempre, olhando seu dono sumir na escuridão do imenso mar.
Chegaram mais pescadores que saíram em seus barcos e Zeca acompanhou tudo, o focinho no meio das patas dianteiras, as orelhas levantadas, atento a toda movimentação que já estava acostumado.
E antes do amanhecer do dia, os pescadores voltaram, trazendo o resultado do seu trabalho. E carregaram os isopores cheios de peixes para as caminhonetes que aguardavam na areia agora suja.
E Zeca dormia e acordava, e nada do seu dono.
A manhã chegou, o sol bateu firme nas areias da praia, as fábricas soltavam fumaças pelas chaminés, e Zeca ainda esperava o dono.
Crianças faziam castelos de areia, turistas de todos cantos almoçavam nos quiosques pela orla, embalagens vazias, papéis amassados e latas vazias de cerveja eram largadas nas areias. E Zeca continuava no mesmo lugar,deitado olhando para o horizonte , esperando o seu dono.
E o sol desceu no poente, os turistas foram embora, a noite estrelada se firmou, e Zeca continuou deitado, esperando. Vigiando com seus tristes olhos o mar em frente, esperando o barco do seu dono aparecer.
Só foram dar falta do Alaôr quando notaram Zeca deitado na areia no dia seguinte, quando chegaram da sua pesca. Acionaram a guarda marinha, fizeram buscas mas nem Alaôr e nem seu barco foram encontrados.
Desistiram da busca dias depois. Continuaram vivendo suas vidas, a cidade foi expandindo, as fábricas poluindo, e o progresso acelerando.
Só Zeca continuava parado no tempo, deitado no mesmo lugar. Às vezes saía, comia alguma coisa que sobrava nos quiosques, bebia água da chuva, mas depois sempre voltava para o seu lugar da areia, onde se habituou desde filhote a ficar ali paciente esperando que seu dono voltasse do mar com sua pescaria.
Zeca sabia que seu dono ia voltar.
Tinha certeza que sim



Rogerio de C. Ribeiro 

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