OLHOS QUE SEGUEM
O
dia ainda não tinha amanhecido e na praia um grupo de pescadores puxavam seus barcos
para o areal; em cada embarcação, quatro ou cinco voluntários, em um esforço hercúleo, segurando firme as cordas, conseguiam atracar os barcos depois da arrebentação
das ondas.
Os
pescadores iniciaram a separação dos peixes selecionando-os em espécies, tipos,
tamanho; olham nas redes e tarrafas lulas, polvos, camarões, e para alguns sortudos,
lagostas.
Alguns
madrugadores surgiram nas areias e se espalharam pelas várias embarcações, primeiro
em silêncio enquanto os pescadores selecionavam os melhores peixes para a
venda; depois o alvoroço, quando compravam a preço irrisórios os peixes menos
valorizados.
Grandes
caixas de isopores abarrotados com gelos guardavam as mercadorias para irem
direto às peixarias. Alguns donos de barcos, que nunca entraram no alto mar e
nem tem intimidade com redes e tarrafas, enviam seus gerentes e homens de
confiança com suas caminhonetes para levarem as caixas de isopores aos seus
clientes, na sua maioria , donos de restaurantes.
Mas
entre esses pescadores, existe um que é dono do seu próprio barco. O pouco que
consegue pescar já é suficiente para o
seu sustento. Alaôr ia fazer sessenta anos, quase o mesmo tempo que tinha de mar, e é um dos últimos pescadores nativos que nunca se curvou à ganância capitalista que assolou no Vilarejo Santana do Mar. Anos atrás, quando alguns mochileiros
descobriram aquela aldeia de pescadores escondido entre a serra e o mar, a paz
da vila foi se acabando aos poucos com o tempo. Depois dos mochileiros vieram
os biólogos marinhos, que foram estudar as espécies naquela praia nativa.
Alguns pescadores, visualizando o início do progresso na aldeia, transformaram suas casas em pousadas para os turistas da temporada. E aí chegaram os estrangeiros, aproveitaram os preços baixíssimos dos terrenos da vila e ergueram pousadas
gigantescas e hotéis luxuosos.
Alaôr
sempre foi contra à essas mudanças que se transformava sua cidade. Na associação dos
pescadores era a voz solitária contra o que podia ser o fim dos seus
sustentos. Sua voz soava vazia nos ouvidos dos pescadores que
enxergavam a riqueza.
-
Não podemos estragar a terra que nascemos em troca dos que os de fora estão
prometendo. Será o nosso fim!
Mas
ninguém prestava atenção naquele discurso. Alguns até zombavam dele.
Alaôr
era viúvo e não tinha filhos. Sua única companhia era um vira-lata de oito
anos, o Zeca, que o acompanhava sempre para onde
quer que estivesse indo.
E
depois dos hotéis e comércios que foram sendo erguidos no vilarejo, veio também a poluição. Um grupo de estrangeiros haviam construído várias fábricas de
sardinhas enlatadas, e o lixo era despejado no mar.
Alaôr
se desesperou com o tamanho descaso naquela situação toda. Era uma
destruição depois da outra. A antes pacata cidade agora quase se transformava
em uma metrópole, e antigos moradores, que não tinham mais como brigar com
grandes barcos e traineiras de empresários inescrupulosos, iam embora de lá.
Dos
pescadores nativos, só Alaôr continuou morando no vilarejo, ele e seu barco e
seu único companheiro, o Zeca.
Com
a poluição veio também a escassez de peixes. Onde antes a pesca era abundante,
agora só os grandes barcos seguiam para o alto-mar e conseguiam seus lucros.
No
pequeno bar onde costumava beber sua cachaça todas tardinhas, Alaôr sentia-se
desanimado. Zeca dormia no seu lado quando ele disse para Levi, o dono da
birosca:
-
Amanhã vai ser minha última pesca. Do jeito que as coisas andam, daqui a pouco
nem sardinha vai ter. Me dá uma tristeza ter que ir embora daqui... mas hoje estou morando numa cidade que não é minha...
Levi
concordou; bons tempos quando os pescadores se reuniam e dividiam suas
pescas entre eles. Agora tudo era dos forasteiros. Aquela cidade deixou de ser
vilarejo e agora era um município emancipado.
-
Vamos, Zeca, vamos pra casa - chamou Alaôr. O cachorro levantou as orelhas e
preguiçosamente foi atrás dele, abanando o rabo.
Alaôr
chegou na praia antes de duas da manhã. Puxou seu pequeno barco e saltou dentro
dele, remando para o mais longe possível. Zeca ficou deitado como sempre, olhando
seu dono sumir na escuridão do imenso mar.
Chegaram
mais pescadores que saíram em seus barcos e Zeca acompanhou tudo, o focinho no
meio das patas dianteiras, as orelhas levantadas, atento a toda movimentação
que já estava acostumado.
E
antes do amanhecer do dia, os pescadores voltaram, trazendo o resultado do seu
trabalho. E carregaram os isopores cheios de peixes para as caminhonetes que
aguardavam na areia agora suja.
E
Zeca dormia e acordava, e nada do seu dono.
A
manhã chegou, o sol bateu firme nas areias da praia, as fábricas soltavam
fumaças pelas chaminés, e Zeca ainda esperava o dono.
Crianças
faziam castelos de areia, turistas de todos cantos almoçavam nos quiosques pela
orla, embalagens vazias, papéis amassados e latas vazias de cerveja eram
largadas nas areias. E Zeca continuava no mesmo lugar,deitado olhando para o
horizonte , esperando o seu dono.
E
o sol desceu no poente, os turistas foram embora, a noite estrelada se firmou,
e Zeca continuou deitado, esperando. Vigiando com seus tristes olhos o mar em
frente, esperando o barco do seu dono aparecer.
Só
foram dar falta do Alaôr quando notaram Zeca deitado na areia no dia seguinte,
quando chegaram da sua pesca. Acionaram a guarda marinha, fizeram buscas mas
nem Alaôr e nem seu barco foram encontrados.
Desistiram
da busca dias depois. Continuaram vivendo suas vidas, a cidade foi expandindo,
as fábricas poluindo, e o progresso acelerando.
Só
Zeca continuava parado no tempo, deitado no mesmo lugar. Às vezes saía, comia
alguma coisa que sobrava nos quiosques, bebia água da chuva, mas depois sempre
voltava para o seu lugar da areia, onde se habituou desde filhote a ficar ali
paciente esperando que seu dono voltasse do mar com sua pescaria.
Zeca
sabia que seu dono ia voltar.
Tinha
certeza que sim
Rogerio de C. Ribeiro
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