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sexta-feira, 2 de maio de 2014

CONTO COMPLETO

O GANHO
Anselmo pegou uma lata de cerveja do isopor coberto de gelo estrategicamente ao lado da sua poltrona. Puxou o anel da lata com vontade e uma espuma desceu pelas laterais; rápido, sorveu um grande gole. No chão, encostado ao isopor, jaziam cinco latas vazias e amassadas.
Sentado na sua poltrona do papai com suas pernas cabeludas esticadas, assistia uma partida de futebol da noite entre Flamengo contra Volta Redonda pelo campeonato carioca . Deu outro gole na cerveja gelada , arrotou, passou a mão na imensa barriga branca e deu outra olhada para a porta fechada do conjugado. Já eram mais de dez e meia e nenhum sinal da Néia.
Terminou em grandes goladas a cerveja. Verificou no isopor mais seis latas boiando na água gelada e com alguns pedaços de gelo. Teria que comprar mais uma dúzia.  Mas só depois que Néia chegasse.
Uma coisa que ele nunca tolerou eram com os atrasos. Quando combinava um horário tinha que ser cumprido. Cada minuto que passava ele já imaginava que estava sendo traindo ou que ela ia abandona-lo.
Mas Néia nem seria era louca de deixa-lo. Afinal de contas, ela sempre repetia que ele era o homem da vida dela. Se não fosse por ele, ela estaria batendo cabeça e à mercê das mãos de outros caras que só queriam aproveitar de sua ingenuidade.
No tic-tac do relógio de parede os minutos corriam depressa. E ainda nem sinal dela.
Viu que o time do Flamengo tinha uma jogada de contra ataque, mas o ponta direita acertou a bola no travessão; Anselmo quase gritou gol e num acesso de raiva atirou a lata contra a parede. Na parede descascada o resto de cerveja que restava na lata deixou uma mancha amarela.
Pegou mais uma lata. E olhou novamente o relógio da parede. Os ponteiros marcavam onze horas. E ainda nada da Néia.
Em uma agilidade surpreendente pulou da sua poltrona e ficou de pé e andou pelo pequeno quadrado que chamava de sala de um lado para o outro. Mesmo sem camisa e só de bermudas, transpirava bastante, mesmo com o ventilador ligado no máximo em cima dele.
Uma das coisas que mais o deixava aflito era a ansiedade. Como acreditava que era um jogador e que sempre apostava alto, em cima de Néia depositou todas suas fichas, mas só de pensar na mais leve possibilidade de perde-la para outro jogador o deixava enfurecido.
Deu outra golada na cerveja que marcou com uma espuma branca seu bigode crespo. Ficou parado feito uma estátua de frente para a porta de costas para a tevê enquanto passava o intervalo da partida. Já não era mais aquele jovem de antes quando seus dias eram dedicados aos esportes e seu corpo atlético atraiam cobiçosos olhares das mulheres mais velhas que ele e até mesmo dos homens. Mas agora tinha 45 anos, o tempo foi cruel, deixou-o barrigudo, com os braços flácidos, e uma interminável ociosidade ao trabalho. Só o que ficou do passado eram suas mãos enormes que abrigavam em três dedos da mão direita grossos anéis. A vontade que tinha agora era esmurrar as paredes, mas precisou se conter porque na última vez que fizera isso, acabou arrebentando dois dedos que depois precisaram ficar enfaixados por algumas semanas.
E ainda nada da Néia.
Dentro da sua cabeça as palavras martelavam, indo e vindo como em eco: Ela foi embora, ela te largou, ela não quer mais nada contigo, ela está rindo de você...
Amassou a lata que segurava com raiva e a arremessou no chão juntando com as outras vazias.
Arriou todo seu peso na poltrona do papai e respirou fundo, tentando controlar a fúria que sentia nesse momento.
Néia não tinha a menor ideia que ele se fosse contrariado, podia transformar em um predador.
Ela estava brincando com seu instinto animal.
Pegou o controle remoto que largava sobre o braço da poltrona e abaixou todo volume da tevê.
E ficou imerso num absoluto silêncio enquanto assistia o segundo tempo do jogo.
No meio do silêncio sepulcral escutou um barulho de passos vindo no corredor lá fora.
Permaneceu sentado no mesmo lugar sem se mexer, apenas segurando outra lata de cerveja que já estava morna com o calor da sua mão.
Escutou o barulho de um chaveiro. E da chave na porta. E da maçaneta girando.
Seus olhos estavam grudados na tela da televisão com som mudo, mas não prestava  mais atenção em nenhuma  jogada .
Porque agora ouviu em alto e bom som a porta atrás dele sendo fechada lentamente. Néia deixou sua bolsa pendurada em um cabideiro que tinha ao lado da porta. Anselmo devagar terminou de beber o resto da cerveja quente.
Néia pensava que podia o subestimar. Mas Anselmo sabe que é um predador que não deixa escapar sua presa com facilidade.
Antes que Néia pudesse dizer alguma palavra, Anselmo de repente saltou da poltrona e virou-se para ela.
Ficaram cara a cara.
Ele sereno, calmo, atento, vigiando sua presa.
Néia nervosa, torcia os dedos das mãos e estampava um sorriso trêmulo.
Anselmo olhou o relógio na parede e depois para Néia. Ela disse:
- Perdoe pelo meu atraso, mas é que fiquei mais tempo no ponto esperando um cliente que acabou nem deu as caras. Hoje meu dia foi péssimo, nada produtivo...
Anselmo ergueu as sobrancelhas. Passou para ela um ar compreensivo, preocupado.
Néia sorriu. Agora ela tinha um sorriso confiante. Foi em direção dele para abraça-lo.
Anselmo estendeu o braço para a frente, evitando o abraço e Néia estacou. Anselmo disse, e o timbre da voz não demonstrava nenhum sentimento, nem raiva, nem rancor. Simplesmente falou:
- Vai tentar enganar outro trouxa. Pra cima de mim sua desculpa esfarrapada não cola.
- Mas te juro é verdade querido, o dia foi péssimo pra todas meninas...
- Depois nós conversamos como foi seu dia, Néia. Agora só quero te perguntar uma coisa: Que horas mesmo marquei para você chegar aqui em casa?
- Marcou dez horas.
- E sabe que horas são agora?
Néia olhou para o relógio e respondeu num murmúrio:
- Onze e quarenta.
Anselmo concordou com a resposta. Néia ainda não conhecia seu lado predador. Dividiam o mesmo teto há menos de seis meses, mas ele nunca precisou mostrar essa faceta para ela. Anselmo disse, como se quisesse lembra-la:
- Quando te tirei daquele inferno que você vivia, o que foi falei pra você nunca fazer comigo?
Néia se esforçou para lembrar daquela recomendação. Tinha uma silhueta magra, seu rosto não era bonito, mas o que chamava atenção era seu corpo esguio. E uma característica especial dela que fez com que Anselmo se aproximasse, era sua inteligência restrita.
- Não tô me lembrando amor, você já me falou tantas coisas...
- O que te disse naquele tempo quando nos conhecemos foi : Seja rigorosamente pontual quando eu for marcar um horário para prestar contas dos seus ganhos do dia. Lembrou?
Néia riu. Exibiu seus dentes tortos e amarelos pelos cigarros.
- Éééééé, lembrei!
-  E outra - Anselmo apontou o indicador cabeludo para ela. - Toda vez que você voltasse da rua às dez horas em ponto, sua obrigação era me entregar todo dinheiro que recebeu dos clientes para que eu possa administra-los, para que você não gastasse com bobagens, para garantir nossa aposentadoria. Sua parte são cinco por cento do ganho para seus consumos diários, seus cigarros, tua cachaça, aquela merda das pedras...
- Sim, sei disso tudo - ela concordou, ainda em pé na frente dele, mas seus olhos iam além de Anselmo
- Quando te acolhi daquela merda que vivia, dei o meu amor pra você. Te pus numa cama quente para dormir,  te dei carinho necessário que toda mulher precisa para ser feliz, fiz que se sentisse nas nuvens como seu verdadeiro macho para você pudesse esquecer dos seus clientes. Te dei um lar e um nome. Para nossos amigos você é minha esposa, minha mulher. Você deixou de ser daqueles cafetões viciados das esquinas.
Néia concordava com cada palavra que ouvia. Balançava a cabeça e murmurava:
- Eu sei disso tudo... e amo ser sua mulher.
Anselmo, o predador, precisava mostrar suas garras. Ela precisava receber uma lição  bem dada para que nunca mais repetisse seus erros.
- Tá legal, mais uma vez expliquei tudo que precisava e agora...
Ele estendeu a mão calosa virado com a palma para cima.
Néia dava a impressão que ainda olhava através dele, evitando assim olha-lo nos olhos.
- Já falei amor, hoje meu dia foi fraco, não apareceu nenhum...
Com a mesma mão que tinha estendida, em uma fração de segundos usou-a para esbofetear Néia.
Ela tropeçou para trás e suas pernas se enroscaram uma na outra e caiu em cima da mesinha de telefone derrubando o aparelho no chão e bateu com a cabeça na parede.
Imóvel, Anselmo observou aquela figura patética esparramada no piso de sinteco com suas pernas escancaradas mostrando uma calcinha de rendas preta.. Ele fingiu que estava arrependido e estendeu uma das mãos para ajuda-la a se levantar. Assim que Néia ficou de pé e ajeitava a saia do minúsculo vestido, Anselmo retornou:
- Ou você é muito burra ou continua fingindo que não me entendeu. - Novamente Anselmo estendeu a mão. - Passa.
- Eu entendi sim, acho que foi você que não...
O predador assumiu de vez. Agora foi um murro que acertou o rosto dela, que ficou arranhado por causa do grosso anel no dedo anelar. Dessa vez ela não caiu e nem tropeçou. Escondeu seu rosto que sangrava com as suas mãos e gritou:
- Quantas vezes preciso repetir que não...
Néia sentiu uma dor profunda na sua cabeça. Anselmo agarrou-a pelos cabelos e puxou-a para perto dele.
Ela percebeu que aquele homem na sua frente não parecia em nada com aquele romântico carinhoso, que depois de um dia de batalha nas ruas, a confortava, lhe dizia quanto era bonita...
Ele a jogou para o lado, e Néia se esparramou em cima do sofá. Anselmo gritou:
- Vamos logo, sua puta viciada! Me dá logo o que ganhou. Vamos parar com essas desculpas esfarrapadas. Tá achando que sou um idiota? Sei muito bem quando está mentindo!
Néia tremia como se tivesse com uma febre alta.Tirou de dentro do sutian umas notas amarrotadas. Com as mãos magras e ossudas entregou a Anselmo.
Ele contou as notas. Não pareceu satisfeito com o total.
- Muito pouco. Vai ter que voltar para a rua.
Sentada no sofá, Néia massageava seu rosto.
- Vou pra rua como desse jeito?
- Sei lá, dá seu jeito, dá uma retocada, capricha na maquiagem. Só quero que volte pra rua e  traga mais dinheiro!
Cabisbaixa, Néia foi para o banheiro. Voltou logo em seguida com seu cabelo penteado e com o rosto coberto de bastante maquiagem que disfarçava o arranhão e o olho roxo.
Anselmo disse, num tom de voz que parecia triste:
- Néia, isso aí doeu mais em mim do que em você, pode acreditar nisso. Mas por favor, nunca mais minta pra mim. Nem tente. Tenho sido tão bom pra você... Não mereço isso.
Néia, com os olhos rasos d'água:
- Perdão, meu amor, juro que nunca mais faço isso.
Anselmo deu de ombros e disse:
- Olha, estou realmente bastante magoado porque nunca esperei isso vindo de você, posso até te perdoar, mas você tem me prometer que fará de tudo, mas tudo mesmo, e me dizer agora que vai duplicar seu ganho ainda essa noite. Só assim posso ver se consigo esquecer que mentiu para mim.
- Prometo que farei de tudo que for possível, amor, nem que eu pegue os clientes das outras meninas! Só não quero que fique magoado comigo, amor.
- Então para de chorar senão vai acabar borrando toda maquiagem e aí mesmo que ninguém vai querer ficar você toda melequenta . - Abriu os braços e chamou: - Vem cá meu bem, me dá um beijo gostoso.
Néia beijou-o,  depois pegou sua bolsa pendurada no cabideiro e saiu em silêncio trancando a porta por fora.
Satisfeito, Anselmo guardou o dinheiro no bolso da bermuda, se esparramou na poltrona de papai, esticou as pernas, pegou mais uma lata gelada dentro do isopor, apontou o controle remoto, e quando o som da tevê aumentou, foi no exato instante que o camisa nove do Flamengo fazia um golaço de cobertura.
-Goooooooooooooolllllllll - gritou Anselmo, comemorando como se fosse o título do campeonato.

Rogerio de C. Ribeiro
05/04/2014


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