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quinta-feira, 3 de julho de 2014

RESSACA

Ressaca...
  Ondas de três metros que os surfistas adoram.
Ressaca...
  Mas essas ondas não arrebentavam agora.
Ressaca...
  O mar escuro se perdia na imensidão.
Ressaca...
  Mas agora não havia nenhum mar por perto.
  O estranho que ouvia o som, bem de longe, do barulho da água. Só que não batia na areia como antes...
 Antes quando?
 Nesse momento, não tinha condições de dizer onde vira as ondas, com sua espuma branca no meio da escuridão. Nesse instante, a única coisa que sabia era do seu corpo parado em algum lugar. Um corpo inerte.
Ressaca...
  Dentro da cabeça se alojava o verdadeiro mar em rebuliço. Em um estranho passe de mágica, o mar revolto sacudiu seus miolos, desceu pela nuca, atravessou suas costelas e se instalou definitivamente no seu estômago, causando reviravoltas furiosas que instigaram sua goela.
Ressaca...
  Que o quê? Do jeito que estava, nem conseguia abrir os olhos para ver onde estava deitado.
 Mas pra que essa preocupação toda? Onde estava, onde quer que fosse o lugar, acalmava o clamor que vinha das suas tripas, querendo ser jogadas fora, num violento acesso de fúria.
Ressaca...
  Não sabia que a dor emitia som. Agora sabia. Ouviu perfeitamente o martelar dentro da sua cabeça, como um ferreiro da idade média batendo sua espada em cima de uma bigorna.
(Não faça isso... Por favor! Não!)
Essa frase era repetida, feito ladainha, junto com o martelar na bigorna. De quem era aquela voz?
(Vamos beber... hoje, ninguém é de ninguém...)
 Tentou visualizar, mesmo de olhos trancados, a cena derivada desse diálogo. Apenas viu as ondas batendo na areia, como se estivesse em...
Ressaca...
  Vultos sem rostos, vestindo branco, flutuavam em círculos em câmera lenta diante das suas órbitas. Era um balé de formas indistintas, pairando acima da areia, fantasmas em forma de cruz, com imensas e etéreas asas que quando agitavam, explodiam e espalhavam poeiras multicoloridas...
Ressaca...
  O sonho se misturou com a realidade, ou foi o inverso?
  Podia ouvir mais vozes; vozes essas mais altas e claras. Uma até ecoou dentro da sua cabeça:
  - Como conseguiu esse estrago todo?
  - Mal dá para pisar...
  - Cuidado com o sapato!
Ressaca...
  Já estava na hora de abrir os olhos. Não podia ficar naquela escuridão para sempre. Mas cadê coragem para esse esforço hercúleo? As pálpebras pesavam toneladas, a vontade de dormir era maior porque a...
Ressaca...Não era o mar da praia, nem das ondas batendo na areia. Era nele mesmo.
(- Venha aqui, benzinho, mais um gole...)
  De novo aquela voz!
(- Hoje ninguém é de ninguém...)
  Vagas lembranças.
 Entreabriu os olhos. Não podia ficar mais ali parado, sem saber onde estava. Focalizou, atrás de um leve e tênue véu, o teto pintado de branco. Estava no hospital? Não, não era um hospital. Uma lâmpada fluorescente estava apagada. Mas havia um pouco de luz iluminando o bocal da lâmpada.
 Fechou e abriu os olhos várias vezes. O véu dissipou, e a luz aumentou de intensidade. Uma dor lancinante explodiu no meio dos seus olhos. E a ânsia de vômito veio com voracidade. Não conseguiu segurar; tudo que havia no estômago foi expelido para cima, sufocando-o.
  - Ele acordou! - Ouviu a voz. - E tá botando as tripas para fora!
  Sentiu que o seguraram nos ombros e então foi virado para o lado. Um cheiro azedo, de bebida com sangue, entranhou nas suas narinas.
  - Cuidado, senão vamos perder o cara!
  Perder? Como assim? Se nem conseguia mexer os membros... como iam perder...
Ressaca...
 Agora tinha ideia do que acontecia com ele. Era a primeira vez que isso acontecia, mas de tanto ouvir os outros falando, agora estava tendo uma tremenda ressaca!
 Aos poucos ia controlando suas ações. Abriu de novo os olhos, e do ponto de vista lateral, já que sua cabeça foi virada de lado, viu um homem de paletó em pé ao seu lado.
 Com dificuldade, virou o corpo todo para cima, e agora viu não um homem, mas dois. O outro estava aos seus pés, de braços cruzados.
 Ergueu a cabeça, mas a sensação era que pesava toneladas. Fora a dor excruciante martelando suas têmporas. Tentou falar, mas a boca estava seca e com um desagradável gosto de bílis.
 - A bela adormecida acordou - disse o homem de braços cruzados.
 - Neves, larga suas piadinhas e vem me ajudar. Vamos bota-lo para sentar na cama. -disse outra voz, a do homem de paletó.
 Mãos grandes e pesadas levantaram-no como se fosse uma pena. Suas pernas ergueram e baixaram; agora sua visão era ampla. Mesmo com a cabeça girando, o enjoo, viu que estava em um quarto.
Ressaca... O que faz com uma pessoa!
 O quarto era espaçoso. Ele estava sentado numa cama de casal, e o lençol parecia amassado. Era um lençol azul salpicado por pontinhos pretos. Ou vermelho escuro. Ele não soube distinguir que cor era.
 Agora os dois homens altos o fitavam, quietos, enquanto ele continuava sentado na beira da cama. À sua direita, um grande espelho duplicava o tamanho do cômodo. Ele se viu refletido, mas não se reconheceu. Viu um homem magro, descabelado, só de cueca. Tinha manchas roxas no pescoço e marcas de mordida no ombro. Era um sujeito indefeso, e com uma cara amarrotada de tanto dormir.
(- Oi, tá sozinho? Quer beber comigo?)
Aquela voz retornou, mas não foram os homens que a disseram. Era um tom suave, arrastado, rouco, romântico...
 Agora era a voz de um dos homens. Tonitruante, agressiva...
 - Sabe que dia é hoje?
Ressaca... A voz fazia eco dentro da cabeça!
 - Eu... eu não me lembro - disse o homem pálido, magro e marcado.
 O homem virou-se para o outro que vestia paletó e disse:
  - Madureira, o cara tá dormindo ainda!
 - Deixa comigo, Neves - disse o Inspetor Madureira. Tirou de dentro do bolso do seu amarrotado paletó uma caderneta, abriu-a e procurou sua caneta. - Devolva minha caneta, Neves!
 - Não peguei caneta nenhuma!
 - E essa no bolso da sua camisa?
 Neves tirou-a do bolso. Na esferográfica havia um papel com um nome escrito: Madureira.
 - Meu Deus - disse Neves, rindo, quando devolveu a caneta ao verdadeiro dono. - Como veio parar aqui?
 O rapaz, ainda tonto e com dor de cabeça, disse:
 - O que está acontecendo?
 O Inspetor Madureira levantou os olhos acima dos seus óculos de leitura e disse:
 - Então não se lembra de nada mesmo?
 - O que tenho que me lembrar? - perguntou o rapaz, que olhava de um lado ao outro. Viu uma janela aberta, onde vinha a luz do sol. - Onde estou? Que lugar é esse?
  - O que faz a bebida - disse Neves, sentando ao lado do rapaz.
 Pelo jeito dos dois homens, o rapaz não oferecia nenhum perigo. O que estranhava é que não se lembrava de nada... Neves repetiu. Sua voz era persuasiva e amigável:
 - Sabe que dia é hoje?
 O rapaz, aparvalhado, respondeu:
 - Não... desculpe, minha cabeça tá explodindo, tô com medo de vomitar novamente...
 Neves deu um tapinha no braço arranhado do rapaz e comentou, mais para si mesmo que para os outros no quarto:
 - Não me admira... Já tive uma dessas. É de arrebentar qualquer um. Derruba geral!
 - Podem me explicar o que tá havendo? - O rapaz disse, nervoso. Pressentiu que a simpatia do homem ao seu lado era uma farsa.
 Estou sonhando, é isso - pensou o rapaz. - Estou na minha cama dormindo, e sonho com esse quarto estranho, e esses dois homens mais estranhos ainda... quero acordar, vou acordar...
 Acho que se enganou... tudo parecia tão real, tão... sólido!
Ressaca... gosta de pregar peças.
 - Claudionor Fonseca - disse o Inspetor Madureira enquanto lia sua caderneta. - É você?
 Aos poucos, o rapaz ia voltando à realidade...
 - Sim... sou eu - disse Claudionor.
 - Sabe que dia é hoje? - Perguntou o Sargento Neves.
 - Já falei que não me lembro... lembro... - disse Claudionor, mas sua memória afetada pela ressaca aos poucos ia despertando. Dia... dia de festa... dia de comemorar... fantasmas flutuando acima da areia...
Ressaca...
 Centenas de champanhes sendo estouradas... rolhas caindo aos seus pés descalços... As ondas batendo na areia... A espuma branca dentro da noite molhando seus tornozelos...
(- Uma bebida, amor?)
 Uma voz suave e rouca. Uma voz romântica. Uma voz engolida pela multidão...
 Pessoas de branco... Palcos armados pela orla... Rituais de umbanda oferecendo dádivas a Iemanjá...
(- Vem comigo, me dê a mão, vamos dançar...)
 Mesmo sentado na cama, aquela voz o convidava. E mãos quentes seguraram nas suas... pisou na areia fria, desviou de pessoas que pulavam e se abraçavam...
Ressaca... veio como um flash de uma antiga máquina fotográfica...
 - Hoje é dia primeiro de janeiro - disse Claudionor, automaticamente.
 Sim, se não dormiu mais, era dia 01 de janeiro. E veio a lembrança...
 Praia de Copacabana. Mais de um milhão de pessoas nas areias da praia. Contagem regressiva... Show de fogos...
 Claudionor foi sozinho para a praia. Era um solitário por natureza. Largou seus pais em casa e avisou que ia ver a queima de fogos. Sua mãe tentou a todo custo que mudasse de ideia:
- Filho, ali é perigoso! Tem muita macumba e muita gente má!
 Claudionor, filho único de pais super protetores, tementes a Deus, foi criado longe da violência urbana, das tentações que o inimigo semeava nas noites... Mas tudo tem sua hora, e Claudionor deu seu grito de independência: Ia e ponto final! Estava cansado de escutar os seus colegas do trabalho comentando sobre as aventuras que tinham nas noites, das festas e das farras que faziam.
Ressaca...
 Claudionor queria ser igual a eles. Mas era chamado de "Estranho", porque nunca ia beber um chope ou paquerar uma menina. Diziam que o futuro dele era como obreiro de uma igreja, gritando aleluia, aleluia, Jesus Nosso Senhor é O Pai de Todos!
 Ia provar que era igual a eles. Nunca mais iam chama-lo de "Estranho"...
Ressaca... as coisas não são como imaginamos...
 Quando viu a multidão na praia, sentiu-se perdido naquele mar de gente. Nunca vira tanta cultura diferente, tantas mulheres juntas, tanta alegria concentrada num só lugar. Na sua casa, seus pais estariam sentados no sofá na frente da tevê, assistindo a maratona da igreja, com os pastores berrando sobre o pecado, e o da armadilha que o inimigo plantava nas areias de Copacabana...
Ressaca...
 O Sargento Neves cutucou o braço de Claudionor e disse:
 - Vai ficar aí olhando pro nada, rapaz? Vamos lá, conte o que houve.
 Claudionor, atarantado:
 - O que houve?
 - Tá de sacanagem, cara?
 O Inspetor Madureira cortou:
 - Dá um tempo pra ele acordar, Neves. Ele vai lembrar.
Ressaca... Lembrar o quê?
 O que vinha agora era a multidão na praia, os palcos com sambistas cantando, ele caminhando devagar até a água, e depois parado olhando o mar escuro, com as grandes ondas batendo, a espuma branca no seu tornozelo, ele segurando seu tênis e seus pés afundando na areia molhada e...
(- Quer beber comigo?)
 Aquela voz de novo. No meio da escuridão, entre a multidão sentada na areia e outras dançando, ela surgiu... De branco, cabelos ondulados, segurando uma garrafa de champanhe...
 Nunca ninguém chegou até ele e perguntou se queria beber. E mais, ele nunca botou uma gota de álcool na sua boca em seus 26 anos de vida! Mas era noite diferente, especial, e como ia negar... se agora sentia-se livre, fazendo parte desse mundo desconhecido...
Ressaca...
 - Só me lembro que me ofereceram champanhe... eu bebi... e veio mais bebidas... bastante... misturei tudo...
 - Seu pai nunca te ensinou quando criança pra nunca misturar bebida? - riu Neves. Ele tinha um senso de humor grotesco.
 - Meus pais são crentes - disse Claudionor. - Olhem, me expliquem... como vim parar nessa cama?
 - É isso que queremos saber - disse o Inspetor Madureira, ainda de pé. - Dê sua versão.
 - Versão de quê???
 O Inspetor Madureira olhou o Sargento Neves e disse:
 - Vamos leva-lo para a sala. Talvez assim refresque sua memória...
 Agarraram-no pelo braço e Claudionor andou ao lado de Neves. Não precisavam se preocupar, ele não ia para lugar nenhum, não sem antes se vestir...
 Abriram a porta e ele viu a sala em completa desordem. E no canto oposto, estava o corpo...
Ressaca...
Bebeu tudo que vinha na sua mão. Desconhecidos viravam os gargalos das garrafas no seu copo, e ele foi bebendo, tropeçando, uma hora caiu de cara na areia e gargalhou à milanesa... E a de branco ao seu lado, rindo também, acariciando seus cabelos, beijando-o, alisando suas pernas...
 Estava em ponto de bala! Não queria saber se tinha um milhão de pessoas ao seu redor; sua vontade era rasgar o vestido e possuí-la ali mesmo, ouvindo o barulho das ondas, da gritaria, da contagem regressiva...
(- Calma, sem pressa... vamos no meu apartamento... mas não é de graça...)
 Claudionor mentiu, disse que tinha bastante dinheiro para gastar! E durante a queima de fogos, entraram em ruas transversais até que saíram na Barata Ribeiro.
 Era um quarto e sala bem arrumadinho. Claudionor chegou no estágio que via as coisas duplicadas, triplicadas... E atrás dele, acariciando suas costas...
(- Primeiro a grana, meu bem...)
 Balançando o corpo de um lado para o outro, Claudionor disse:
 (- Que dinheiro?)
Ressaca... Depois disso, apenas flashes...
 Claudionor ficou paralisado quando viu aquele corpo deitado de bruços, nu, cercado por uma poça de sangue...
Ressaca... ( Sem grana, sem chupeta, neném...)
 Claudionor dobrou o corpo e vomitou. O Sargento Neves deu um salto, mas não conseguiu impedir que respingasse no seu sapato.
 Através dos olhos lacrimejantes, Claudionor não queria acreditar...
(agora quem dá as cartas sou eu! Tira a roupa!)
 O Inspetor Madureira anotava tudo na sua caderneta.
(Fora daqui, bofe escroto!)
 Claudionor caiu sentado em uma cadeira.
(Vem pra cá! )
(Vou te morder)
 Marcas de dentes no seu ombro...
(Vai aprender o que é ser macho!)
 Hematomas de tapas e socos pelo seu corpo...
 O Sargento Neves disse:
 - Qual foi o objeto que acertou na cabeça do traveco?
 Claudionor estava em estado de choque. Não foi ele que fez aquela monstruosidade, foi culpa da bebida, da...
Ressaca... Sempre soube que era um travesti, mas tudo era festa, era hora da sua independência, de...
Sair do armário. Não é assim que falam? E qual é a melhor maneira de contrariar seus pais opressores? Agindo contra tudo que eles acreditavam...
(Quer dinheiro? Toma seu dinheiro!)
 Claudionor viu o objeto caído ao lado do sofá, manchado de sangue e com tufos de cabelo. Um peso de papéis com desenhos de margaridas, que enfeitava a mesa...
(O sangue jorrou quando ele acertou a parte de trás da cabeça, na altura da nuca... enquanto corria para a porta...)
 E depois, ele rasgou o vestido, tirou suas roupas e...
(foi se deitar.)
Simples.
 - Juro que não sei o que fiz... - Claudionor disse, em prantos. - Nunca me meti em nenhuma confusão... essa então...
 O Inspetor Madureira decretou:
 - Pode até que seja isso, mas não é desculpa para o que aconteceu. Você matou uma pessoa.
 - Mesmo que tenha sido um traveco sem-vergonha - disse Neves.
 Claudionor tremia da cabeça aos pés. Não conseguiu tirar os olhos do corpo branco, salpicado de sangue.
 - Agora - disse Madureira, - vamos para a delegacia. Depois, você vai ter tempo para se defender.
 - Muito tempo - disse Neves, segurando o braço de Claudionor. - Que merda! Começou o ano com o pé esquerdo! Quem mandou beber?
 Claudionor foi conduzido para fora do apartamento. Ainda tinha enjoo e dor de cabeça, e tudo parecia um pesadelo. Só queria que tudo aquilo passasse para poder se defender. Mas primeiro, tinha que acabar aquela maldita ressaca.
 Seus pais avisaram... O inimigo escolhe o mais fraco para leva-lo à desgraça...
Ressaca.

Rogerio de C. Ribeiro






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