RESSACA
Ressaca...
Ondas de três metros que os surfistas adoram.
Ressaca...
Mas essas ondas não arrebentavam agora.
Ressaca...
O mar escuro se perdia na imensidão.
Ressaca...
Mas agora não havia nenhum mar por perto.
O estranho que ouvia o som, bem de longe, do barulho da água. Só que não batia
na areia como antes...
Antes
quando?
Nesse
momento, não tinha condições de dizer onde vira as ondas, com sua espuma branca
no meio da escuridão. Nesse instante, a única coisa que sabia era do seu corpo
parado em algum lugar. Um corpo inerte.
Ressaca...
Dentro da cabeça se alojava o verdadeiro mar em rebuliço. Em um estranho passe
de mágica, o mar revolto sacudiu seus miolos, desceu pela nuca, atravessou suas
costelas e se instalou definitivamente no seu estômago, causando reviravoltas
furiosas que instigaram sua goela.
Ressaca...
Que o quê? Do jeito que estava, nem conseguia abrir os olhos para ver onde
estava deitado.
Mas
pra que essa preocupação toda? Onde estava, onde quer que fosse o lugar,
acalmava o clamor que vinha das suas tripas, querendo ser jogadas fora, num
violento acesso de fúria.
Ressaca...
Não sabia que a dor emitia som. Agora sabia. Ouviu perfeitamente o martelar
dentro da sua cabeça, como um ferreiro da idade média batendo sua espada em
cima de uma bigorna.
(Não
faça isso... Por favor! Não!)
Essa
frase era repetida, feito ladainha, junto com o martelar na bigorna. De quem
era aquela voz?
(Vamos
beber... hoje, ninguém é de ninguém...)
Tentou
visualizar, mesmo de olhos trancados, a cena derivada desse diálogo. Apenas viu
as ondas batendo na areia, como se estivesse em...
Ressaca...
Vultos sem rostos, vestindo branco, flutuavam em círculos em câmera lenta
diante das suas órbitas. Era um balé de formas indistintas, pairando acima da
areia, fantasmas em forma de cruz, com imensas e etéreas asas que quando
agitavam, explodiam e espalhavam poeiras multicoloridas...
Ressaca...
O sonho se misturou com a realidade, ou foi o inverso?
Podia ouvir mais vozes; vozes essas mais altas e claras. Uma até ecoou dentro
da sua cabeça:
- Como conseguiu esse estrago todo?
- Mal dá para pisar...
- Cuidado com o sapato!
Ressaca...
Já estava na hora de abrir os olhos. Não podia ficar naquela escuridão para
sempre. Mas cadê coragem para esse esforço hercúleo? As pálpebras pesavam
toneladas, a vontade de dormir era maior porque a...
Ressaca...Não
era o mar da praia, nem das ondas batendo na areia. Era nele mesmo.
(-
Venha aqui, benzinho, mais um gole...)
De novo aquela voz!
(- Hoje
ninguém é de ninguém...)
Vagas lembranças.
Entreabriu
os olhos. Não podia ficar mais ali parado, sem saber onde estava. Focalizou,
atrás de um leve e tênue véu, o teto pintado de branco. Estava no hospital?
Não, não era um hospital. Uma lâmpada fluorescente estava apagada. Mas havia um
pouco de luz iluminando o bocal da lâmpada.
Fechou
e abriu os olhos várias vezes. O véu dissipou, e a luz aumentou de intensidade.
Uma dor lancinante explodiu no meio dos seus olhos. E a ânsia de vômito veio
com voracidade. Não conseguiu segurar; tudo que havia no estômago foi expelido
para cima, sufocando-o.
- Ele acordou! - Ouviu a voz. - E tá botando as tripas para fora!
Sentiu que o seguraram nos ombros e então foi virado para o lado. Um cheiro
azedo, de bebida com sangue, entranhou nas suas narinas.
- Cuidado, senão vamos perder o cara!
Perder? Como assim? Se nem conseguia mexer os membros... como iam perder...
Ressaca...
Agora
tinha ideia do que acontecia com ele. Era a primeira vez que isso acontecia,
mas de tanto ouvir os outros falando, agora estava tendo uma tremenda ressaca!
Aos
poucos ia controlando suas ações. Abriu de novo os olhos, e do ponto de vista
lateral, já que sua cabeça foi virada de lado, viu um homem de paletó em pé ao
seu lado.
Com
dificuldade, virou o corpo todo para cima, e agora viu não um homem, mas dois.
O outro estava aos seus pés, de braços cruzados.
Ergueu
a cabeça, mas a sensação era que pesava toneladas. Fora a dor excruciante
martelando suas têmporas. Tentou falar, mas a boca estava seca e com um
desagradável gosto de bílis.
-
A bela adormecida acordou - disse o homem de braços cruzados.
-
Neves, larga suas piadinhas e vem me ajudar. Vamos bota-lo para sentar na cama.
-disse outra voz, a do homem de paletó.
Mãos
grandes e pesadas levantaram-no como se fosse uma pena. Suas pernas ergueram e
baixaram; agora sua visão era ampla. Mesmo com a cabeça girando, o enjoo, viu
que estava em um quarto.
Ressaca...
O que faz com uma pessoa!
O
quarto era espaçoso. Ele estava sentado numa cama de casal, e o lençol parecia
amassado. Era um lençol azul salpicado por pontinhos pretos. Ou vermelho
escuro. Ele não soube distinguir que cor era.
Agora
os dois homens altos o fitavam, quietos, enquanto ele continuava sentado na
beira da cama. À sua direita, um grande espelho duplicava o tamanho do cômodo.
Ele se viu refletido, mas não se reconheceu. Viu um homem magro, descabelado,
só de cueca. Tinha manchas roxas no pescoço e marcas de mordida no ombro. Era
um sujeito indefeso, e com uma cara amarrotada de tanto dormir.
(-
Oi, tá sozinho? Quer beber comigo?)
Aquela
voz retornou, mas não foram os homens que a disseram. Era um tom suave,
arrastado, rouco, romântico...
Agora
era a voz de um dos homens. Tonitruante, agressiva...
-
Sabe que dia é hoje?
Ressaca...
A voz fazia eco dentro da cabeça!
-
Eu... eu não me lembro - disse o homem pálido, magro e marcado.
O
homem virou-se para o outro que vestia paletó e disse:
- Madureira, o cara tá dormindo ainda!
-
Deixa comigo, Neves - disse o Inspetor Madureira. Tirou de dentro do bolso do
seu amarrotado paletó uma caderneta, abriu-a e procurou sua caneta. - Devolva
minha caneta, Neves!
-
Não peguei caneta nenhuma!
-
E essa no bolso da sua camisa?
Neves
tirou-a do bolso. Na esferográfica havia um papel com um nome escrito:
Madureira.
-
Meu Deus - disse Neves, rindo, quando devolveu a caneta ao verdadeiro dono. -
Como veio parar aqui?
O
rapaz, ainda tonto e com dor de cabeça, disse:
-
O que está acontecendo?
O
Inspetor Madureira levantou os olhos acima dos seus óculos de leitura e disse:
-
Então não se lembra de nada mesmo?
-
O que tenho que me lembrar? - perguntou o rapaz, que olhava de um lado ao
outro. Viu uma janela aberta, onde vinha a luz do sol. - Onde estou? Que lugar
é esse?
- O que faz a bebida - disse Neves, sentando ao lado do rapaz.
Pelo
jeito dos dois homens, o rapaz não oferecia nenhum perigo. O que estranhava é
que não se lembrava de nada... Neves repetiu. Sua voz era persuasiva e amigável:
-
Sabe que dia é hoje?
O
rapaz, aparvalhado, respondeu:
-
Não... desculpe, minha cabeça tá explodindo, tô com medo de vomitar novamente...
Neves
deu um tapinha no braço arranhado do rapaz e comentou, mais para si mesmo que
para os outros no quarto:
-
Não me admira... Já tive uma dessas. É de arrebentar qualquer um. Derruba geral!
-
Podem me explicar o que tá havendo? - O rapaz disse, nervoso. Pressentiu que a
simpatia do homem ao seu lado era uma farsa.
Estou
sonhando, é isso - pensou o rapaz. - Estou na minha cama dormindo, e sonho com
esse quarto estranho, e esses dois homens mais estranhos ainda... quero
acordar, vou acordar...
Acho
que se enganou... tudo parecia tão real, tão... sólido!
Ressaca...
gosta de pregar peças.
-
Claudionor Fonseca - disse o Inspetor Madureira enquanto lia sua caderneta. - É
você?
Aos
poucos, o rapaz ia voltando à realidade...
-
Sim... sou eu - disse Claudionor.
-
Sabe que dia é hoje? - Perguntou o Sargento Neves.
-
Já falei que não me lembro... lembro... - disse Claudionor, mas sua memória
afetada pela ressaca aos poucos ia despertando. Dia... dia de festa... dia de
comemorar... fantasmas flutuando acima da areia...
Ressaca...
Centenas
de champanhes sendo estouradas... rolhas caindo aos seus pés descalços... As
ondas batendo na areia... A espuma branca dentro da noite molhando seus
tornozelos...
(- Uma
bebida, amor?)
Uma
voz suave e rouca. Uma voz romântica. Uma voz engolida pela multidão...
Pessoas
de branco... Palcos armados pela orla... Rituais de umbanda oferecendo dádivas
a Iemanjá...
(- Vem
comigo, me dê a mão, vamos dançar...)
Mesmo
sentado na cama, aquela voz o convidava. E mãos quentes seguraram nas suas...
pisou na areia fria, desviou de pessoas que pulavam e se abraçavam...
Ressaca...
veio como um flash de uma antiga máquina fotográfica...
-
Hoje é dia primeiro de janeiro - disse Claudionor, automaticamente.
Sim,
se não dormiu mais, era dia 01 de janeiro. E veio a lembrança...
Praia
de Copacabana. Mais de um milhão de pessoas nas areias da praia. Contagem
regressiva... Show de fogos...
Claudionor
foi sozinho para a praia. Era um solitário por natureza. Largou seus pais em
casa e avisou que ia ver a queima de fogos. Sua mãe tentou a todo custo que mudasse
de ideia:
-
Filho, ali é perigoso! Tem muita macumba e muita gente má!
Claudionor,
filho único de pais super protetores, tementes a Deus, foi criado longe da
violência urbana, das tentações que o inimigo semeava nas noites... Mas
tudo tem sua hora, e Claudionor deu seu grito de independência: Ia e ponto
final! Estava cansado de escutar os seus colegas do trabalho comentando sobre
as aventuras que tinham nas noites, das festas e das farras que faziam.
Ressaca...
Claudionor
queria ser igual a eles. Mas era chamado de "Estranho", porque nunca
ia beber um chope ou paquerar uma menina. Diziam que o futuro dele era como
obreiro de uma igreja, gritando aleluia, aleluia, Jesus Nosso Senhor é O Pai de
Todos!
Ia
provar que era igual a eles. Nunca mais iam chama-lo de "Estranho"...
Ressaca...
as coisas não são como imaginamos...
Quando
viu a multidão na praia, sentiu-se perdido naquele mar de gente. Nunca vira
tanta cultura diferente, tantas mulheres juntas, tanta alegria concentrada num
só lugar. Na sua casa, seus pais estariam sentados no sofá na frente da tevê,
assistindo a maratona da igreja, com os pastores berrando sobre o pecado, e o
da armadilha que o inimigo plantava nas areias de Copacabana...
Ressaca...
O
Sargento Neves cutucou o braço de Claudionor e disse:
-
Vai ficar aí olhando pro nada, rapaz? Vamos lá, conte o que houve.
Claudionor,
atarantado:
-
O que houve?
-
Tá de sacanagem, cara?
O
Inspetor Madureira cortou:
-
Dá um tempo pra ele acordar, Neves. Ele vai lembrar.
Ressaca...
Lembrar o quê?
O
que vinha agora era a multidão na praia, os palcos com sambistas cantando, ele
caminhando devagar até a água, e depois parado olhando o mar escuro, com as
grandes ondas batendo, a espuma branca no seu tornozelo, ele segurando seu
tênis e seus pés afundando na areia molhada e...
(- Quer
beber comigo?)
Aquela
voz de novo. No meio da escuridão, entre a multidão sentada na areia e outras
dançando, ela surgiu... De branco, cabelos ondulados, segurando uma garrafa de
champanhe...
Nunca
ninguém chegou até ele e perguntou se queria beber. E mais, ele nunca botou uma
gota de álcool na sua boca em seus 26 anos de vida! Mas era noite diferente,
especial, e como ia negar... se agora sentia-se livre, fazendo parte desse
mundo desconhecido...
Ressaca...
-
Só me lembro que me ofereceram champanhe... eu bebi... e veio mais bebidas...
bastante... misturei tudo...
-
Seu pai nunca te ensinou quando criança pra nunca misturar bebida? - riu Neves.
Ele tinha um senso de humor grotesco.
-
Meus pais são crentes - disse Claudionor. - Olhem, me expliquem... como vim
parar nessa cama?
-
É isso que queremos saber - disse o Inspetor Madureira, ainda de pé. - Dê sua
versão.
-
Versão de quê???
O
Inspetor Madureira olhou o Sargento Neves e disse:
-
Vamos leva-lo para a sala. Talvez assim refresque sua memória...
Agarraram-no
pelo braço e Claudionor andou ao lado de Neves. Não precisavam se preocupar,
ele não ia para lugar nenhum, não sem antes se vestir...
Abriram
a porta e ele viu a sala em completa desordem. E no canto oposto, estava o
corpo...
Ressaca...
Bebeu
tudo que vinha na sua mão. Desconhecidos viravam os gargalos das garrafas no
seu copo, e ele foi bebendo, tropeçando, uma hora caiu de cara na areia e
gargalhou à milanesa... E a de branco ao seu lado, rindo também, acariciando
seus cabelos, beijando-o, alisando suas pernas...
Estava
em ponto de bala! Não queria saber se tinha um milhão de pessoas ao seu redor;
sua vontade era rasgar o vestido e possuí-la ali mesmo, ouvindo o barulho das
ondas, da gritaria, da contagem regressiva...
(- Calma,
sem pressa... vamos no meu apartamento... mas não é de graça...)
Claudionor
mentiu, disse que tinha bastante dinheiro para gastar! E durante a queima de
fogos, entraram em ruas transversais até que saíram na Barata Ribeiro.
Era
um quarto e sala bem arrumadinho. Claudionor chegou no estágio que via as
coisas duplicadas, triplicadas... E atrás dele, acariciando suas costas...
(- Primeiro
a grana, meu bem...)
Balançando
o corpo de um lado para o outro, Claudionor disse:
(- Que
dinheiro?)
Ressaca...
Depois disso, apenas flashes...
Claudionor
ficou paralisado quando viu aquele corpo deitado de bruços, nu, cercado por uma
poça de sangue...
Ressaca...
( Sem
grana, sem chupeta, neném...)
Claudionor
dobrou o corpo e vomitou. O Sargento Neves deu um salto, mas não conseguiu
impedir que respingasse no seu sapato.
Através
dos olhos lacrimejantes, Claudionor não queria acreditar...
(agora
quem dá as cartas sou eu! Tira a roupa!)
O
Inspetor Madureira anotava tudo na sua caderneta.
(Fora
daqui, bofe escroto!)
Claudionor
caiu sentado em uma cadeira.
(Vem
pra cá! )
(Vou
te morder)
Marcas
de dentes no seu ombro...
(Vai
aprender o que é ser macho!)
Hematomas
de tapas e socos pelo seu corpo...
O
Sargento Neves disse:
-
Qual foi o objeto que acertou na cabeça do traveco?
Claudionor
estava em estado de choque. Não foi ele que fez aquela monstruosidade, foi
culpa da bebida, da...
Ressaca...
Sempre soube que era um travesti, mas tudo era festa, era hora da sua
independência, de...
Sair
do armário. Não é assim que falam? E qual é a melhor maneira de contrariar seus
pais opressores? Agindo contra tudo que eles acreditavam...
(Quer
dinheiro? Toma seu dinheiro!)
Claudionor
viu o objeto caído ao lado do sofá, manchado de sangue e com tufos de cabelo.
Um peso de papéis com desenhos de margaridas, que enfeitava a mesa...
(O
sangue jorrou quando ele acertou a parte de trás da cabeça, na altura da
nuca... enquanto corria para a porta...)
E
depois, ele rasgou o vestido, tirou suas roupas e...
(foi
se deitar.)
Simples.
-
Juro que não sei o que fiz... - Claudionor disse, em prantos. - Nunca me meti
em nenhuma confusão... essa então...
O
Inspetor Madureira decretou:
-
Pode até que seja isso, mas não é desculpa para o que aconteceu. Você matou uma
pessoa.
-
Mesmo que tenha sido um traveco sem-vergonha - disse Neves.
Claudionor
tremia da cabeça aos pés. Não conseguiu tirar os olhos do corpo branco,
salpicado de sangue.
-
Agora - disse Madureira, - vamos para a delegacia. Depois, você vai ter tempo
para se defender.
-
Muito tempo - disse Neves, segurando o braço de Claudionor. - Que merda!
Começou o ano com o pé esquerdo! Quem mandou beber?
Claudionor
foi conduzido para fora do apartamento. Ainda tinha enjoo e dor de cabeça, e
tudo parecia um pesadelo. Só queria que tudo aquilo passasse para poder se
defender. Mas primeiro, tinha que acabar aquela maldita ressaca.
Seus
pais avisaram... O inimigo escolhe o mais fraco para leva-lo à desgraça...
Ressaca.
Rogerio
de C. Ribeiro
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