Translate

quarta-feira, 30 de julho de 2014

DESTINO; INCERTO CAPÍTULO 3

No capítulo anterior: Em cima da pia, encontrei algo que me assustou: Um envelope com um adesivo escrito "Da Boa, CV". Era um sacolé de cocaína.
Foi a gota d'água. Podia permitir que Elaine me humilhasse, me xingasse, me fizesse seu escravo. Mas agora existia minha filha, e ela precisava de mim. Escutei barulho de gemidos vindo do nosso quarto. Quase que derrubo a porta pelo pontapé que dei.
E lá vi Elaine, deitada na nossa cama, nua , com um dos caras que frequentavam nossa casa.
E quando ela me viu, simplesmente riu. Riu de gargalhar.

No ônibus que pegara para Itarantitim, Júlio concluiu que o cerco fechava contra ele. Aproveitou que Roberta pegara no sono novamente para escrever. As letras saíam em garranchos por causa do movimento do ônibus, mas era necessário esclarecer, para quem lesse, o verdadeiro motivo daquela fuga. E agora mais que nunca, já que foi taxado de bandido. Coisa que nunca fora na vida.
Seu único erro foi ter comprado a pistola. Se não fosse por isso, nada disso estaria acontecendo.
Mas também não ia ver mais sua filha. E foi por isso que agiu daquela maneira. Foi um momento de desespero, mas ele não se arrependia de nada.
Escrevia com uma caneta Bic em uma caderneta, apoiando no braço da poltrona.
O ônibus diminuiu de velocidade. Júlio, que sentava na penúltima cadeira, espichou o pescoço e olhou para a frente.
O ônibus parou. O motorista levantou-se do seu assento. Júlio olhou a estrada pela janela. Viu carros da polícia rodoviária.
Suou frio. Ajeitou a cabeça da sua filha para o banco, e sentou-se reto, com as costas eretas.
Deixou sua caderneta com a caneta em cima das bagagens de mão que descansavam ao lado dos pés, e levantou a camisa. Pôs a mão no cabo da pistola.
Não permitiria que levassem sua filha tão fácil assim. Puxou a arma e colocou-a no colo.
A porta do ônibus abriu. E dois policiais rodoviários entraram.

Querem saber o que fiz quando flagrei minha mulher na cama com outro homem?
Nada. Simplesmente, nada.
Fechei a porta e fui para a sala como se fosse um robô movido a controle remoto. Sentei-me ao lado da minha filha e fiquei olhando para a tela da tevê, mas não vendo nada o que passava no momento.
Eu só pensava. Pensava na minha vida, e o que ela se transformou depois que conheci Elaine.
Quando era menino, nunca fui de ter uma turma de amigos. Nem era popular na escola. Na maior parte do tempo, ficava sentado na minha carteira, com a cara enfiada nos cadernos e livros, sempre com um lápis bem apontado e uma borracha no lado. Enquanto os outros alunos faziam badernas mesmo nas aulas, eu ficava quieto. Já com seis, sete anos tinha um objetivo na minha vida: Crescer, ter um bom emprego e cuidar da minha mãe.
Como fui uma criança magra, que usava óculos de grau, era também a diversão dos valentões. Nos intervalos das aulas, era uma constante ser cercado pelos grandalhões que exercitavam seus punhos em mim. Sofria essas violências constantes, e nunca nenhum professor ou monitor veio ao meu auxílio. Mais tarde compreendi que sou o que muitos falam: um insignificante. Invisível para a maioria das pessoas.
Escrevi esses parágrafos para que alguém, caso leia minha caderneta de anotações, possa entender como sou de verdade. Meus sonhos de criança evaporaram-se com o tempo, primeiro quando larguei a faculdade de direito para trabalhar em tempo integral; mamãe começou a adoecer e diminuiu seu ritmo de trabalho. Depois, quando eu chegava em casa muito tarde, e com medo de ser assaltado e que me acontecesse algo, comprei uma pistola de um primo meu, que vou omitir seu nome para não complica-lo depois do que aconteceu. Mamãe era contra a arma, e me fez jurar que nunca andaria com ela na rua. Violência gera violência, dizia. De tanto insistir, guardei-a na minha gaveta da cômoda, e esqueci dela por um tempo.
Quando conheci Elaine, achava que ela seria mais um amor platônico na minha vida. Mas quando ela anunciou aos nossos conhecidos que éramos mais que amigos, achei que Deus resolvera ser generoso comigo. Depois que mamãe morreu, fomos morar na minha casa.
E o resto já escrevi.
Mas como dizia antes, esperei que o cara que estava fodendo minha mulher saísse para ter uma conversa definitiva com ela.
O cara passou por mim, e tenho certeza que havia um sorriso naquela boca de lábios grossos. Elaine veio em seguida, vestida com uma camisola. Pedi que Roberta fosse ao quarto dela, para que o papai pudesse conversar com a mamãe.
Quando ficamos a sós, Elaine explodiu:
- Agora o corno quer começar uma cena. O marido traído teve sua honra arranhada!
- Isso não se faz, Elaine. Transar na nossa casa, e com Robertinha aqui na sala.
- Ah, ela já está acostumada.
-Acostumada? Como assim?
Elaine pegou um cigarro e acendeu.
- Ah, Júlio, larga de ser inocente. Por isso que é o corno do bairro, e nunca desconfiou. Então você acha que me satisfaz na cama? Que tenho centenas de orgasmos quando você me enfia esse pauzinho de merda? Gosto é de homem de verdade, que me trata como fêmea na cama. Esses sim, me fazem chegar até a lua...
- Sua devassa. Quero que saia da minha casa. Faça suas malas e suma daqui.
- Já estou cansada mesmo dessa vidinha de merda que me arrumou. Sou livre, Júlio, e quero minha liberdade sim. Posso até sair daqui, mas vou levar Roberta.
- Ela fica.
- Ah, quer que a menina fique? E pra quê?
- Não vou permitir que leve minha filha.
- De onde tirou essa coragem? Sempre foi, e ainda é um cagão, um fraco.
- Não vou permitir que leve minha filha - repeti.
- Júlio, tenho pena de você. Então nunca percebeu, nem desconfiou?
- De quê?
Elaine apagou o cigarro no cinzeiro.
- Roberta nunca foi sua filha. Foi por isso que eu queria abortar. Roberta é filha de algum amante que arrumei, debaixo do seu nariz, nesses anos todos que estamos juntos. Roberta é filha de uma trepada bem dada que tive. Só não posso te dizer quem é o pai, porque aí você vai fazer uma pergunta difícil.
- Está mentindo. Fala assim para me afetar...
- Afetar o que. Vamos fazer um teste de DNA. Dessa forma vai se convencer que você não tem nenhum direito sobre ela.
- Roberta é minha filha.
- Bem, só se for de consideração. Porque biológico...
Soltei um tapa que estalou na face dela. Elaine passou a mão em cima da bochecha, que tinha marcas dos meus dedos, olhou-me furiosa e ameaçou:
- Seu idiota, corno filho da puta. Presta atenção, nunca mais verá a minha filha. Vou botar a boca no mundo dizendo que sou mãe solteira, que tive uma produção independente. Vou ao juiz pra pedir o exame de DNA. E quando sair o resultado... Pode apagar na sua agenda que um dia conheceu uma criancinha inocente que assiste a mamãe dela fodendo com homens gostosos, porque farei de tudo pra que você sofra, morra de saudades dela, pode apostar tudo que farei...
A empurrei, e Elaine desabou em cima do sofá. Fui até o quarto que dormíamos. O lençol na cama estava amarrotado, e os travesseiros tinham caído debaixo da cama. Fui até a cômoda, abri a gaveta e peguei a pistola que havia comprado séculos atrás. Quando voltei para a sala, Elaine estava sentada, com as pernas cruzadas, e debaixo da camisola vi que não usava calcinhas. Apontei a arma. Ela fumava outro cigarro. Quando me viu armado, riu. Riu alto e disse:
- Quer mostrar sua masculinidade me apontando essa arma? Vai tomar uma ducha fria, se contente que estou com você. Se não sou eu, você ia ficar na bronha até hoje, pelo menos sou boazinha e te deixo me comer...
- Sua puta...
- Sem elogios - ela tragou fundo o cigarro. - Me poupe. Sua honra já foi pro escanteio a muito tempo...
Apertei o gatilho. O tiro atingiu o peito dela. Ela caiu para trás, e o cigarro voou da sua mão para perto da porta.
Ouvi Roberta me chamando. Não podia deixa-la ver essa cena. Pus a arma na minha calça, peguei Elaine e levei-a ao nosso quarto. Ela continuava imóvel, e um filete de sangue escorria de um furinho chamuscado da sua camisola. Sem pensar muito, peguei duas bagagens de mão, enfiei algumas roupas dentro, sai e fechei a porta do quarto. Fui ao quarto de Roberta e enchi a outra bagagem com roupas dela. Peguei a certidão de nascimento e meus documentos, peguei-a pela mão e saí.
Na rua, não havia nenhum conhecido perto. Chamei um táxi que vinha passando e disse ao motorista:
- Rodoviária, por favor.
E teve meu início da fuga em ônibus, até a hora que...

O motorista conversava com os dois policiais, que olhavam para os passageiros sentados. Júlio continuou em silêncio, segurando a pistola. Roberta ainda dormia. Ele encolheu-se na poltrona, e lançava olhares para a estrada. Não passava nenhum carro no sentido contrário. Ficou encolhido, escondendo a pistola encobrindo com a mão.
Dentro dele sentiu seu estomago revirando de pavor. Não do que pudesse acontecer a ele, mas pela sua filha. Roberta dormia o sono dos anjos e puros, indiferente ao que acontecia naquele momento.
Os dois policiais terminaram de falar com o motorista, deram uma olhada para o interior do ônibus e para os passageiros e desceram. O motorista subiu o degrau que dava no seu compartilhamento e avisou:
- Teve um acidente com dois caminhões a quinhentos metros daqui. Vamos ter que esperar removerem, e isso vai levar tempo.
Alguns passageiros desceram do ônibus, mas Júlio continuou sentado, sentindo escorrer pelo seu rosto um rastro de suor.
Roberta ainda dormia. Isso era bom para ela. Ele estava tendo uma estranha sensação de que aquilo que fazia não ia dar certo. Lutou contra essa ideia que teimava dentro da sua cabeça. Elaine conseguiu destruir muita coisa da vida dele, inclusive seu caráter. Pela primeira vez, estava agindo com hombridade. Lutava para proteger sua filha das mãos daquela desgraçada, que a essas horas devia estar bem enterrada.
Só de se lembrar que matou uma pessoa, logo ele que nunca matara nem uma formiga, sentiu ânsias de vômito, mas controlou-se.
Colocou a pistola no cós da calça, ajeitou a camisa em cima para esconde-la, e pegou a caderneta e a caneta para escrever. Queria completar as anotações antes que sua filha acordasse. Porque ela, acordada, ia reclamar do calor que os torrava dentro daquela lataria velha, e ele teria que se dedicar só a ela, ignorando tudo que estivesse fazendo.

-Duas passagens para São Paulo, por favor - Pedi para a atendente da Viação Cometa, na Rodoviária Novo Rio. Eram sete e meia da noite, e só consegui passagem para oito horas.
Paguei pelas passagens pelo cartão de crédito, e quando ia ao setor de embarque, lembrei-me que era arriscado usar cartão na jornada que viria em frente. Podia ser rastreado. Roberta choramingava ao meu lado, chamando pela mãe. Tive vontade de dizer: sua mãe morreu, meu bem, a malvada da sua mãe teve um fim que mereceu. Claro que não falei isso, o que disse foi:
- Mamãe viajou antes da gente, e está nos esperando na casa de praia que papai comprou - Detestei aquela mentira sem sentido, mas Roberta com cinco anos acreditava em tudo que papai e mamãe falavam.
Ela me olhou com aqueles olhinhos inocentes e disse:
- É mesmo, papai? Vamos para a praia? Posso usar meu biquini novo?
Menti de novo.
- Está aqui guardado na sua mala, meu amor.
Fomos até um caixa eletrônico, e saquei o limite do dia, mil reais. Escondi o dinheiro dentro dos bolsos da minha calça jeans, e quando os colocava, senti o cabo da pistola; gelei.
Enquanto aguardava o ônibus, eu observava pelos cantos dos olhos a multidão que ia e vinha pela rodoviária. Senti-me um criminoso, e analisando bem, não deixo de ser, já que matei a mulher que amo. A palavra amo é no presente, e não é porque ela me traiu descaradamente, que me humilhou, me fez sentir o pior verme do planeta, que deixei de ama-la de uma hora para outra. Não. Estou arrependido do que fiz, mas estaria mais arrependido se ela me levasse Roberta para longe de mim. Aquela ameaça que ela não é minha filha me desnorteou.
Só tenho uma alternativa. Ou me entrego para a polícia e pago pelo assassinato que cometi, ou fujo para bem longe com minha filha. E a segunda hipótese é a mais viável no momento.
Dois policiais estavam parados em frente de uma lanchonete, e tive certeza que me olhavam. Sabiam que eu era um assassino. Fingi que lia um folheto evangélico, que achei no chão, mas meu coração acelerou a ponto de ter um enfarte. Disfarcei e olhei em direção da lanchonete. Os dois policiais bebiam café e conversavam com a caixa, uma morena de uns 25 anos. Os três riam de algo que falavam, e senti meu coração voltando a bater no seu ritmo normal. Roberta me puxou pelo braço e pediu:
- Pai, to com fome.
- Papai compra...
-Pai - ela começou a choramingar - quero biscoito de chocolate.
O único lugar que vi onde podia comprar o biscoito para ela era na lanchonete, onde os policiais conversavam com a caixa e agora com uma atendente gorda.
Olhei o relógio e vi que faltava dez minutos para o ônibus sair. Segurei a mãozinha de Roberta e fomos na lanchonete. Pedi que ela escolhesse o biscoito, e ela apontou para um negresco. Pedi licença para um dos policiais que continuavam ali, e paguei pelo biscoito e um guaravita.
Enquanto pegava o meu pedido, senti minha nuca eriçar. Sabia que os policiais me olhavam, mas me convenci que ainda não sabiam do crime. Quando peguei o guaravita e o canudinho para Roberta, ouvi ela falando. Gelei de novo. Ela falava com os policiais:
- Eu e papai vamos para a praia. Mamãe está esperando a gente lá...
Sorri e vi os policiais concordando com minha filha. Um deles disse:
- Você tem que ser uma boa filha para os seus pais.
- Eu sou boa com eles. Mamãe que é má às vezes.
O policial me olhou e disse, sorrindo:
- Mesmo? Muito má?
- Bastante - disse Roberta com firmeza. - Ela me bate.
Tive que intervir:
- Sua mãe não é tão má assim, princesa. É que ela fica nervosa às vezes e aí briga quando você faz bagunça...
- Não, papai, ela me bate mesmo quando estou vendo desenho.
- Mamãe tá doente - menti descaradamente. - Vamos logo, senão perdemos o ônibus.
Mas o policial falou:
- E seu pai, também bate em você?
Olhei para o policial, um negro alto e forte, e tentei responder, mas Roberta falou por mim:
- Papai nunca me bateu - disse indignada. - Papai faz tudo que quero. Eu amo papai!
O policial riu. Deu as costas para a gente e voltou a conversar com seu colega e com a caixa da lanchonete. Saí as pressas para o embarque.
Ainda tive outro teste de nervos antes de embarcar. Ficamos na fila para entrar no ônibus da Viação Cometa. No momento que dei as passagens, peguei minha identidade e a certidão de nascimento de Roberta. O motorista, que pelo crachá vi que se chamava Egídio, olhava da identidade para mim, e olhava minha filha e a certidão de nascimento. Virou a folha, leu novamente, olhou minha foto, as passagens, tudo isso em ritmo lento. Minhas pernas fraquejavam. Roberta bebia seu guaravita pelo canudinho e mastigava um biscoito. Achei que esse momento o motorista Egídio ia me olhar novamente e gritaria: Esse é o assassino que raptou a menina, ela não é filha dele, essa certidão é falsa, chamem a polícia, prendam esse monstro!
Ao que Roberta levantou a cabeça para mim e disse:
-Papai, quero fazer xixi.
Egídio, o motorista, me entregou a identidade e a certidão e disse:
- Boa viagem para vocês.
- Obrigado.
Entramos, nos acomodamos nas nossas poltronas, e levei minha filha no banheiro do ônibus. Depois, fiquei sentado ainda na expectativa de que ia sair errado. Não acharia nada anormal se no último instante a polícia viesse em comboio e invadisse o veículo com fuzis, pistolas, para minha prisão. Mas o que aconteceu mesmo foi o ônibus começar a rodar devagar, saindo da rodoviária, e dando início a nossa fuga.


Continua...

No próximo capítulo: Júlio fica encurralado na estrada.

Rogerio de C. Ribeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário