Translate

terça-feira, 22 de julho de 2014

O PRÊMIO CAPÍTULO 32

No capítulo anterior: A voz tinha razão. Agora mesmo sentia-se fraca e vulnerável. E não podia instigar mais, senão Adroaldo não a deixaria em paz. E ela conhecia muito bem seu marido. Se não fosse dormir agora, Adroaldo acabaria a levando para um hospital, ela querendo ou não. E como ainda precisava ver as figurinhas...
- Vou sim, Adroaldo. E quando comprar a pizza, separa uma fatia pra mim.
Mônica andou em passos lentos para o quarto; seu corpo inteiro doía, e sentia-se entorpecida como se tivesse acordada há dias e dias. Quando bateu a cabeça no travesseiro, nem teve mais tempo para pensar. Apagou em um sono profundo, sem sonhos.

Capítulo 32

Mônica abriu os olhos e a princípio ficou desnorteada. Estava deitada com a mesma roupa que usou o dia inteiro e com Adroaldo roncando ao seu lado. O relógio da cabeceira marcava quatro horas da manhã.
"Estou atrasada! Tenho tanta coisa pra fazer!", pensou ela, pulando da cama. Correu descalça até a área e abriu a tampa da máquina de lavar. Catou os pacotes de figurinhas e colocou todas, em um monte, em cima da mesa. Pegou o álbum do armarinho e abriu na primeira página. A seleção de cromos que formavam o crânio em perfil agora estava de frente para ela. A caveira sorriu e moveu as mandíbulas:
(Sabe que não resta muito tempo agora, Mônica... Se não fizer o que deve ser feito, vai botar tudo a perder.)
- Eu sei... eles estão desconfiando...
"Eles" significavam dona Amélia e a dentadura bailarina, Adroaldo e Felipe. Mônica sabia que não tinha mais tempo, seu prazo era hoje. Quando a velha portuguesa acordasse, aí mesmo tudo ia ruir. Por isso, precisava fechar o álbum, pegar seu prêmio e desaparecer dali para sempre.
Em seis dias Deus fez o mundo e no sétimo ele descansou, pensou Mônica. Chegou a minha hora pro meu descanso.
A dor de cabeça chegou de repente, como se estivessem esmagando seus miolos. Uma hemorragia nasal desceu lentamente para sua boca, mas ela não se importou. Enquanto rasgava os pacotes de figurinhas, fitava a caveira, que parecia rir dela.
- Depois que você falou comigo, minha vida deu uma reviravolta...
(Agora a culpa é minha? Ou você sempre foi assim e nunca quis enxergar?)
Mônica não respondeu. Mesmo com a cabeça explodindo, rasgava os envelopes e conferia os cromos. Os inéditos ela ia colando em frenesi, e os repetidos ia jogando no chão, agora sem se importar se Felipe ia ver ou não.
Completou mais uma página. Era do coração humano. Ela respirou fundo e viu, dessa vez sem surpresa, a página se movendo para cima e para baixo, no ritmo cardíaco. Tum, Tum, Tum... Ela escutou claramente o álbum criando vida própria, pelas batidas do coração.
Foi colando mais cromos, enquanto dentro da sua cabeça que explodia, ouvia o som coração batendo (Tum Tum Tum) e a voz da caveira, que se parecia com a voz de Damiano:
(Está chegando no fim... tum...tum...tum... Fim...Fim...)
Em um ritmo alucinado, Mônica rasgava os envelopes, e às vezes também rasgava as figurinhas dentro. As veias nas suas têmporas palpitavam acompanhada pelo ritmo dos batimentos cardíacos que vinha do álbum.
Ela completou mais uma página; agora era da veia femoral. A cada envelope que pegava, seus dedos trêmulos doíam quando iam rasga-los.
- Tenho que acabar logo com o álbum...
(Vai acabar, querida... se correr, acaba.)
Bagos de suor escorriam pelo rosto e se misturavam com o sangue da hemorragia nasal. Ela nem percebeu a baba sanguinolenta que dançava em um fio pelo seu queixo.
- Não queria fazer mal pra ninguém...
(Mas foi necessário!)
- Tudo que sempre quis na minha vida, foi minha independência...
(Você foi usada pela sua família... Caiu na chantagem que eles faziam...)
- Quando conheci Adroaldo, trabalhava como caixa de supermercado... - O coração batendo compassado ( Tum Tum Tum ), martelava dentro da sua cabeça, que parecia prestes para explodir a qualquer instante. Pontinhos pretos dançavam na sua frente. Ela nem percebeu que algumas figurinhas que colava estavam rasgadas. - Eu era muito nova, minha mãe vivia repetindo que eu só sonhava... esperando meu príncipe encantado - O coração no álbum subia e descia a cada batida. - Mamãe mandava que eu acordasse dos meus sonhos, que minha obrigação era viver a realidade... Sabe, às vezes minha mãe era muito dura comigo, só tinha eu de filha e se preocupava comigo... meu pai sumiu quando nasci... você entende...
(Sua mãe era amante. E quando você nasceu, seu pai deu o fora. Com certeza já era casado.)
- Isso mesmo - disse Mônica distraída, enquanto rasgou outro envelope. Ela sorriu, um débil sorriso, um sorriso saudoso. - Nunca falei disso com Adroaldo. Do jeito que ele é, nunca ia entender. Quando criança, minha mãe jogava na minha cara. Berrava que eu fui culpada pela infelicidade dela! Eu não entendia por quê minha mãe tinha tanta raiva de mim. Quantas vezes ouvi ela dizendo que não era para eu ter nascido. Quantas vezes... Por isso eu sonhava, nos meus sonhos, meu príncipe ia chegar e me tirar daquela vida...
(Já nesse tempo esperava seu prêmio.)
O dia ia amanhecendo, os primeiros raios do sol entravam pela janela da área, e Mônica continuava rasgando os envelopes e colando as figurinhas, inteiras ou pela metade. A dor de cabeça diminuía conforme se lembrava do passado:
- Não sei, o que queria era ter liberdade. Não aguentava mais ver minha mãe com caras diferentes dentro casa, e na maior parte do tempo, bêbada. Eu tinha onze anos, via minha mãe seminua com um pedreiro de obras, com um camelô, um bacana... qualquer um que a chamasse para beber. E quando entrava em casa, ela apontava para mim e berrava para o cara que estivesse ao seu lado: Essa aí é a desgraçada que arruinou minha vida! Por causa dela, perdi o único homem que me fazia feliz! - As mãos dela tremiam enquanto colava os cromos no álbum. Sem notar, ia completando várias páginas. O coração voltou a bater furiosamente e ecoava dentro da sua cabeça. Há muito tempo que não pensava naquele passado. Na verdade, desde que se casou com Adroaldo, ela passou uma borracha na sua memória. Acomodou-se num casamento de fachada. Tivera filhos porque ele queria ter filhos e uma família grande. Nunca perguntou a ela se era isso que queria. Mesmo se perguntasse, ela ia concordar. Concordaria com tudo, porque na verdade ela não queria mais viver aquela sua outra vida... Não adianta fugir, um dia tudo volta. E em dobro! Mônica respirou fundo e continuou com o desabafo: - Eu tinha dezessete anos quando minha mãe morreu. Havia chegado um tempo que ela não ficava mais sóbria; mal acordava e já esvaziava uma garrafa de conhaque. Minha mãe tinha quarenta anos e aparentava sessenta! Ficou desdentada, os seus cabelos caíram, ela secou. Morreu vomitando sangue. O fígado explodiu! Ela morreu na minha frente, e não fiz nada pra ajuda-la. Parece que foi ontem... Aconteceu de madrugada. Minha mãe entrou no meu quarto e me acordou. Ela só estava de calcinha, com seus peitos caídos encharcados de sangue. Me apavorei, e ela se jogou em cima de mim dizendo que não parava de vomitar sangue. Chegou a respingar um pouco em cima de mim, e eu a empurrei para trás. Meu primeiro pensamento foi em chamar algum vizinho para ajudar, mas quando vi minha mãe deitada no chão do meu quarto chorando e cuspindo sangue, voltei para minha cama. E fiquei olhando, no mais absoluto silêncio, a coisa que se dizia minha mãe, que tanto me ofendeu, que tanto me chamou de desgraçada, e que só faltou me vender para um dos cachaceiros que levava em casa, definhando, cuspindo e vomitando sangue, e uma hora depois, cansei de assisti-la e fui fazer o café da manhã. Me arrumei, já era de manhã, e fui trabalhar. Nesse dia trabalhei feliz. Senti um grande peso saindo dos meus ombros. Quando voltei à noite, ela estava morta, com os olhos esbugalhados e sem vida.
Mônica espiou a cozinha, e quando teve certeza que todos dormiam, disse para a caveira do álbum.
- Foi por isso que me apavorei quando retornei na casa da Guiomar. O momento que a vi amarrada no chão, e que supus que estivesse morta, fez com que voltasse as lembranças daquele tempo que tinha apagado há mais de vinte anos.
"Depois da morte da minha mãe, tive que me virar sozinha. Aluguei uma vaga no centro de Niterói e morei sete anos dividindo o quarto com outras mulheres. Sempre fui retraída, e não gostava de amizades. As meninas que dividiam o quarto comigo tinham mania de contar suas vidas uma à outra, e eu não queria que ninguém soubesse o que passei.
"Para finalizar, conheci Adroaldo no mercado onde eu trabalhava. Ele era cliente, e sempre aparecia para comprar alguma coisa e passava no meu caixa. Não vou mentir, até o achei bonitinho, bom de papo. Saímos juntos e um dia ele me pediu em casamento. Me levou para conhecer sua família, e quando dei por mim, estava casada. E vi uma nova vida. Agora era dona de casa. Mãe de três meninos. E dedicada ao marido.
"Mas depois desses anos, Adroaldo começou a agir como minha mãe. Os dois são iguaizinhos! Minha mãe dizia que eu sonhava, Adroaldo fala que estou no mundo da lua... Pensei que tivesse me livrado de um passado, e hoje vejo que nunca saí dele... hoje vivo o mesmo pesadelo. Eu não posso expressar minha opinião que ninguém vai querer escutar mesmo. Meus filhos caçoam de mim, meu marido só está comigo porque para ele é cômodo... E eu não conto com nada!
"Por isso, quando vi o álbum e o prêmio, vi que ia mudar minha vida.. Quis apagar meu passado, mas ela voltou...
"Só que hoje vou apagar novamente, e dessa vez, com meu prêmio, nunca mais terei o passado na minha vida!"
(Assim que se fala, Mônica. Tem que se lembrar da Guiomar... daqui a pouco ela acorda e se você demorar...)
- Não vou demorar - disse ela, ainda colando as figurinhas no álbum.

Continua...

No próximo capítulo: O Prêmio na reta final. Agora só restam 3 capítulos para o fim da série.

Rogerio de C. Ribeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário