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terça-feira, 15 de julho de 2014

O PRÊMIO CAPÍTULO 27

No capítulo anterior: Mônica agarrou seus cabelos e começou a puxa-los; alguns fios colaram entre seus dedos. Talvez com a dor pudesse afastar aquela voz de dentro da sua cabeça.
(SUA FRACA! NÃO VOU MAIS PERDER TEMPO CONTIGO! PODE ESQUECER DO PRÊMIO!)
- Não vou esquecer nada - teimou Mônica.
(COM ELES TE ATRAPALHANDO, ESSA É A ÚNICA ALTERNATIVA QUE LHE SOBRA! )  
- Vou encontrar uma saída...
(E se não achar? Me diga! Responda!)
- Se ver que estou travada por causa deles... - Ela largou sua cabeça, que parecia anestesiada, em torpor. - vou fazer o que quer... me livro deles.

Capítulo 27

Ela esperou que a voz gritasse de novo, mas não chegou nenhum som dentro da sua cabeça.
Caminhou para a sala e viu Daniel usando uma roupa de sair. Ele estava sentado no sofá quietinho, olhando um comercial que passava na tevê.
Adroaldo veio do corredor, agora vestindo camisa e calça social.
- Vou leva-lo no médico - anunciou ele. - Se quiser, te levo também.
Mônica negou com a cabeça.
- Me viro aqui mesmo, Adroaldo. Estou com a minha cabeça doendo, mas nada que uma aspirina não possa resolver.
Adroaldo ia insistir mais uma vez, mas mudou de ideia e saiu com Daniel. Sozinha em casa, Mônica arriou na poltrona e disse:
- Espero que não precise daquela segunda alternativa... só quero o prêmio... não consigo me ver maltratando as criança...  e nem Adroaldo, e nem mais ninguém...
Ela levantou-se, correu para a janela, e protegida pela cortina, viu o Gol de Adroaldo dobrando a esquina. Olhou para o lado da rua e notou que dona Amélia estava parada na frente da casa de Guiomar com mais três vizinhos, que Mônica chamava de Turma dos Aposentados do Barreto.
Ela atravessou a sala e a cozinha correndo e na área tirou a sacola de dentro da máquina de lavar. Queria terminar logo antes que os meninos ou o marido voltassem da rua. Com o álbum aberto sobre a mesa, iniciou o ritual de rasgar os envelopes, tirar os cromos, conferir, separar ou jogar as repetidas para dentro da sacola.
A falta de uma boa noite de sono começou a fazer seus efeitos nela. Mônica estava acordada há mais de vinte e quatro horas, e sentiu suas mãos dormentes e os olhos ardiam como se tivessem jogado areia dentro deles. Mesmo com todas intempéries, ela continuava no seu ritmo de rasgar, separar, jogar fora e colar.
No fim de duas horas e meia, a sacola de plástico que comprara de um camelô no centro continuava inchada com milhares de figurinhas repetidas. Do montante de seis mil figurinhas, ela só tinha colado quinze novas. E tirando a página do crânio humano, as outras continuavam incompletas.
- Não é possível! - Mônica apoiou os cotovelos na mesa e entrelaçou os dedos magérrimos nos fios oleosos do seu cabelo. - Isso tá parecendo uma...uma...
(A palavra fugiu da sua boca? Sacanagem.)
Mônica puxou seus cabelos para cima e nem sentiu dor. O desespero tomou conta dela:
- Como vou comprar mais figurinhas?
(Comprar é o de menos.)
- Como de menos?
(Você ainda tem o cartão da portuguesa. O que precisa mesmo é diversificar.)
- Como assim? - Mônica largou os cabelos, que ficaram espetados para os lados, e sem que percebesse, acariciava a capa do álbum.
(Quando digo diversificar, significa que não pode ir comprando as figurinhas no mesmo bairro. Tem que correr todas bancas da cidade!)
Com Adroaldo em casa? Impossível!
(Só assim pode conseguir alguma coisa...)
Mônica guardou o álbum, escondeu a sacola abarrotada de figurinhas na máquina de lavar e foi ao banheiro. Tomou um banho gelado. Precisava manter-se desperta. Agora seu corpo inteiro parecia dormente e o coração adquiriu uma arritmia que ela nunca tivera antes.
Vestiu uma roupa leve, pegou sua bolsa e vasculhou o conteúdo dela, virando alguns papeis antigos, um batom pela metade, um espelhinho e um guardanapo com a estampa do Tratoria Torna, uma lembrança que ela guardou ( e se esquecera também) da noite que Adroaldo dissera para a família que iam jantar fora para comemorarem uma venda que fizera. Nessa noite, seu marido parecia outro homem, não quis economizar em nada e até os meninos se deliciaram com um enorme banana split. Admirando o guardanapo, Mônica achou que esse momento foi o único que toda família se reuniu e se confraternizaram como tal. Foi uma noite épica, mas foi a única vez.
Ela amarrotou o guardanapo, foi ao banheiro e jogou dentro da privada. Deu a descarga e viu o papel se esfarelar e sumir junto com a água azul de cloro que foi sugada para o esgoto.
- Já era esse tempo - disse Mônica. - Agora os dias são outros. Principalmente para mim.
Voltou ao quarto e pegou a bolsa que estava caída sobre o colchão com a boca escancarada. Vasculhou novamente, agora em um ritmo rápido, e seus dedos tocaram em algo plástico. Encontrou o que queria, o cartão do banco da falecida portuguesa.
Guardou o cartão dentro da sua carteira juntamente com o papel da senha e se  dirigiu para a sala. Mal saiu do corredor, viu que eram meio dia e meia. Logo os dois pestinhas estariam de volta do colégio.
Mesmo arrumada para sair, Mônica foi esquentar o almoço deles. Depois pegou um papel e escreveu: VOLTO LOGO e pendurou com um imã na porta da geladeira.
Saiu para a varanda e decidiu que não ia trancar a porta da frente. Se trancasse, era bem possível que Felipe e Mateus entrassem pela área, e ela não queria correr mais nenhum risco que um deles, bisbilhoteiros que eram, em um lampejo abrissem a tampa da máquina e fosse descobrir mais de cinco mil figurinhas repetidas dentro de uma sacola.
Ao sair para a rua, viu um movimento estranho na frente da casa de Guiomar. Uma viatura da polícia militar estacionara em frente. Algumas pessoas conversavam entre si ao lado da mangueira que despejava suas folhas diariamente, obrigando que a portuguesa as varressem todos dias.
Dona Alice conversava com um sargento da PM em frente do portão fechado da casa de Guiomar. Mônica aproximou-se da velha vizinha e perguntou, manejando um tom suave e distraído à sua voz.
- O que aconteceu, dona Alice? Dona Guiomar chamou a polícia?
Dona Alice ajeitou o aparelho de surdez do seu ouvido e respondeu:
- Não chamou. Aproveitei que o sargento Ernesto passava aqui na esquina e chamei-o para ver se alguma coisa aconteceu com ela.
Mônica parecia uma espectadora atenta quando viu a dentadura de dona Alice subindo e descendo e um momento, quase foi cuspido para longe.
- E eu tô tentando explicar para ela que não posso fazer nada. - disse o Sargento. O cabo que era o parceiro de Ernesto concordou com a cabeça. - Ninguém nos ligou reclamando do desaparecimento dela, e não temos nenhum mandado assinado pelo Juiz para entrarmos sem sermos convidados.
- Ernesto, lhe conheço desde garoto, muitas vezes você quebrou minhas janelas com sua péssima pontaria nos chutes. Eu e sua mãe participamos das festas anuais da igreja, e você era um dos que mais comiam cachorro-quente e eu nunca disse nada pra ninguém.Também teve aquela vez que você pegou "emprestado" um pacote de pão de mel no Emanuel e para sua mãe não saber desse empréstimo paguei e...
- Tá bom, dona Amélia - disse o sargento, constrangido. - Vou bater na porta dela... É o máximo que posso fazer.
- Não adianta bater na porta, Ernesto, ninguém atende.
- Se não atendem, é porque não tem ninguém em casa - disse Mônica enquanto se afastava deles a caminho do ponto de ônibus.
Ela ainda arriscou uma olhada para trás e viu os policiais entrando na viatura, deixando dona Amélia e sua dentadura bailarina enfurecida.
Quando chegou na esquina, viu Jorge, o jornaleiro, acenando para ela.
"É hoje", pensou Mônica. Sem alternativa, atravessou a rua.
- Oi, dona Mônica - disse Jorge. - A senhora ficou de passar aqui na banca ontem...
Mônica, indignada:
- Eu não marquei nada de ontem, Jorge. Vou te lembre o que falei: No máximo na semana que vem.
Pela cara dele, Mônica sentiu que alguma coisa tinha acontecido.
- Dona Mônica, a senhora sabe que infelizmente não sou o dono da banca. Seu Giuseppe apareceu aqui ontem e pegou o relatório das vendas. E hoje me ligou dizendo que faltava dinheiro no caixa...
Giuseppe, um italiano de Nápoles, era dono de metade das bancas de jornais de Niterói e São Gonçalo. Conhecido pela sua rigidez nos negócios, era também impiedoso com funcionários inaptos. Seu lema era: "Vender fiado só para freguês antigo e só pode ser jornal, mas tem que pagar no dia seguinte. Se o freguês não tem dinheiro para ler jornal, ou ele lê as notícias na internet ou fica desatualizado com as notícias do dia!"
- E daí, Jorge?
- Ele percebeu que faltavam 110 reais no caixa. E o prazo que me deu para devolver esse dinheiro é hoje!
- Não posso fazer nada, Jorge. Não tenho dinheiro. Quem te mandou que vendesse fiado?
Antes que Jorge respondesse, ela passou por ele e caminhou para o ponto de ônibus.

Continua...

No próximo capítulo: Dentro de um táxi, Mônica faz um tour pela cidade.

Rogerio de C. Ribeiro

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