No capítulo anterior: Isso
durou uma semana. Depois que terminou a missa de sétimo dia, com meus parentes
e os pais dela ainda dentro da igreja, Elaine chamou a todos e disse em alto e
bom som:
- Bem, agora acabou o seu período
de luto. O momento agora é de viver, de aproveitar a vida. Sua mãe já foi
enterrada, o mundo pra ela acabou-se, e a única certeza que ela vai ter agora
são os vermes que vão roer suas carnes podre.
Houve um coro de Ah e Ohs, e até o
padre ficou assustado com aquelas palavras. Todo mundo criticou Elaine, só eu
que não falei nada e nem esbocei nenhuma crítica. Eu precisava dela, pra mim só
existia Elaine no mundo, independente do seu jeito e seus modos.
Fiquei dependente dela até o dia
que ela me disse que estava grávida e que ia abortar a criança.
Júlio
ruminava essas lembranças ao sacolejar do ônibus pela estrada precária. O sol
ia se intensificando, e os poucos passageiros iam despertando dos cochilos. Na
poltrona vizinha onde ele estava, uma mulher de coque na cabeça o observava com
olhinhos miúdos atrás de um par de óculos de leitura. Ela tinha uma bíblia na
mão, e lia alguns evangelhos.
Quando
a senhora de coque percebeu que Júlio a encarou, ela sorriu, mostrando uma dentadura
postiça amarelada.
-
Sua filha é muito bonita - elogiou.
Instintivamente,
ele ajeitou a cabeça de Roberta no seu colo para o lado. A menina mexeu-se um
pouco, choramingando. Ele sabia que ela estava com fome, e só esperava que o
ônibus chegasse na próxima parada para providenciar uma mamadeira para ela.
-
Obrigado - disse ele, secamente.
-
Sua filha é quietinha. Na idade dela outras crianças estariam reclamando do
desconforto do ônibus...
A
velha de coque estava de olho neles - pensou Júlio. - Essa é daquelas que
adoram conversar nas viagens.Vou dar um basta nisso.
Júlio
não respondeu ao comentário feito pela vizinha de poltrona. Empertigou-se,
simulando que se espreguiçava, e virou o rosto para a janela.
Lá
fora, a vista não era nada consoladora. Passavam por uma estrada esburacada, e
a poeira flutuava no vidro fechado da janela, que já estava bastante suja. O
cenário era de árvores esqueléticas, matagais secos, um sol inclemente que
estorricava a terra cinzenta, e em alguns pontos Júlio viu casebres afastados,
e cabeças de gados esqueléticos procurando capins verdes. O cenário de fora era
um contraste para sua vida agora. Acariciou os cabelos de Roberta, que
insatisfeita, reclamou. Ele olhou-a com ternura.
A
vizinha de coque continuava olhava para eles. Ela perguntou:
-
O senhor é de Santopolis?
Júlio
balançou a cabeça.
-
Tem parentes por lá? - Insistiu a vizinha de poltrona.
Júlio
continuou quieto. Afagava os cabelos lisos de Roberta e mantinha seus olhos na
janela.
-
Os moradores de Santopolis são basicamente de agricultores. Pena que a seca
está castigando essas terras toda. Mas isso tudo é por culpa dos homens. Se
seguissem as palavras sagradas da bíblia, nada disso estaria acontecendo...
Júlio
sentiu suas costas doendo por causa do encosto duro da poltrona. Estava
irritado com o palavrório da mulher ao lado. Decidiu que na próxima parada não
retornaria ao ônibus. Ia comprar outra passagem para qualquer lugar que o
mantivesse longe daquela tagarela.
Ele
mexeu as pernas, que já estavam dormentes, e a cabeça da menina bateu na altura
da sua cintura.
-
Ai, machucou - reclamou Roberta.
Júlio
suou frio. A menina tinha batido com sua testa na coronha da arma que escondia
sob a camisa. A vizinha de poltrona não tirava seus olhos deles.
-
Não foi nada, meu amor. Daqui a pouco o ônibus vai parar e você vai poder beber
seu leite e comer uns biscoitos.
A
menina sentou-se ereta na poltrona e disse, animada:
-
Biscoito de chocolate, papai?
-
Sim, de chocolate.
-
Eba!!!!
Júlio
acariciou o rostinho alegre de sua filha. E sabia, tinha certeza absoluta, que
nada e ninguém no mundo poderia separa-los.
Ninguém.
Quando Elaine comunicou friamente
que ia abortar nosso filho, fiquei desesperado. Não podia aceitar aquela ideia
e disse a ela:
- Elaine, sempre te respeitei, mas
isso que me disse é completamente fora de qualquer juízo...
- Júlio, eu não perguntei se posso
ou não abortar. Estou apenas te comunicando minha decisão para que amanhã ou
depois não fique choramingando pelos cantos.
- Eu só não entendo uma coisa,
Elaine. Porque você age assim comigo? Se não gosta de mim, não quer filhos para
formarmos uma família, então me explique: qual é o seu objetivo comigo?
- Nenhum, neném chorão. Só gosto de
tê-lo ao meu lado - e ela sorriu quando completou: - adoro te subjugar.
- Faça o que quiser então, mas vou
ser cúmplice disso. Vou embora.
Elaine soltou uma sonora
gargalhada. Ela instigou, dizendo:
- Duvido, pago para ver. Você não
consegue ficar sozinho, Júlio. É frouxo, um covarde.
Não sei de onde tirei forças para
arrumar coragem para sair de casa. Levei minhas roupas em uma mala e me
hospedei em um hotel do Centro da cidade. Confesso que nas noites que passei na
escuridão do minúsculo quarto, com uma tevê que só sintonizava um canal
evangélico, não consegui dormir direito, só pequenos e esparsos cochilos. Só
pensava nela, na mulher que eu era extremamente enfeitiçado, mas jurava para
mim mesmo que não ia dar o braço a torcer. Tinha que mostrar que não era
submisso. Repetia para mim mesmo sempre, mas a ausência de Elaine era como uma
dor física que dilacerava meus órgãos. Durante essa semana, ia trabalhar, e os
colegas do escritório comentavam entre eles sobre minha tristeza. Percebia que
eu era o assunto da semana. Ninguém chegou para mim perguntando se eu queria
desabafar, confessar minha crise com Elaine. Ninguém veio, e o motivo era um
só: Nunca dei margens para que alguma pessoa invadisse minha vida pessoal.
Aprendi com minha mãe que trabalho é trabalho, e vida pessoal só cabe a pessoa
mesmo resolver.
Quando eu preparava meus documentos
para poder alugar um quitinete no centro, recebi uma ligação. Meu celular tocou
e vi no visor quem era: Elaine. Quando li o nome, senti minhas pernas
fraquejarem, suei frio e tentei ignorar. Desliguei duas vezes seguidas ao
chamado, mas Elaine insistia. Pensei com meus botões: Se ela não quer mais nada
comigo, porque está insistindo? Para saber, tinha que atender. E na sexta vez
que o meu celular tocou, atendi.
- Que houve? - Tentei mostrar um
tom de voz mais distante possível.
- Preciso de você, Júlio - Já o tom
de voz dela era de desespero.
- Você não precisa de ninguém,
Elaine. Me esquece e vive sua vida.
Por mais que eu tentasse, havia
falhas no tom da minha voz.
- E eu lá quero saber de alguém,
Júlio? - Era o velho tom arrogante que conhecia. - Quero mais que os outros se
danem. Mas você é diferente, Júlio. Você que escolhi para vivermos juntos,
envelhecermos juntos...
- Nem parece a Elaine que conheço.
- Desculpe a forma como falei
antes, sabe que às vezes ( sempre era a palavra mais certa) falo besteiras
sem pensar. Isso é coisa minha, não consigo mudar, mas eu quero mudar. E quero
mudar com você comigo.
- Acho que é um pouco tarde para
isso. Sua ideia de aborto...
- Olha só, para você ver que só
falo bobagens. Nunca na vida vou abortar um filho nosso. Estou arrependida de
ter falado aquilo para você, principalmente sabendo o quanto quer aumentar
nossa família...
- Não... não vai mais cometer esse
crime?- Senti que fraquejava.
- Larga de ser bobinho. Eu te amo,
volta para casa.
Acreditei nela. Senti-me o homem
mais feliz do mundo. Ela me convencera. E voltei.
Nos primeiros meses de gravidez
Elaine se mostrou uma mulher dócil, atenciosa, amorosa. Para minha felicidade,
acreditei que a gravidez suavizara o temperamento dela.
Mas estava enganado, mais uma vez.
Muito tempo depois, descobri que
ela tentou abortar, bebendo chás, engolindo remédios, mas todas tentativas
foram em vão. Ela continuou carregando no ventre a menina que seria registrada
com o nome de Roberta meses depois.
E descobri que o pedido de volta
era um teatro. Ela queria mesmo era que eu voltasse para infernizar minha vida,
o que conseguiu.
O
ônibus parou na cidade de Matoso do Alto, interior paulista, às dez horas da
manhã. O motorista avisou que tinham vinte minutos para o café. Júlio desceu
com Roberta, com suas duas bagagens de mão, e olhou o pequeno restaurante
vazio, com moscas varejeiras circulando latas de lixo abarrotadas. Ao lado, um
pequeno guichê da empresa estava aberto, com itinerários diversos escritos à
mão em um papel cartolina colado no vidro. Júlio comprou um pacote de biscoitos
de chocolate e dois copos de leite. Ele e a menina sentaram-se numa mesa suja.
Enquanto Roberta mastigava um pedaço de biscoito e bebia do copo o leite morno,
Júlio assistiu ao noticiário que passava em uma televisão sobre
um Rack ao lado dos banheiros. O apresentador do Jornal Globo
News dizia nesse momento:
-
Continua a busca pela menor Roberta Menezes, sequestrada pelo próprio pai,
Júlio Menezes. A polícia montou um cerco nas principais estradas do País.
Segundo informações, o criminoso fugiu de ônibus para São Paulo. A polícia não
disse mais nada para não atrapalhar as investigações...
"Criminoso?
Agora sou taxado de um criminoso. Ninguém sabe a verdade."
Na
mesinha ao lado, a vizinha de poltrona com coque na cabeça também assistia a
tevê. Ela virava seus olhinhos miúdos do apresentador do telejornal para ele.
Júlio teve uma premonição ruim que aquela velha sabia de algo mais. Ele pousou
a mão no cabo da pistola que estava sob a camisa de malha. Não ia permitir que
nessa altura alguém fosse atrapalhar seus planos.
Levantou-se,
puxando Roberta consigo. A menina largou seu pacote de biscoitos, que
esparramaram no chão. Ela começou a chorar.
-
Agora não - disse Júlio, nervoso. A senhora de coque abaixou-se para catar os
biscoitos no chão. - Não precisa - ele gritou para ela, - compro outro.
Assustada,
a velha disse:
-
Pobrezinha da menininha. O senhor foi grosso com ela.
-
Não se meta com minha vida nem da minha filha.
Roberta
puxou sua mão e reclamou, em soluços:
-
Papai me machucou...
Júlio
abaixou-se e abraçou Roberta. A senhora de coque voltou para a sua mesa, e
enquanto bebia seu café com leite, olhava pensativa para eles e voltava os
olhos para a tevê.
O
jornal ia acabando, e o apresentador deu a última notícia:
-
A polícia acabou de informar que o sequestrador da menina Roberta foi visto na
última vez na rodoviária de São Paulo comprando passagem para o interior. Mais
notícias nos plantões...
A
senhora de coque engasgou-se com seu leite. Quando virou a cabeça, não os viu
mais. Sumiram.
Desconfiada,
saiu do restaurante e procurou pela pequena parada algum sinal deles. Algo
dentro dela dizia que era o homem procurado. Ela nunca subestimou suas
intuições. Enquanto ela procurava, andando em passos miúdos, um ônibus da
viação Metropolitana virava pela esquina em direção da estrada. Seu destino era
em Itarantimim. A senhora de coque, que se chamava Ivonete, não viu o estranho
com uma criança naquele veículo, que seguia a oitenta por hora pela estrada.
Às vezes eu dizia para mim mesmo:
Mais uma vez errei em ter voltado para Elaine.
A única coisa que salvava meu
relacionamento com ela era nossa filha, Roberta.
O período de gravidez foi difícil
para Elaine. Ela me evitava, gritava que sentia nojo de mim, me botou para
dormir no sofá durante seus últimos meses de gestação. Seu humor ficou pior que
antes, eu era esculachado por ela na frente de todo mundo, e Elaine não tinha
papas na língua. Uma tarde, na casa dos pais dela, com seus irmãos reunidos num
almoço de domingo, ela disse do nada:
- Caramba, como odeio essa vidinha
de futura mãe.
Tentei consola-la, mas foi pior.
- A culpa é toda sua, Júlio.
Enquanto podíamos estar passeando, viajando, agora estou aqui embuchada, cheia
de espinhas na cara, com peitos inchados e duros de leite. Isso não é vida...
Hudson, o irmão mais velho, riu.
Ele estava com sua esposa, Margareth, ao seu lado.
- Por isso, maninha, que sempre
falei pra Margo: Nem tente ter filhos, vai estragar seu lindo corpo...
Elaine bateu na mesa, e seu prato
balançou com o impacto.
- Tá sugerindo que estou um bagulho?
-Não fique nervosa, amor...
Elaine apontou o dedo, e me acusou:
- Agora está feliz, não é? Minha
família me esculhambando, e o corno do meu marido nem para me defender; quieto
como um covarde. Vai lá e mete um soco nas fuças de Hudson.
Claro que não esmurrei ninguém. O
meu sogro, acalmou os ânimos exaltados dizendo que mesa é sagrada, todos tinham
que comer para Satisfazer o Nosso Senhor.
Elaine, furiosa:
- Enfie esse seu senhor no rabo, e
fique com seus filhos que tanta ama. Eu sei que sou um estorvo para essa
família, e querem saber de uma coisa? Estou pouco me lixando.
Ela levantou-se e me puxou pelo
braço para sair de lá. E ainda disse:
- Frouxo.
Depois do nascimento, minha vida
transformou-se, descobri o que era o amor paterno. Já Elaine, ela não mostrava
nenhum afeto pela neném, e pior, criticava:
- Estou farta de acordar de
madrugada para dar de mamar para essa criatura. A partir de amanhã, Júlio, vou
aposentar meus seios. Ela que vá beber leite de vaca.
- Não é certo, Elaine, você dizer
essas coisas. Primeiro, nossa filha é uma dádiva de Deus, e ela necessita de
leite materno por pelo menos seis meses.
- É fácil falar quando o peito não
é seu. Pra mim chega. Leite de vaca.
E Elaine cumpriu o que ameaçou.
Minha filha, com menos de um mês, teve que se acostumar com mamadeira.
E nos anos seguintes, Roberta
cresceu sendo ignorada pela mãe. Mas pelo menos tinha a mim ao seu lado. Nossa
casa vivia cheia de amigos, e Elaine fazia questão de fazer churrascos todos
finais de semana. Hoje vejo que nosso relacionamento desandou, ela só nos
maltratava, começou a beber. Isso por influência de alguns caras que lá
apareciam.
Mas eu aguentava tudo calado,
omisso. Tudo por Roberta. Mas o que mudou nossos destinos foi o que aconteceu a
cinco dias atrás.
Cheguei em casa e vi Roberta
sentada no sofá sozinha, vendo desenho pela tevê. Eu aproveitei que
tive que fazer um serviço na rua, e cheguei mais cedo.
- Papai - minha filha correu para
me abraçar. - Estou com fome.
- Cadê sua mãe? Ela não preparou
nada pra você?
- Não. Tô com fome.
Deixei Roberta no sofá e fui
procurar alguma coisa para ela comer. Quando entrei na cozinha, vi bagunça por
todo lado; pratos sujos empilhados dentro da pia, manchas de molho nas paredes
e no fogão, copos sujos e alguns com bebidas dentro.
Em cima da pia, encontrei algo que
me assustou: Um envelope com um adesivo escrito "Da Boa, CV". Era um
sacolé de cocaína.
Foi a gota d'água. Podia permitir
que Elaine me humilhasse, me xingasse, me fizesse seu escravo. Mas agora
existia minha filha, e ela precisava de mim. Escutei barulho de gemidos vindo
do nosso quarto. Quase que derrubo a porta pelo pontapé que dei.
E lá vi Elaine, deitada na nossa
cama, nua , com um dos caras que frequentavam nossa casa.
E quando ela me viu, simplesmente
riu. Riu de gargalhar.
Continua...
No
próximo capítulo: Uma declaração deixa Júlio desnorteado
Rogerio
de C. Ribeiro
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