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terça-feira, 29 de julho de 2014

DESTINO:INCERTO CAPÍTULO 2

No capítulo anterior: Isso durou uma semana. Depois que terminou a missa de sétimo dia, com meus parentes e os pais dela ainda dentro da igreja, Elaine chamou a todos e disse em alto e bom som:
- Bem, agora acabou o seu período de luto. O momento agora é de viver, de aproveitar a vida. Sua mãe já foi enterrada, o mundo pra ela acabou-se, e a única certeza que ela vai ter agora são os vermes que vão roer suas carnes podre.
Houve um coro de Ah e Ohs, e até o padre ficou assustado com aquelas palavras. Todo mundo criticou Elaine, só eu que não falei nada e nem esbocei nenhuma crítica. Eu precisava dela, pra mim só existia Elaine no mundo, independente do seu jeito e seus modos. 
Fiquei dependente dela até o dia que ela me disse que estava grávida e que ia abortar a criança.

Júlio ruminava essas lembranças ao sacolejar do ônibus pela estrada precária. O sol ia se intensificando, e os poucos passageiros iam despertando dos cochilos. Na poltrona vizinha onde ele estava, uma mulher de coque na cabeça o observava com olhinhos miúdos atrás de um par de óculos de leitura. Ela tinha uma bíblia na mão, e lia alguns evangelhos.
Quando a senhora de coque percebeu que Júlio a encarou, ela sorriu, mostrando uma dentadura postiça amarelada.
- Sua filha é muito bonita - elogiou.
Instintivamente, ele ajeitou a cabeça de Roberta no seu colo para o lado. A menina mexeu-se um pouco, choramingando. Ele sabia que ela estava com fome, e só esperava que o ônibus chegasse na próxima parada para providenciar uma mamadeira para ela.
- Obrigado - disse ele, secamente.
- Sua filha é quietinha. Na idade dela outras crianças estariam reclamando do desconforto do ônibus...
A velha de coque estava de olho neles - pensou Júlio. - Essa é daquelas que adoram conversar nas viagens.Vou dar um basta nisso.
Júlio não respondeu ao comentário feito pela vizinha de poltrona. Empertigou-se, simulando que se espreguiçava, e virou o rosto para a janela.
Lá fora, a vista não era nada consoladora. Passavam por uma estrada esburacada, e a poeira flutuava no vidro fechado da janela, que já estava bastante suja. O cenário era de árvores esqueléticas, matagais secos, um sol inclemente que estorricava a terra cinzenta, e em alguns pontos Júlio viu casebres afastados, e cabeças de gados esqueléticos procurando capins verdes. O cenário de fora era um contraste para sua vida agora. Acariciou os cabelos de Roberta, que insatisfeita, reclamou. Ele olhou-a com ternura.
A vizinha de coque continuava olhava para eles. Ela perguntou:
- O senhor é de Santopolis?
Júlio balançou a cabeça.
- Tem parentes por lá? - Insistiu a vizinha de poltrona.
Júlio continuou quieto. Afagava os cabelos lisos de Roberta e mantinha seus olhos na janela.
- Os moradores de Santopolis são basicamente de agricultores. Pena que a seca está castigando essas terras toda. Mas isso tudo é por culpa dos homens. Se seguissem as palavras sagradas da bíblia, nada disso estaria acontecendo...
Júlio sentiu suas costas doendo por causa do encosto duro da poltrona. Estava irritado com o palavrório da mulher ao lado. Decidiu que na próxima parada não retornaria ao ônibus. Ia comprar outra passagem para qualquer lugar que o mantivesse longe daquela tagarela.
Ele mexeu as pernas, que já estavam dormentes, e a cabeça da menina bateu na altura da sua cintura.
- Ai, machucou - reclamou Roberta.
Júlio suou frio. A menina tinha batido com sua testa na coronha da arma que escondia sob a camisa. A vizinha de poltrona não tirava seus olhos deles.
- Não foi nada, meu amor. Daqui a pouco o ônibus vai parar e você vai poder beber seu leite e comer uns biscoitos.
A menina sentou-se ereta na poltrona e disse, animada:
- Biscoito de chocolate, papai?
- Sim, de chocolate.
- Eba!!!!
Júlio acariciou o rostinho alegre de sua filha. E sabia, tinha certeza absoluta, que nada e ninguém no mundo poderia separa-los.
Ninguém.

Quando Elaine comunicou friamente que ia abortar nosso filho, fiquei desesperado. Não podia aceitar aquela ideia e disse a ela:
- Elaine, sempre te respeitei, mas isso que me disse é completamente fora de qualquer juízo...
- Júlio, eu não perguntei se posso ou não abortar. Estou apenas te comunicando minha decisão para que amanhã ou depois não fique choramingando pelos cantos.
- Eu só não entendo uma coisa, Elaine. Porque você age assim comigo? Se não gosta de mim, não quer filhos para formarmos uma família, então me explique: qual é o seu objetivo comigo?
- Nenhum, neném chorão. Só gosto de tê-lo ao meu lado - e ela sorriu quando completou: - adoro te subjugar.
- Faça o que quiser então, mas vou ser cúmplice disso. Vou embora.
Elaine soltou uma sonora gargalhada. Ela instigou, dizendo:
- Duvido, pago para ver. Você não consegue ficar sozinho, Júlio. É frouxo, um covarde.
Não sei de onde tirei forças para arrumar coragem para sair de casa. Levei minhas roupas em uma mala e me hospedei em um hotel do Centro da cidade. Confesso que nas noites que passei na escuridão do minúsculo quarto, com uma tevê que só sintonizava um canal evangélico, não consegui dormir direito, só pequenos e esparsos cochilos. Só pensava nela, na mulher que eu era extremamente enfeitiçado, mas jurava para mim mesmo que não ia dar o braço a torcer. Tinha que mostrar que não era submisso. Repetia para mim mesmo sempre, mas a ausência de Elaine era como uma dor física que dilacerava meus órgãos. Durante essa semana, ia trabalhar, e os colegas do escritório comentavam entre eles sobre minha tristeza. Percebia que eu era o assunto da semana. Ninguém chegou para mim perguntando se eu queria desabafar, confessar minha crise com Elaine. Ninguém veio, e o motivo era um só: Nunca dei margens para que alguma pessoa invadisse minha vida pessoal. Aprendi com minha mãe que trabalho é trabalho, e vida pessoal só cabe a pessoa mesmo resolver.
Quando eu preparava meus documentos para poder alugar um quitinete no centro, recebi uma ligação. Meu celular tocou e vi no visor quem era: Elaine. Quando li o nome, senti minhas pernas fraquejarem, suei frio e tentei ignorar. Desliguei duas vezes seguidas ao chamado, mas Elaine insistia. Pensei com meus botões: Se ela não quer mais nada comigo, porque está insistindo? Para saber, tinha que atender. E na sexta vez que o meu celular tocou, atendi.
- Que houve? - Tentei mostrar um tom de voz mais distante possível.
- Preciso de você, Júlio - Já o tom de voz dela era de desespero.
- Você não precisa de ninguém, Elaine. Me esquece e vive sua vida.
Por mais que eu tentasse, havia falhas no tom da minha voz.
- E eu lá quero saber de alguém, Júlio? - Era o velho tom arrogante que conhecia. - Quero mais que os outros se danem. Mas você é diferente, Júlio. Você que escolhi para vivermos juntos, envelhecermos juntos...
- Nem parece a Elaine que conheço.
- Desculpe a forma como falei antes, sabe que às vezes ( sempre era a palavra mais certa) falo besteiras sem pensar. Isso é coisa minha, não consigo mudar, mas eu quero mudar. E quero mudar com você comigo.
- Acho que é um pouco tarde para isso. Sua ideia de aborto...
- Olha só, para você ver que só falo bobagens. Nunca na vida vou abortar um filho nosso. Estou arrependida de ter falado aquilo para você, principalmente sabendo o quanto quer aumentar nossa família...
- Não... não vai mais cometer esse crime?- Senti que fraquejava.
- Larga de ser bobinho. Eu te amo, volta para casa.
Acreditei nela. Senti-me o homem mais feliz do mundo. Ela me convencera. E voltei.
Nos primeiros meses de gravidez Elaine se mostrou uma mulher dócil, atenciosa, amorosa. Para minha felicidade, acreditei que a gravidez suavizara o temperamento dela.
Mas estava enganado, mais uma vez.
Muito tempo depois, descobri que ela tentou abortar, bebendo chás, engolindo remédios, mas todas tentativas foram em vão. Ela continuou carregando no ventre a menina que seria registrada com o nome de Roberta meses depois.
E descobri que o pedido de volta era um teatro. Ela queria mesmo era que eu voltasse para infernizar minha vida, o que conseguiu.

O ônibus parou na cidade de Matoso do Alto, interior paulista, às dez horas da manhã. O motorista avisou que tinham vinte minutos para o café. Júlio desceu com Roberta, com suas duas bagagens de mão, e olhou o pequeno restaurante vazio, com moscas varejeiras circulando latas de lixo abarrotadas. Ao lado, um pequeno guichê da empresa estava aberto, com itinerários diversos escritos à mão em um papel cartolina colado no vidro. Júlio comprou um pacote de biscoitos de chocolate e dois copos de leite. Ele e a menina sentaram-se numa mesa suja. Enquanto Roberta mastigava um pedaço de biscoito e bebia do copo o leite morno, Júlio assistiu ao noticiário que passava em uma televisão sobre um Rack ao lado dos banheiros. O apresentador do Jornal Globo News dizia nesse momento:
- Continua a busca pela menor Roberta Menezes, sequestrada pelo próprio pai, Júlio Menezes. A polícia montou um cerco nas principais estradas do País. Segundo informações, o criminoso fugiu de ônibus para São Paulo. A polícia não disse mais nada para não atrapalhar as investigações...
"Criminoso? Agora sou taxado de um criminoso. Ninguém sabe a verdade."
Na mesinha ao lado, a vizinha de poltrona com coque na cabeça também assistia a tevê. Ela virava seus olhinhos miúdos do apresentador do telejornal para ele. Júlio teve uma premonição ruim que aquela velha sabia de algo mais. Ele pousou a mão no cabo da pistola que estava sob a camisa de malha. Não ia permitir que nessa altura alguém fosse atrapalhar seus planos.
Levantou-se, puxando Roberta consigo. A menina largou seu pacote de biscoitos, que esparramaram no chão. Ela começou a chorar.
- Agora não - disse Júlio, nervoso. A senhora de coque abaixou-se para catar os biscoitos no chão. - Não precisa - ele gritou para ela, - compro outro.
Assustada, a velha disse:
- Pobrezinha da menininha. O senhor foi grosso com ela.
- Não se meta com minha vida nem da minha filha.
Roberta puxou sua mão e reclamou, em soluços:
- Papai me machucou...
Júlio abaixou-se e abraçou Roberta. A senhora de coque voltou para a sua mesa, e enquanto bebia seu café com leite, olhava pensativa para eles e voltava os olhos para a tevê.
O jornal ia acabando, e o apresentador deu a última notícia:
- A polícia acabou de informar que o sequestrador da menina Roberta foi visto na última vez na rodoviária de São Paulo comprando passagem para o interior. Mais notícias nos plantões...
A senhora de coque engasgou-se com seu leite. Quando virou a cabeça, não os viu mais. Sumiram.
Desconfiada, saiu do restaurante e procurou pela pequena parada algum sinal deles. Algo dentro dela dizia que era o homem procurado. Ela nunca subestimou suas intuições. Enquanto ela procurava, andando em passos miúdos, um ônibus da viação Metropolitana virava pela esquina em direção da estrada. Seu destino era em Itarantimim. A senhora de coque, que se chamava Ivonete, não viu o estranho com uma criança naquele veículo, que seguia a oitenta por hora pela estrada.

Às vezes eu dizia para mim mesmo: Mais uma vez errei em ter voltado para Elaine.
A única coisa que salvava meu relacionamento com ela era nossa filha, Roberta.
O período de gravidez foi difícil para Elaine. Ela me evitava, gritava que sentia nojo de mim, me botou para dormir no sofá durante seus últimos meses de gestação. Seu humor ficou pior que antes, eu era esculachado por ela na frente de todo mundo, e Elaine não tinha papas na língua. Uma tarde, na casa dos pais dela, com seus irmãos reunidos num almoço de domingo, ela disse do nada:
- Caramba, como odeio essa vidinha de futura mãe.
Tentei consola-la, mas foi pior.
- A culpa é toda sua, Júlio. Enquanto podíamos estar passeando, viajando, agora estou aqui embuchada, cheia de espinhas na cara, com peitos inchados e duros de leite. Isso não é vida...
Hudson, o irmão mais velho, riu. Ele estava com sua esposa, Margareth, ao seu lado.
- Por isso, maninha, que sempre falei pra Margo: Nem tente ter filhos, vai estragar seu lindo corpo...
Elaine bateu na mesa, e seu prato balançou com o impacto.
- Tá sugerindo que estou um bagulho?
-Não fique nervosa, amor...
Elaine apontou o dedo, e me acusou:
- Agora está feliz, não é? Minha família me esculhambando, e o corno do meu marido nem para me defender; quieto como um covarde. Vai lá e mete um soco nas fuças de Hudson.
Claro que não esmurrei ninguém. O meu sogro, acalmou os ânimos exaltados dizendo que mesa é sagrada, todos tinham que comer para Satisfazer o Nosso Senhor.
Elaine, furiosa:
- Enfie esse seu senhor no rabo, e fique com seus filhos que tanta ama. Eu sei que sou um estorvo para essa família, e querem saber de uma coisa? Estou pouco me lixando.
Ela levantou-se e me puxou pelo braço para sair de lá. E ainda disse:
- Frouxo.
Depois do nascimento, minha vida transformou-se, descobri o que era o amor paterno. Já Elaine, ela não mostrava nenhum afeto pela neném, e pior, criticava:
- Estou farta de acordar de madrugada para dar de mamar para essa criatura. A partir de amanhã, Júlio, vou aposentar meus seios. Ela que vá beber leite de vaca.
- Não é certo, Elaine, você dizer essas coisas. Primeiro, nossa filha é uma dádiva de Deus, e ela necessita de leite materno por pelo menos seis meses.
- É fácil falar quando o peito não é seu. Pra mim chega. Leite de vaca.
E Elaine cumpriu o que ameaçou. Minha filha, com menos de um mês, teve que se acostumar com mamadeira.
E nos anos seguintes, Roberta cresceu sendo ignorada pela mãe. Mas pelo menos tinha a mim ao seu lado. Nossa casa vivia cheia de amigos, e Elaine fazia questão de fazer churrascos todos finais de semana. Hoje vejo que nosso relacionamento desandou, ela só nos maltratava, começou a beber. Isso por influência de alguns caras que lá apareciam.
Mas eu aguentava tudo calado, omisso. Tudo por Roberta. Mas o que mudou nossos destinos foi o que aconteceu a cinco dias atrás.
Cheguei em casa e vi Roberta sentada no sofá sozinha, vendo desenho pela tevê. Eu aproveitei que tive que fazer um serviço na rua, e cheguei mais cedo.
- Papai - minha filha correu para me abraçar. - Estou com fome.
- Cadê sua mãe? Ela não preparou nada pra você?
- Não. Tô com fome.
Deixei Roberta no sofá e fui procurar alguma coisa para ela comer. Quando entrei na cozinha, vi bagunça por todo lado; pratos sujos empilhados dentro da pia, manchas de molho nas paredes e no fogão, copos sujos e alguns com bebidas dentro.
Em cima da pia, encontrei algo que me assustou: Um envelope com um adesivo escrito "Da Boa, CV". Era um sacolé de cocaína.
Foi a gota d'água. Podia permitir que Elaine me humilhasse, me xingasse, me fizesse seu escravo. Mas agora existia minha filha, e ela precisava de mim. Escutei barulho de gemidos vindo do nosso quarto. Quase que derrubo a porta pelo pontapé que dei.
E lá vi Elaine, deitada na nossa cama, nua , com um dos caras que frequentavam nossa casa.
E quando ela me viu, simplesmente riu. Riu de gargalhar.

Continua...

No próximo capítulo: Uma declaração deixa Júlio desnorteado

Rogerio de C. Ribeiro

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