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quinta-feira, 10 de julho de 2014

O PRÊMIO CAPÍTULO 24

No capítulo anterior: A dor que sentia na cabeça, como uma faca rasgando seus miolos, dificultavam sua visualização. Precisava se aproximar para confirmar. Deu três passos e ficou de pé, olhando de cima para o corpo deitado. Viu ao lado do joelho direito de Guiomar um círculo marrom, como sangue seco sobre o tapete. Pôs a sola do seu sapato mocassim sobre o corpo da portuguesa e sacudiu-a até que virou o corpo para o lado.
Mônica quase gritou. A sua dor de cabeça se espalhou para a nuca. Vários pontinhos pretos dançavam alegremente diante dela. 
Guiomar tinha os olhos esbugalhados, mas opacos. Mas a olhava e a acusava.

Capítulo 24

Mônica virou o rosto para o lado. Provavelmente, a velha morreu sufocada. Ou de sede. Ou de hemorragia. O que aconteceu, Mônica não sabia, mas agora tinha certeza que estava morta, pelo rigor do seu corpo e os olhos esbugalhados.
Ainda com o rosto virado, não sabia se ria ou batia a cabeça na parede. Tinha impressão que mãos invisíveis agarravam seu cérebro e torcia-os como se fossem massas para fazer pão. Certo, Mônica, aqui acabou, Guiomar passou dessa para melhor, foi se encontrar com o falecido no céu, no paraíso, no inferno...
A dor que sentiu agora era nos seus olhos, como se um punhal atravessasse seus globos oculares até o crânio. Ela gemeu, segurou a cabeça com as mãos e caiu ajoelhada ao lado do cama.
A sensação foi que ficou horas ajoelhada como penitente com as mãos apertando as têmporas. A dor foi se diluindo até que sumiu por completo. Ela deu por si que tinha uma pessoa morta atrás dela a vigando, e rapidamente, se levantou. O medo que a cegava evaporou como a dor de cabeça, e de dentro dela, uma força emergiu e a surpreendeu. Todo receio, dúvidas, lembranças do passado, foram para o espaço. Ignorou a portuguesa e terminou a bagunça que já começara de manhã, quebrando as gavetas contra o armário, espalhando os documentos e alguns trocados pelo quarto. Suava muito, o cabelo grudava como a personagem Mortiça Addams; quando terminou com a bagunça, bateu uma mão na outra e aprovou o resultado.
Do mesmo modo que entrou, saiu, com extremo cuidado, furtiva. Pensou em cobrir a velha com um lençol, mas não ia ser prudente. A ansiedade batia nela com fúria. Não via a hora de preencher todo álbum e dar uma banana para Adroaldo e aqueles pestinhas egoístas,sumindo da vida deles para sempre.
A sorte continuava no seu lado. Não viu ninguém na rua e nem Champion, o vira lata que às vezes dormia ao lado do muro da casa de dona Alice. Entrou no quintal da sua casa, contornou a lateral e entrou na área de serviços.
O relógio marcava uma e dez da manhã.
Ela abriu a tampa da máquina de lavar e tirou dentro a sacola pesada com dois mil pacotes de figurinhas. Colocou-a no chão e pegou do armarinho o álbum. Sentou-se à mesa e pegou o primeiro pacote. Rasgou a beirada e tirou três figurinhas. Amassou o pacote vazio e jogou dentro da sacola.
Olhou os números e procurou no álbum. Lambeu os dedos e virou as páginas. Todas três eram repetidas. Centenas de pacotes foram espalhadas sobre a mesa. Mônica pegou outra e abriu. Correu de novo pelas páginas. Já tinha.
E foi rasgando, tirando e verificando nos quadrados vazios. Nada. Todas repetidas.
Com a raiva brotando e sua cabeça novamente estourando de dor, via horrorizada as centenas de figurinhas duplicadas formando um monte que não conseguia mais se equilibrar; várias caíram no chão e ela teve se que abaixar para recolhe-las.
Era inacreditável! Já tinha aberto metade dos pacotes e não veio uma figurinha inédita! Verificou as horas no relógio e viu que já eram quatro e meia da manhã. Não podia mais ficar ali.  Se Adroaldo acordasse para ir ao banheiro, podia vê-la ali cercada por um batalhão de figurinhas repetidas!
Jogou as figurinhas e os pacotes ainda fechados na sacola de plástico, e depois escondeu na máquina de lavar. Depois sentou-se e contemplou a única página totalmente completa, que era do crânio humano.
- Achei que ia terminar hoje... - Mônica lamentou.
O crânio moveu-se lentamente. A cada virada da caveira, pontas dos cromos iam inflando como se tivessem injetado gás nelas. Dessa vez o crânio demorou mais para ficar de frente para ela.
Engraçado, pensou Mônica, antes de ontem quase enfartei quando a caveira virou -se para mim... agora, se não fizesse isso, ia estranhar!
Quando as mandíbulas se moveram, para cima e para baixo, as figurinhas correspondentes daquelas fotos também se mexeram. Pareciam pulsar quando o crânio disse:
(Imaginou mesmo que ia completar todo álbum agora?)
- Mil pacotes são três mil figurinhas... mas todas repetidas!
(Do jeito que está andando, se conseguir uma ou duas novas vai ser muito...)
A voz do crânio foi num tom lamentoso, mas Mônica podia perceber o escárnio  escondido naquela voz.
- Tá zombando da minha cara?
O crânio alargou mais o sorriso que exibia dentes pontiagudos. Nas beiradas das figurinhas, Mônica teve a impressão que ficaram enrugadas.
(Eu, zombar de você? Uma dona de casa tão exemplar, que todos daqui a respeitam...)
Mônica não disse nada.
(Claro que estou tirando onda com tua cara, idiota! Não percebeu ainda que o prêmio que está em jogo não é apenas você completar o álbum com seis mil figurinhas! Não, para ser merecedora do prêmio, vai ter que ralar ainda muito, mostrar pra nós que de fato é a merecedora...)
- Ainda não mostrei pra vocês? - Cortou Mônica, lamuriando. - E o que aconteceu com Guiomar? Não é prova?
(Ah, Mônica, Guiomar não foi nada. Você viu que ela morreu asfixiada. Se foi assim, sua morte foi rápida, nem chegou a sofrer com o joelho arrebentado. Não... não vou te desmerecer, Guiomar valeu um pontinho... mas tem que merecer mais ainda!)
- No comercial, Damiano disse que era só uma figurinha difícil, mas agora tô vendo que são várias!
Damiano é um vendedor de ilusões, e todos vendedores só querem vender o produto que tem na mão. Damiano é só um empregado que recebe ordens...)
- Achei que ele fosse dono da editora.
(Achou errado. Como acha tudo errado na sua frente! Ai, Mônica, abra seus olhos! Amanhã você vai encontrar mais figurinhas novas, mas precisa também que tome iniciativas para que possamos de fato acreditar em você...)
- O tal merecimento...
(Isso, a porra do merecimento!)
Mônica percebeu a luminosidade chegando em alguns raios do sol da manhã que vinha do portãozinho que dava acesso à lateral da casa. Foi dizer mais alguma coisa, mas o crânio voltou à sua pose de perfil. Ela dobrou o álbum e escondeu-o no armarinho.
Eram cinco e meia da manhã. Foi preparar um café, e enquanto esperava a água na chaleira ferver, pensou nas palavras que ouviu a pouco. Ficou irada quando não conseguiu colar um cromo só entre milhares, mas a voz estava certa: Se fosse assim tão fácil, seria um prêmio banal.
Enquanto soprava o café quente na caneca que Felipe e Mateus lhe deram de presente no dia das mães, uma caneca branca com um coração vermelho e escrito: Eu Te Amo, Mamãe, com os nomes deles no outro lado da caneca, Mônica se deu conta que a dor de cabeça que sentira agora era uma leve lembrança, e resolveu que dessa vez não ia mais fraquejar, que ninguém ia conseguir supera-la de atingir seu objetivo. Não, não iam não.
E nem sua família iria atrapalha-la também.

Continua...

No próximo capítulo: Adroaldo resolve levar Daniel ao médico, e Mônica não gosta muito dessa ideia.

Rogerio de C. Ribeiro


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