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terça-feira, 10 de junho de 2014

O REVÓLVER

Quando o Inspetor Madureira entrou no apartamento, percebeu que o detetive Neves já tinha se apoderado do local. O detetive estava falando com alguém pelo celular, em pé, no meio da cena do crime. O Inspetor balançou a cabeça, lançou um olhar profissional pela sala bem mobiliada do pequeno apartamento e viu o corpo de uma das vítimas, uma moça de 23 ou 24 anos presumíveis. Ele pegou o bloquinho de anotações que guardava no bolso do seu terno, mordeu a ponta do lápis - um hábito que sua mulher odiava - e localizou o outro cadáver, um rapaz aparentando 27 anos. O detetive Neves desligou o celular, guardou-o no bolso do seu paletó cinza e comentou:
- O corno ficou muito puto com a mulher dele. Dá pra notar pelo estrago que fez.
Além deles, três peritos analisavam a cena do crime. O Inspetor Madureira perguntou:
- Já sabem quem morreu primeiro?
- Ainda não temos certeza - disse um perito com uma voz fina e irritante. - Mas não ficaria surpreso se a mulher foi a primeira que levou o tiro e depois o amante.
O Inspetor ergueu os olhos do corpo da moça e perguntou ao detetive:
- Ele já confessou?
- Que nada. Tá mudo desde a hora que chegamos, e o encontramos sentado nessa cadeira - apontou com seus longos dedos, - essa aí que está no teu lado.
O Inspetor girou o corpo e olhou a cadeira. Ao lado dela, tinha uma mesinha que servia para decorar um vaso amarelo de flores.
- O safado não esboçou nenhuma reação. Ele parecia que tava chapado, segurando um revólver calibre 38, e admirando os corpos na frente dele. Dava a impressão que saboreava o crime que cometeu.
- Então, detetive Neves, supõe que o assassino é o marido traído, que chegou em casa mais cedo, viu a esposa com um rapaz na sala, os dois vestidos, cismou que eram amantes, sacou uma arma e primeiro atirou na esposa e depois no sujeito... Tá faltando algumas peças para se encaixar nesse quebra-cabeça.
O detetive Neves acendeu um cigarro. Diante do olhar reprovador do Inspetor Madureira, foi para a janela aberta. Deu um trago, soprou a fumaça, que pela força do vento voltou toda para a sala e bateu a cinza no parapeito. O apartamento era no quarto e último andar de um conjunto habitacional na Zona Norte da cidade. Neves esticou o pescoço e notou que a rua estava lotada de curiosos, e viu dois carros da imprensa, uma ambulância da Samu e carros da polícia civil e militar. O suspeito do crime estava à espera que o levassem para a delegacia, algemado na cozinha ao lado da sala.
- E o morto já foi identificado?
- Já - respondeu prontamente Neves, que apagou o cigarro no parapeito e depois jogou a guimba num piparote para baixo. - O nome do morto é Romualdo Sá, e acredite, Madureira, era irmão do assassino.
O Inspetor Madureira coçou seu grande queixo quadrado e murmurou:
- Então a menina e o cunhado eram amantes... e ele descobriu...
Verificou novamente a cena do crime e comentou, mais para si próprio do que para os outros:
- Só não estou entendendo o porque dele ter atirado na menina antes... normalmente primeiro se mata o amante e depois na esposa.
- Não se esqueça que o amante em questão também era o irmão mais velho dele.
- Não esqueci. Vamos ver o que ele nos fala. É bem possível que algum vizinho tenha ouvido o que de fato aconteceu. E cadê a arma do crime?
Neves mostrou um revólver dentro de um saco plástico em cima da mesa.
- Um 38... - Madureira tocou com a ponta do lápis em cima do plástico. - E sabem quantos tiros foram disparados?
Um dos peritos acudiu:
- Foram três tiros. Um na mulher e dois no rapaz.
- Precisamos conversar com ele... como é o nome dele?
- Ronaldo - disse Neves.
Madureira anotou no caderninho.
- Então vamos ter uma conversinha com Ronaldo, antes que a imprensa venha aqui xeretar!
Madureira e Neves se dirigiram para a cozinha, deixado para trás os peritos e o revólver esquecido sobre a mesa.

- Boa noite. O casal ouviu alguma coisa no apartamento em cima?
Fúlvio, detetive da polícia, estava parado no corredor e na sua frente um casal de idosos o atendia na porta. Orivaldo, o marido, tinha 82 anos e sua esposa Lauricéia, 77. Pela cara da idosa, Fúlvio não obteria muito sucesso na investigação.
- Não ouvimos absolutamente nada! - Disse a idosa, em forma peremptória . - E se o senhor nos dá licença, nós...
- Eu ouvi os tiros - declarou Orivaldo, para horror da sua esposa. - Na hora que ouvi os tiros estava vendo o Ratinho na tevê...
- Orivaldo Bentes, você não ouviu nada! - disse Lauricéia. - Esqueceu de que é surdo?
Orivaldo ou fingiu ou não escutou sua mulher. Continuou dizendo ao detetive:
- Foram três tiros, e o som nítido. 
- Larga de ser exibido, Orivaldo, e vamos entrar. Tá na hora do seu remédio!
Orivaldo negou com a cabeça e disse a Fúlvio, que esperava o final daquela discussão:
- Mesmo com a televisão alta, deu pra ouvir os tiros. Na hora pensei que fossem canos de descargas... Mas quando minha mulher correu para o quarto apavorada...
- Não diga mais nenhuma palavra, Orivaldo, não nos comprometa com o que não é da nossa conta...
Fúlvio disse:
- Houve um duplo assassinato no apartamento em cima, e o suspeito foi detido, senhora. Não correrão nenhum risco se testemunharem...
- Testemunhar? Sabe quantos anos nós temos? Não quero ser testemunha de nada... daqui a pouco o assassino sai da cadeia e vem se vingar para cima de nós!
- Eu não tenho medo - disse Orivaldo.
- Você tá esclerosado, Orivaldo! Vamos entrar, tá na hora do seu remédio. E seu detetive, pode anotar no seu caderninho que não vamos falar nada.
A porta bateu na cara de Fúlvio, que ainda ouviu:
- Cada dia que passa fica mais teimoso, Orivaldo!

O repórter, em busca de um furo de reportagem, entrevistava uma moradora do 201:
- Então a senhora...
- Margarida Torres, moço.
- Sra. Margarida...
- Senhorita - disse ela, que aparentava 50 anos.
- A senhorita conhece o assassino?
- De vista. Ele e a esposa. Sempre me pareceram tranquilos.
- E o amante? Costumava vir aqui?
- Nunca o vi antes.
- E na hora do crime... a senhorita presenciou...
- O senhor vai tirar fotos?
- Fotos de quem?
- Fotos minha.
- Bem, não vim com o fotógrafo e...
- Então faça o seguinte. Traga o fotógrafo e te conto tudo. Não quero ver só meu nome nessa entrevista. Quero ver minha foto estampada na primeira página... Já tô imaginando minha prima Hildegard morrendo de inveja depois de ver minha foto no jornal... Ela vai se roer todinha!

O suspeito não disse nada. Madureira e Neves voltaram para a sala. Aguardavam que os legistas terminassem com a perícia para poderem levar os corpos ao IML. Madureira sentou-se na cadeira ao lado do revólver embalado e disse:
- Esse é aí é osso duro de roer, Neves. Vamos ter bastante trabalho com ele na delegacia.
- E é tão simples... era só dizer: matei porque não quero ser corno.
- Só que não tem nada simples.
- Como não tem? O cara matou os dois e ponto final.
Madureira pegou a embalagem com o revólver e disse:
- Se isso pudesse contar o que aconteceu... - Largou em cima da mesa e foi para a janela.

E o revólver ficou ali esquecido, enquanto terminavam as investigações na pequena sala do apartamento. Realmente, se por um passe de mágica ou milagre a arma pudesse contar  o que aconteceu, definiria todo quebra-cabeça. Só que não existem milagres e nem mágicas em crimes passionais...
Mas se pudesse... a verdade seria essa...

A campainha tocou duas vezes e Ronaldo atendeu a porta. Seu irmão mais velho, Romualdo, se amparava na parede do corredor.
- Márcia, pega uma xícara de café sem açúcar pro Romualdo.
Ele entrou com seu irmão no apartamento, e o acomodou no sofá. Nos últimos meses, Romualdo andara bebendo bastante. Desde que voltou da sua viagem de lua de mel com sua esposa, Ronaldo soube por sua mãe se que Romualdo havia perdido o emprego, e desandara a visitar todos os botecos de Niterói.
- Romualdo - disse Ronaldo, preocupado. - O que aconteceu contigo? Sempre foi responsável no trabalho...
- Estou desgostoso...
- Você? Sempre foi um cara alegre, de bem com a vida... Mamãe me ligou ontem, ela está muito preocupada...
Romualdo levantou os olhos injetados e murmurou:
- Você não sabe...
Márcia veio com o café. Romualdo não quis. Ronaldo:
- Mano, conta para mim o que houve.
- Esse mês tem sido uma merda pra mim...
Márcia interveio:
- Tá com jeito de desilusão amorosa...
Romualdo não respondeu. Ronaldo desconfiou que seu irmão tinha uma queda pela sua esposa. Desde que eram crianças, sempre foram muito unidos. A diferença de idade entre eles eram de três anos, mas sempre que ia acampar com os amigos da mesma idade dele, Romualdo carregava Ronaldo para a aventura. Quando conheciam uma menina, normalmente era Romualdo que ficava com ela primeiro, e depois dava um jeito para que Ronaldo também desfrutasse a menina. Sempre foram unha e carne. Mas quando Ronaldo conheceu Márcia na faculdade, e os dois noivaram, as saídas e as partidas de futebol com seu irmão foram escasseando com o tempo. E depois que se casou, Romualdo se afastou dele de vez.
Ronaldo sentou-se ao lado do irmão e disse:
- Mano, pode se abrir comigo... É Márcia, não é?
Márcia preferiu manter distância deles, para dar mais privacidade aos irmãos. Romualdo, com bafo de cachaça, disse:
- Sim... como sabe?
- Sempre disputamos as meninas desde que éramos garotos...
Romualdo mantinha sua mão sobre sua camisa e disse:
- Ronaldo... você nunca enxergou mesmo...
- Às vezes é melhor nos fazermos de cego pra não destruir um laço familiar...
Romualdo apontou com o beiço para a cunhada:
- É ela sim... sempre foi ela...
- Ela é minha mulher, Romualdo.
- Ronaldo... além de cego é burro!
Romualdo se levantou e cambaleou de lado. Levantou a camisa e pegou um revólver que tinha na calça.
Ronaldo ficou paralisado quando viu a arma, e Márcia não se moveu.
- Nunca viu, Ronaldo... As mulheres que eu pegava era pra te agradar... nunca me interessei por nenhuma delas... O que me satisfazia era te ver com elas...
- Guarde essa arma, Romualdo, está assustando...
- O motivo para minha felicidade só tinha um nome... Ronaldo... meu irmão mais novo, meu companheiro... - Ele apontou o revólver na direção da sua cunhada. - Lembra quando íamos acampar... quando tomávamos banho nus na cachoeira... eu e você...
- Seu tarado! - gritou Márcia.
- Não é tara, é amor... meu único amor... tanto que quando você transava com as meninas... eu ficava admirando seu corpo... que eu brincava quando você dormia...
Ronaldo deu um pulo, mas errou quando tentou tirar a arma do irmão. No momento que ele caiu para o lado, Romualdo aproveitou e atirou. Foi um tiro certeiro, que pegou no coração da moça, que nem sentiu nada e já caiu morta.
Romualdo ainda segurava a arma quando ouviu:
- Desgraçado! Viu o que fez?
- Ela tá fora do caminho agora... vamos voltar ao que éramos antes...
Ronaldo pulou e se embolou com Romualdo, tentando arrancar a arma dele. Ouviu um estampido, e viu que o irmão estava ferido.
Na altura do abdômen, do pequeno furo do tamanho de uma moeda de dez centavos o sangue jorrou. Também havia sangue escorrendo pelos lábios de Romualdo:
- Não me conformava com sua perda... eu te amo, Ronaldo...
Ronaldo pegou o revólver da mão do irmão e, num acesso de fúria, atirou uma vez. E depois sentou-se na cadeira, em estado de choque, observando os dois corpos, até o momento que os policiais entraram no seu apartamento...

A multidão na porta do prédio gritou em coro uníssono quando viram o assassino saindo algemado pelos policiais:
- Lincha! Lincha esse monstro!
Ronaldo nem prestou atenção nas ameaças. Como um cordeiro manso, deixou que o empurrassem para dentro da caçamba da viatura. Logo o camburão saiu cantando os pneus, a sirene berrando pelas ruas.
Um dos peritos se despediu de Madureira e Neves. O Inspetor disse:
- Hoje a noite vai ser muito longa...
- Boa sorte no depoimento - disse o perito, indo para seu carro, levando na mão o revólver dentro do plástico lacrado.
- Detesto esses crimes passionais - murmurou Madureira, também entrando no seu carro oficial.




Rogerio de C. Ribeiro

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