"Preciso
de dinheiro para mais figurinhas. Esse álbum vai ficar completo mais rápido que
imaginei. E logo terei meu prêmio!"
Dormiu
quase imediatamente, dessa vez um sono sem sonhos.
Capítulo 6
O
dia mal tinha começado, e não estava sendo muito bom para Mônica. Primeiro foi Adroaldo, que decidiu
tirar um dia de folga depois do desastre que foi sua quase venda. Resolveu que ia passar o dia inteiro vendo filmes pela tevê a cabo, e ficou enfiado na sua poltrona só de
bermudas e chinelos de dedo. Adroaldo perguntou:
-
Tem cerveja na geladeira?
-
Não sei - respondeu Mônica; que depois de levar os meninos ao colégio, aproveitou para passar na venda do Emanuel e
trouxe duas sacolas de verduras e uma garrafa de dois litros de Toby, que
equilibrava nos braços.
-
Então veja, e se não tiver, pegue duas caixinhas lá no Emanuel - ordenou, enquanto apontava o controle remoto na frente da tevê e mudava os canais.
-
Você não vai trabalhar hoje?
- Não - decretou Adroaldo, que achou um filme interessante na tevê e
acomodou o controle remoto em cima da sua barriga. - Tem horas que até um
guerreiro no campo de batalha precisa tirar um dia para se recompor. - Adroaldo
apontou a porta da sala e terminou: - Anda, vai logo no Emanuel, e quando voltar,
prepara umas linguicinhas fritas. Estou de patrão hoje, querida, de
patrão!!
Para
Mônica, ter Adroaldo dentro de casa no meio da semana era o maior dos tormentos que uma dona de casa pudesse ter. Quando era no fim de semana, pelo menos eles passeavam, iam ao Campo de São Bento, à casa da sua mãe na
Engenhoca, enfim, faziam alguma coisa fora de casa. Mas no meio da semana, ele
nem discutia a ideia de sair para a rua, se enfurnava na sua poltrona e
não saía da frente da tevê. E pedia cerveja gelada, petiscos, qualquer coisa
que pudesse atrapalhar a rotina de Mônica.
Ela
deixou as compras e o refrigerante na cozinha, foi até a área e deu uma espiada
no armarinho. O álbum e a sacola de plástico com as figurinhas repetidas
continuavam no mesmo lugar que deixara na noite anterior. Quando fechou a porta
do armarinho, aquela sensação de vazio a invadiu. Precisava comprar mais
pacotinhos de figurinhas; mas como faria isso com Adroaldo em casa?
Saiu
pelo portão que separava a área para o quintal da frente. Quando pisou na calçada, viu Guiomar, a portuguesa, varrendo a rua ao
lado. "Toda vez que vejo essa lusitana, ela sempre está segurando uma vassoura
e varrendo a calçada. E prestando atenção na vida dos vizinhos..."
Mônica
fingiu que não a tinha visto e andou devagar pela calçada quando ouviu aquela voz irritante atrás dela:
-
Mônica, ô Mônicaaaaa...
Mônica
percebeu que outros vizinhos, que estavam sentados nas suas cadeiras nas
calçadas ou lavando seus carros, também olharam para ela. Mônica parou, olhou
para trás com um sorriso gelado nos lábios e mentiu:
-
Oi, dona Guiomar, nem vi que a senhora estava aqui...
Guiomar
veio caminhando lentamente na sua direção. Gostava de dizer e repetir para
quem quisesse ouvir que sofria de artrose nos dois joelhos, mas que mesmo com
esse problema crônico não se deixava abater, continuava fazendo as coisas como
antes, só que com algumas limitações.
Mônica
nunca gostou dela. Guiomar era viúva, e vivia da aposentadoria do falecido
marido, que tinha um comércio no bairro. Sem filhos, vendeu o bar do marido e
tinha um patrimônio guardado para algum caso de emergência. Gostava de bater
nos seus imensos seios e repetir: Só tenho a mim mesmo para me cuidar! Vizinho
só é bom para dizer bom dia ou boa noite!
Guiomar
aproximou-se tanto que Mônica pode ver o buço preto que parecia um bigode de
adolescente.
-
Mônica - Guiomar agarrou o cotovelo da dona de casa que teve um princípio de
repulsa com o contato daquela mão gorducha e de dedos pequenos; - não quero me intrometer com tua vida, Mônica, tu sabes que prezo muito a discrição, mas tenho que te falar sobre o que eu ouvi ontem à noite.
-
Ouviu o quê, dona Guiomar? - A pressão que sentia nos seus braços estava lhe
causando náuseas.
Guiomar
olhou de um lado para o outro, e depois fixou seus olhos amarelados nos olhos
de Mônica e disse, quase sussurrando:
-
Ouvi seu Adroaldo brigando com os meninos.
Mônica
disse:
-
E daí, dona Guiomar? A maioria dos pais normalmente brigam com seus
filhos quando eles aprontam alguma coisa errada...
-
Eu sei disso, Mônica. Infelizmente, Deus não quis que eu e Joaquim tivéssemos
filhos, mas tenho vários sobrinhos, e quando pequenos não eram nada tranquilos.
Uma coisa é brigar, chamar a atenção, mostrar para a criança o que é certo ou
errado... e outra é surrar os miúdos de cinto!
-
Dona Guiomar, a senhora tá achando que Adroaldo...
Os
olhos argutos da portuguesa brilharam.
-
Não tô achando nada. Eu vi.
-
Viu? Viu o quê?
Guiomar
largou o braço de Mônica e apontou seu dedinho para a janela aberta da casa ao
lado:
-
Tinha ido ao seu Emanuel para comprar uns docinhos de leite, que são os meus
preferidos, e quando ia para casa, passei em frente da sua casa e a janela estava
escancarada. Tem feito muito calor nesses últimos dias, não é mesmo? É mais que normal deixarmos nossas janelas abertas, principalmente porque se ficamos
direto no ar condicionado, nossa conta de luz vai lá pro espaço... Peraí, deixe
voltar o que estava dizendo. Eu ia para casa, e ainda bem que naquela hora não
tinha ninguém na rua, porque não seria só eu que teria assistido aquela cena
lamentável!
-
Dona Guiomar - Mônica já estava farta de ficar ali parada ouvindo a gorda e
bisbilhoteira lusitana. - Estou com uma certa pressa, tenho um montão de coisas
pra fazer ainda e...
-
Vi seu Adroaldo bater de cinto nos seus meninos - acusou Guiomar. - Vi e quase
liguei para a polícia!
-
Polícia? - disse Mônica. Sua voz soou tranquila apesar da acusação.
-
Sim, Mônica, quase liguei para a polícia. Ia denuncia-los por maus tratos nos menores. Sabe que isso é crime?
-
Na minha época se uma criança levasse umas palmadas ou até mesmo umas
chineladas era normal...
-
Hoje em dia a palmada é crime. - Guiomar respirou fundo e prosseguiu: -
Quando entrei em casa fui até o telefone, mas na hora de ligar para o 190,
fiquei pensando: Guiomar, não seria melhor primeiro conversar com a mãe dos
meninos? Quem sabe falando com ela, as coisas possam endireitar? Então decidi
que ia dar uma outra chance para vocês; sempre foram bons vizinhos, nunca se
intrometeram na vida de ninguém e os meninos iam sofrer de ver o pai na cadeia.
-
Isso é verdade.
-
Eu te peço, minha filha, converse com seu marido. Mostre a ele que uma surra
não vai resolver nenhum problema com seus filhos. Sabe, gosto dos seus meninos, eles são bastante educados comigo. Não quero mais ter que ver de novo uma covardia desse tamanho.
-
Prometo à senhora que Adroaldo não vai mais fazer isso.
- É bom, espero... - Guiomar foi dar um passo e disse: - Putz, meus joelhos
travaram... me ajuda até minha casa, Mônica?
Meio
a contragosto, Mônica amparou Guiomar pelo braço e acompanhou-a até a porta da
casa dela.
-
Por favor, entre um instante...
Mônica
ia dizer que precisava ir no Emanuel, mas Guiomar abriu a porta e quando entrou
levou-a junto dela.
A
sala cheirava a limpol. Com sua experiência de dona de casa, Mônica não viu um
fiapo de poeira nos antigos móveis que enfeitavam a sala. Guiomar sentou-se em
uma cadeira de balanço e apoiou os pés em um estofado quadrado que servia de
suporte. Ela disse:
-
Há quanto tempo somos vizinhas, Mônica? Dez, doze anos?
-
Dez anos - disse Mônica em pé ao lado da porta aberta. Ela examinava os
cristais nas prateleiras, na TV de última geração, do tapete persa que quase
tomava a sala toda, em uma bomboniere abarrotado de doces de leite em cima de
uma mesinha com tampo de vidro.
-
Sim, isso mesmo, três anos antes do falecimento do Joaquim - Havia um retrato
dele pendurado na parede ao lado do corredor que levava aos quartos; a foto
mostrava um homem com aparência austera, usando um paletó em cima de uma camisa
riscada, com um grosso bigode que não melhorava muito sua aparência. - Antes
que você vá, pode pegar um copo de água ali na cozinha, e em cima da mesa tem
meu remédio para a artrose...
Para
se ver livre daquela portuguesa chata, Mônica foi até a cozinha. Era a primeira vez que entrava em
uma casa de vizinhos, e o luxo da lusitana a impressionou. Provavelmente aquela
portuguesa devia ter muito dinheiro... Mais que qualquer um pudesse imaginar se
a julgassem apenas pela aparência.
Voltou
para a sala com o copo de água e uma cartela de remédios que Guiomar pegou,
agradecendo. Mônica disse:
-
Bem, dona Guiomar, preciso ir mesmo. Qualquer coisa é só me chamar - Mônica
disse, mas no fundo rezava que ela nunca precisasse dela!
Quando
saiu encostou a porta e foi caminhando pela calçada até a venda do Emanuel.
Pediu duas caixas de cervejas e quando o português a entregou, ele disse:
-
Dona Mônica, pode mandar um recado pro Adroaldo?
"Hoje
é o dia do Adroaldo, pensou Mônica. Só falta falar que também viu a
surra..."
Mas
era outra coisa.
-
Adroaldo ficou de acertar a conta hoje.
-
Ficou? Vou falar com ele.
-
Sabe que não gosto de cobrar, mas é que tem mais de um mês e as contas estão
aumentando...
-
Tudo bem, seu Emanuel, o senhor tá coberto de razão. Vou passar seu recado pra
ele.
Furiosa,
Mônica saiu da venda carregando as duas caixas em sacolas de plástico. Estava
fula da vida porque as coisas na sua casa não mudavam. Não era a primeira vez
que Adroaldo atrasava nas costas do Emanuel. Quem era cobrada e sempre ouvia as
queixas do vendeiro era ela. Dez anos de casamento, e dez anos a mesma coisa.
Ela
parou e olhou o outro lado da rua, para a banca do Jorge. Ali estava sua
salvação, a liberdade para sua vidinha medíocre. Atravessou a rua e quando
viu Jorge, disse:
-
Jorge, preciso de um favor seu.
Continua...
No próximo capítulo: Um simples comentário que vai gerar um grande terremoto.
Rogerio de C. Ribeiro
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