Ela parou e olhou o outro lado da rua, para a banca do Jorge. Ali estava sua salvação, a liberdade para sua vidinha medíocre. Atravessou a rua e quando viu Jorge, disse:
- Jorge, preciso de um favor seu.
Capítulo 7
O
jornaleiro folheava um jornal e Mônica viu que ele guardava um cigarro atrás da orelha.
-
Que favor?
- Meus garotos pediram figurinhas do corpo humano, só que só
vou ter dinheiro na semana que vem. Tem como eu pegar e te pago depois?
Mônica
era freguesa antiga e assídua da banca, e Jorge não tinha nenhum
motivo para desconfiar.
-
Sem nenhum problema, dona Mônica. Quantas quer? Dez pacotinhos?
Mônica
arriou as caixas de cerveja no chão ao lado das suas pernas e calculou:
- Vamos lá... dez pacotinhos fica em 5 reais...
-Isso mesmo - disse Jorge enquanto pegou um maço de pacotes envolvidos em um elástico azul,
lambeu o polegar e começou a contar os pacotinhos. Separou dez e tirou-os do
maço. Estendeu para Mônica, que disse:
-
Quero duzentos pacotinhos, Jorge.
O
jornaleiro engasgou, e o cigarro caiu da sua orelha:
-
Dona Mônica, duzentos são...
-
Cem reais. Eu sei fazer contas, Jorge.
Ele
balançou os ombros e comentou:
-
Os meninos querem finalizar logo com o álbum... - e recomeçou a contar; lambia o
polegar e separava em dez os pacotinhos. Quando completou duzentos, havia
sobrado quinze pacotinhos. Ele mostrou o que restava e Mônica concordou. -
Duzentos e quinze pacotinhos, aqui estão para a senhora. Cento e sete reais e
cinquenta centavos...
Mônica
pegou-os, aproveitou o elástico e juntou todos.
-
Na semana que vem a gente acerta, Jorge.
E antes que ele dissesse algo, ela pegou as caixas de cervejas, deu as costas e voltou para casa.
-
Que demora foi essa? - Adroaldo reclamou quando a viu entrar na sala. -
Tava de papo com as vizinhas?
Mônica
respondeu que não.
-
Seu Emanuel quer falar contigo.
-
Deve ser da conta que atrasei - disse Adroaldo, enquanto mantinha sua atenção na tevê onde passava um filme de Stallone. - Depois vou lá e falo com ele.
-
E dona Guiomar contou que viu sua cena ontem com os meninos.
Adroaldo
apertou o botão MUTE do controle remoto e disse, zangado:
-
Velha enxerida!
-
Quase ligou para a polícia.
Adroaldo,
com desdém.
-
Que ligasse.
-
Dei o recado, Adroaldo.
-
E já recebi os dois recados. Droga! Não posso nem relaxar que sempre aparece
uma bomba em cima de mim! Merda de vizinhança!
Mônica
levou as cervejas para a geladeira, foi até a área, pegou os pacotinhos que
tinha escondido debaixo da sua blusa e jogou-os dentro da sacola de plástico
que estava dentro do armarinho. Voltou para a sala com uma vassoura na mão.
-
Preciso arrumar a sala antes que os meninos cheguem da escola - informou a
Adroaldo, que bebia uma cerveja Itaipava direto da lata.
-
Finge que não tô aqui - disse Adroaldo. E enquanto ela varria a sala, ele
pousou a lata de cerveja pela metade em cima da mesinha ao seu lado e comentou:
-
Essa Guiomar... adora uma fofoca. Se faz de santinha, que não gosta de fofoca, mas é tudo contrário. Se der mole, ela entra aqui em casa e vive nossa
vida.-
Mônica varria a sala e mal prestava atenção no que ele dizia: - Mal sabem como vive. Ninguém imagina quanta grana malocada ela tem.
Lembra, Mônica, da venda do boteco do falecido marido dela? Eu que
intermediei o negócio, e isso já tem uns 7 anos, acho. Ela levou uma bolada, o
comércio fica num ponto estratégico na rua São João com a rua da
Praia. O português que comprou o negócio pagou tudo no cash, em grana viva. Que
coisa, hein? Esses portugueses antigos não gostam de banco... gostam
de ficar olhando seu dinheiro ao vivo e a cores. Coisa de maluco...
Mônica
fez uma pausa na varrida da sala. Dinheiro vivo e a cores... Interessante,
muito interessante, e engraçado também!
Voltou
ao seu serviço doméstico, sendo atrapalhada de quinze em quinze minutos para
atender os desejos de Adroaldo. Logo se esqueceu da história de Guiomar, mas
não demoraria muito para que ela se lembrasse, e seria no momento mais louco que sua vida estaria passando, em breve, muito em breve...
Com Adroaldo esparramado na sua poltrona com os pés estendidos na frente
e com o ventilador exclusivamente virado para ele, os meninos, ainda amuados
pela falsa acusação, procuravam uma coisa para fazer. Com o pagamento atrasado
da internet e o sinal suspenso, Felipe e Mateus liam revistas antigas com
Daniel entre eles os atrapalhando na leitura. Mônica fritava uma linguiça de
porco acebolada que Adroaldo pedira sentindo seu corpo todo fedendo a gordura e
a roupa colando no seu corpo. Ela não via a hora de se enfiar debaixo do chuveiro e
tomar um banho gelado.
-
Manhê!!!! - Felipe gritou. - Daniel tá enchendo meu saco!!!
-
Manhê!!! - dessa vez foi Mateus. - Tira o Daniel daqui!!!
-
Manhê!!!! - Felipe de novo. - Daniel rasgou o gibi que eu tava lendo!!!
Mônica
mexia a linguiça cortada e as cebolas na frigideira e o suor corria em
bagos pelo seu rosto e pescoço.
-
Manhê!!!!!!! - Mateus gritou. - Daniel tá comendo um pedaço da minha
borracha!!!!!!
Mônica
suspirou, olhou o teto e depois para a janela aberta que dava para a lateral da
casa... Nessa hora da tarde o sol invadia inclemente pela janela e transformava
a cozinha em um forno.
-
Manhê!!!!!!!!!! - Felipe. Sempre Felipe... - Cadê o meu álbum?
"Seu
álbum? - Mônica pensou e quase riu. Mas controlou-se. Se risse seria uma risada
insana. - Agora o álbum é meu, Felipe. Só meu! E o prêmio também é só
meu..."
-
Cadê o álbum, manhê!!!!!! - Agora o coro dos dois, Felipe e Mateus.
-
Calem a boca - sussurrou Mônica. Vinha da frigideira um fedor de
queimado. Acordou do seu torpor e viu as linguiças esturricadas. Agora foi a
vez do Adroaldo berrar da sala:
-
Que cheiro de queimado é esse, Mônica?? Olha lá, hein, meu dinheiro não é
capim! Faça as coisas direito! Já me basta ter que ficar sustentando dois
ladrõezinhos, agora sustentar uma desmiolada é dose pra leão!!!!!
Sempre
o mesmo discurso... Sempre previsível - pensou Mônica. Pegou a frigideira,
jogou as linguiças e a cebola queimadas na lixeira e depois lavou-a. E como um
robô, preparou tudo novamente, sem emoção nenhuma.
-
Mônica - disse Adroaldo enquanto espetou uma rodela de linguiça com cebola. -
Vai procurar a porcaria do álbum dos meninos pra eles calarem a boca! Tá atrapalhando
minha concentração no filme.
Mônica
estava em pé de frente ao marido e se Adroaldo tirasse seus olhos grudados na
tevê e visse o rosto dela, ia ficar assustado. Os olhos dela caíam para a
travessa dos petiscos e não mostravam nenhum sentimento, era como um
olhar bovino. Os olhos de Mônica saíram da travessa e foi para os meninos, onde
Felipe e Mateus estavam engalfinhados em uma luta como o MMA, com Daniel de
espectador. E seus olhos percorreram a sala, a bagunça de revistas rasgadas
espalhadas no chão, dos rabiscos nas paredes, das latas de cerveja amassadas
largadas ao lado da poltrona de Adroaldo...
Esse
era seu mundo mesmo? Seu destino seria servi-los para sempre? O que eles viam
nela? Os meninos a viam como a mãe zelosa, que limpava as bagunças sempre com
um sorriso estampado nos lábios; na mãe que ia acorda-los para o colégio e
enquanto eles vestiam o uniforme ela preparava o café da manhã, sempre com
aquele sorriso no rosto. E quando Daniel cismava de pintar as paredes com lápis
de cera, a mãe vinha com o balde d'água e esponja para lavar os riscos
vermelhos, azuis, amarelos sempre com um sorriso condescendente. E na hora do
marido, que o jantar desfiava lamúrias e reclamava dos gastos
excessivos da sua perdulária família, a esposa dedicada concordava com cada
sílaba, cada frase proferida pelo seu marido estressado. E quando iam se
deitar, o provedor da casa a tomava como uma fêmea e despejava nela todo
estresse do dia e depois ia roncar ao lado satisfeito enquanto ela ia ao
banheiro para limpar o sêmen que secou nas suas pernas com papel higiênico.
Essa
era sua vida. Uma vida que aceitou sem queixas, sem revolta. Mas houve uma
faísca de esperança para sua redenção. E sua salvação era o prêmio que ia
ganhar depois que completasse o álbum. O prêmio era a solução para sua liberdade, a
única alternativa para arrebentar os grilhões que a aprisionavam nesse mundo. E era
pelo prêmio que decidiu viver, mesmo que para isso tivesse que botar sua
família de lado.
-
Droga! - Era Adroaldo. - Procura logo esse álbum pros garotos pararem de encher
o meu saco!!!
A
resposta dela o surpreendeu:
-
Eles que vão procurar - sua voz era firme, decidida. - Tenho um monte de coisa pra fazer. Eles tem que aprender de guardar suas coisas nos lugares
certos. - e deu as costas e foi para a cozinha.
E
deu resultado. Os meninos ficaram quietos e Adroaldo começou a ir pegar suas
cervejas na geladeira. Graças ao prêmio, pela primeira vez na sua vida, Mônica
teve uma atitude. E nesse dia não houve mais reclamações.
Continua...
No próximo capítulo: A emoção de colar figurinhas na madrugada
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: A emoção de colar figurinhas na madrugada
Rogerio de C. Ribeiro
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