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quarta-feira, 4 de junho de 2014

O PRÊMIO CAPÍTULO 7

No capítulo anterior: Furiosa, Mônica saiu da venda carregando as duas caixas em sacolas de plástico. Estava fula da vida porque as coisas na sua casa não mudavam. Não era a primeira vez que Adroaldo atrasava nas costas do Emanuel. Quem era cobrada e sempre ouvia as queixas do vendeiro era ela. Dez anos de casamento, e dez anos a mesma coisa.
Ela parou e olhou o outro lado da rua, para a banca do Jorge. Ali estava sua salvação, a liberdade para sua vidinha medíocre. Atravessou a rua e quando viu Jorge, disse:
- Jorge, preciso de um favor seu.

Capítulo 7

O jornaleiro folheava um jornal e Mônica viu que ele guardava um cigarro atrás da orelha.
- Que favor?
- Meus garotos pediram figurinhas do corpo humano, só que só vou ter dinheiro na semana que vem. Tem como eu pegar e te pago depois?
Mônica era freguesa antiga e assídua da banca, e Jorge não tinha nenhum motivo para desconfiar.
- Sem nenhum problema, dona Mônica. Quantas quer? Dez pacotinhos?
Mônica arriou as caixas de cerveja no chão ao lado das suas pernas e calculou:
- Vamos lá... dez pacotinhos fica em 5 reais...
-Isso mesmo - disse Jorge enquanto pegou um maço de pacotes envolvidos em  um elástico azul, lambeu o polegar e começou a contar os pacotinhos. Separou dez e tirou-os do maço. Estendeu para Mônica, que disse:
- Quero duzentos pacotinhos, Jorge.
O jornaleiro engasgou, e o cigarro caiu da sua orelha:
- Dona Mônica, duzentos são...
- Cem reais. Eu sei fazer contas, Jorge.
Ele balançou os ombros e comentou:
- Os meninos querem finalizar logo com o álbum... - e recomeçou a contar; lambia o polegar e separava em dez os pacotinhos. Quando completou duzentos, havia sobrado quinze pacotinhos. Ele mostrou o que restava e Mônica concordou. - Duzentos e quinze pacotinhos, aqui estão para a senhora. Cento e sete reais e cinquenta centavos...
Mônica pegou-os, aproveitou o elástico e juntou todos.
- Na semana que vem a gente acerta, Jorge.
E antes que ele dissesse algo, ela pegou as caixas de cervejas, deu as costas e voltou para casa.

- Que demora foi essa? - Adroaldo reclamou quando a viu entrar na sala. - Tava de papo com as vizinhas?
Mônica respondeu que não.
- Seu Emanuel quer falar contigo.
- Deve ser da conta que atrasei - disse Adroaldo, enquanto mantinha sua atenção na tevê onde passava um filme de Stallone. - Depois vou lá e falo com ele.
- E dona Guiomar contou que viu sua cena ontem com os meninos.
Adroaldo apertou o botão MUTE do controle remoto e disse, zangado:
- Velha enxerida!
- Quase ligou para a polícia.
Adroaldo, com desdém.
- Que ligasse.
- Dei o recado, Adroaldo.
- E já recebi os dois recados. Droga! Não posso nem relaxar que sempre aparece uma bomba em cima de mim! Merda de vizinhança!
Mônica levou as cervejas para a geladeira, foi até a área, pegou os pacotinhos que tinha escondido debaixo da sua blusa e jogou-os dentro da sacola de plástico que estava dentro do armarinho. Voltou para a sala com uma vassoura na mão.
- Preciso arrumar a sala antes que os meninos cheguem da escola - informou a Adroaldo, que bebia uma cerveja Itaipava direto da lata.
- Finge que não tô aqui - disse Adroaldo. E enquanto ela varria a sala, ele pousou a lata de cerveja pela metade em cima da mesinha ao seu lado e comentou:
- Essa Guiomar... adora uma fofoca. Se faz de santinha, que não gosta de fofoca, mas é tudo contrário. Se der mole, ela entra aqui em casa e vive nossa vida.- Mônica varria a sala e mal prestava atenção no que ele dizia: - Mal sabem como vive. Ninguém imagina quanta grana malocada ela tem. Lembra, Mônica, da venda do boteco do falecido marido dela? Eu que intermediei o negócio, e isso já tem uns 7 anos, acho. Ela levou uma bolada, o comércio fica num ponto estratégico na rua São João com a rua da Praia. O português que comprou o negócio pagou tudo no cash, em grana viva. Que coisa, hein? Esses portugueses antigos não gostam de banco... gostam de ficar olhando seu dinheiro ao vivo e a cores. Coisa de maluco...
Mônica fez uma pausa na varrida da sala. Dinheiro vivo e a cores... Interessante, muito interessante, e engraçado também!
Voltou ao seu serviço doméstico, sendo atrapalhada de quinze em quinze minutos para atender os desejos de Adroaldo. Logo se esqueceu da história de Guiomar, mas não demoraria muito para que ela se lembrasse, e seria no momento mais louco que sua vida estaria passando, em breve, muito em breve...

Com Adroaldo esparramado na sua poltrona com os pés estendidos na frente e com o ventilador exclusivamente  virado para ele, os meninos, ainda amuados pela falsa acusação, procuravam uma coisa para fazer. Com o pagamento atrasado da internet e o sinal suspenso, Felipe e Mateus liam revistas antigas com Daniel entre eles os atrapalhando na leitura. Mônica fritava uma linguiça de porco acebolada que Adroaldo pedira sentindo seu corpo todo fedendo a gordura e a roupa colando no seu corpo.  Ela não via a hora de se enfiar debaixo do chuveiro e tomar um banho gelado.
- Manhê!!!! - Felipe gritou. - Daniel tá enchendo meu saco!!!
- Manhê!!! - dessa vez foi Mateus. - Tira o Daniel daqui!!!
- Manhê!!!! - Felipe de novo. - Daniel rasgou o gibi que eu tava lendo!!!
Mônica mexia a linguiça cortada e as cebolas na frigideira e o suor corria em bagos pelo seu rosto e pescoço.
- Manhê!!!!!!! - Mateus gritou. - Daniel tá comendo um pedaço da minha borracha!!!!!!
Mônica suspirou, olhou o teto e depois para a janela aberta que dava para a lateral da casa... Nessa hora da tarde o sol invadia inclemente pela janela e transformava a cozinha em um forno.
- Manhê!!!!!!!!!! - Felipe. Sempre Felipe... - Cadê o meu álbum?
"Seu álbum? - Mônica pensou e quase riu. Mas controlou-se. Se risse seria uma risada insana. - Agora o álbum é meu, Felipe. Só meu! E o prêmio também é só meu..."
- Cadê o álbum, manhê!!!!!! - Agora o coro dos dois, Felipe e Mateus.
- Calem a boca - sussurrou Mônica. Vinha da frigideira um fedor de queimado. Acordou do seu torpor e viu as linguiças esturricadas. Agora foi a vez do Adroaldo berrar da sala:
- Que cheiro de queimado é esse, Mônica?? Olha lá, hein, meu dinheiro não é capim! Faça as coisas direito! Já me basta ter que ficar sustentando dois ladrõezinhos, agora sustentar uma desmiolada é dose pra leão!!!!!
Sempre o mesmo discurso... Sempre previsível - pensou Mônica. Pegou a frigideira, jogou as linguiças e a cebola queimadas na lixeira e depois lavou-a. E como um robô, preparou tudo novamente, sem emoção nenhuma.

- Mônica - disse Adroaldo enquanto espetou uma rodela de linguiça com cebola. - Vai procurar a porcaria do álbum dos meninos pra eles calarem a boca! Tá atrapalhando minha concentração no filme.
Mônica estava em pé de frente ao marido e se Adroaldo tirasse seus olhos grudados na tevê e visse o rosto dela, ia ficar assustado. Os olhos dela caíam para a travessa dos petiscos e não mostravam nenhum sentimento, era como um olhar bovino. Os olhos de Mônica saíram da travessa e foi para os meninos, onde Felipe e Mateus estavam engalfinhados em uma luta como o MMA, com Daniel de espectador. E seus olhos percorreram a sala, a bagunça de revistas rasgadas espalhadas no chão, dos rabiscos nas paredes, das latas de cerveja amassadas largadas ao lado da poltrona de Adroaldo...
Esse era seu mundo mesmo? Seu destino seria servi-los para sempre? O que eles viam nela? Os meninos a viam como a mãe zelosa, que limpava as bagunças sempre com um sorriso estampado nos lábios; na mãe que ia acorda-los para o colégio e enquanto eles vestiam o uniforme ela preparava o café da manhã, sempre com aquele sorriso no rosto. E quando Daniel cismava de pintar as paredes com lápis de cera, a mãe vinha com o balde d'água e esponja para lavar os riscos vermelhos, azuis, amarelos sempre com um sorriso condescendente. E na hora do marido, que o jantar desfiava lamúrias e reclamava dos gastos excessivos da sua perdulária família, a esposa dedicada concordava com cada sílaba, cada frase proferida pelo seu marido estressado. E quando iam se deitar, o provedor da casa a tomava como uma fêmea e despejava nela todo estresse do dia e depois ia roncar ao lado satisfeito enquanto ela ia ao banheiro para limpar o sêmen que secou nas suas pernas com papel higiênico.
Essa era sua vida. Uma vida que aceitou sem queixas, sem revolta. Mas houve uma faísca de esperança para sua redenção. E sua salvação era o prêmio que ia ganhar depois que completasse o álbum. O prêmio era a solução para sua liberdade, a única alternativa para arrebentar os grilhões que a aprisionavam nesse mundo. E era pelo prêmio que decidiu viver, mesmo que para isso tivesse que botar sua família de lado.
- Droga! - Era Adroaldo. - Procura logo esse álbum pros garotos pararem de encher o meu saco!!!
A resposta dela o surpreendeu:
- Eles que vão procurar - sua voz era firme, decidida. - Tenho um monte de coisa pra fazer. Eles tem que aprender de guardar suas coisas nos lugares certos. - e deu as costas e foi para a cozinha.
E deu resultado. Os meninos ficaram quietos e Adroaldo começou a ir pegar suas cervejas na geladeira. Graças ao prêmio, pela primeira vez na sua vida, Mônica teve uma atitude. E nesse dia não houve mais reclamações.

Continua...

No próximo capítulo: A emoção de colar figurinhas na madrugada

Rogerio de C. Ribeiro

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