O
ESPETÁCULO
Logo
que chegou em casa, abriu o jornal, que pegou emprestado do seu amigo Miro, na seção de classificados. Com o dedo indicador percorreu os anúncios de emprego.
Desempregado há quatro meses e com o prazo do seguro desemprego já
chegando na reta final, Sinval catava qualquer tipo de serviço; com Tereza
buzinando seu ouvido todos dias, até vaga de servente de obras lhe cairia bem.
E
não aguentava mais ficar em casa enclausurado sem fazer absolutamente nada, a não ser
dando uma de babá para seus quatro filhos, enquanto Tereza fazia faxinas em casa
dos bacanas na Região Oceânica.
Tereza
era do tipo que jogava na cara:
-
Olha só, Sinval, vou te falar pela última vez: Ou arregaça as mangas e arruma
um trabalho, ou faz sua mala e sai de casa. Não sou mulher pra ficar sustentando vagabundo!
-
Tô procurando, mas ainda não achei nada no meu ramo!
-
E qual é o seu ramo, cara? Nunca se firmou em trabalho nenhum!
Sinval
preferiu não discutir com ela; Tereza era incapaz de entender que
ele era um artista, pintava aquarelas e vendia nas feiras de sábado no Campo de
São Bento. Só não tinha sorte nas vendas, o que faturava mal dava para
pagar as contas. As pessoas que passeavam pelo Campo elogiavam seus quadros mas
não compravam, e ainda não tivera a sorte e nem a oportunidade de que um
marchand aparecesse e se interessasse em fazer uma grande exposição das suas
obras de arte. Sinval tinha fé que esse dia ia chegar, mas como agora estava
desempregado e não tinha a mínima condição financeira de pagar o aluguel do espaço
na feira para exibir suas obras, ficava em casa pintando, enquanto sua esposa
ralava todos dias nas mansões dos bacanas.
-
O aluguel está atrasado há dois meses - Tereza repetia todos dias pela manhã,
antes de sair de casa. - Se Kellerson não tivesse feito um gato, agora estaríamos sem luz. Daqui a pouco estão cortando a água, e aí quero ver como vamos tomar
banho e lavar a louça e...
E
Tereza desfiava o rosário de queixas em cima dele. Sinval escutava tudo e não
replicava. Ela podia ter razão, mas ele era um artista!
E
ainda por cima tinha as crianças; estavam naquela fase de pedir tudo que viam
nos comerciais da tevê.
-
Pai, compra o Turbo Jet para mim!
-
Compro - respondia Sinval, como se tivesse grana sobrando para isso.
-
Pai, quero a Barbie...
-
Compro.
-
Pai, tô com dor de barriga...
-
Compro.
Era
essa sua vida. Um artista talentoso, que por um acaso do destino, ainda não foi descoberto,
escondido no bairro do Cubango e sendo pressionado por todos os lados, com centenas
de aquarelas empilhadas na área dos fundos, mofando em caixas de papelão
de supermercados. Às vezes ele pegava algumas e perdia horas admirado sozinho seu trabalho... Tinha
certeza que se morasse na zona sul, sua vida seria outra. Lá, acreditava, as pessoas já nasciam
intelectuais. Valorizavam um artista. Mas nesse bairro...
Sinval
fechou o jornal. Não encontrou nada que prestasse. Só vagas para vendedor, e
ainda por cima, sem carteira assinada. Leu um que dizia: "Ganhe até quatro
mil reais trabalhando em casa, sem horário fixo e sem patrão." Isso o
interessou, mas quando ligou para o a empresa, descobriu que era um
tipo de pirâmide, e aquilo o desanimou.
Viu
Carlinhos, seu filho de dez anos, entrando na sala com uma sacola de plástico
na mão. Sinval esqueceu o jornal em cima da poltrona e perguntou:
-
O que é isso, Carlinhos?
-
Tio Kellerson mandou para mamãe - respondeu o garoto. - Um quilo de carne.
Kellerson
era o vizinho da frente. Tinha trinta e poucos anos, solteiro, moreno e
praticava esportes. Ele e Tereza se conheciam desde criança.
Sinval
fez uma careta de desagrado. Aquele sujeito sempre estava disponível para os
chamados de sua esposa. Era Tereza estalar os dedos e ele surgia feito um
cachorrinho abanando o rabo. Aquela proximidade toda o desagradava, mas na
única vez que foi se queixar, Tereza respondeu:
-
Olha só, Sinval, o Kellerson é o tipo do cara que toda mulher sonha de ter como
companheiro. É prestativo, nunca se apertou nas dificuldades, tem os pés no
chão!
-
E você o admira por isso...
Tereza,
sonhadora:
-
E muito... Bem diferente de alguém que conheço... - deixou o resto no ar.
Com
quatorze anos de convivência, Sinval dizia para si mesmo que não tinha ciúmes
da esposa, mas às vezes seu subconsciente gritava que ele mentia. Uma vez
esbarrou com Kellerson na frente da sua casa. O atlético e esportista amigo de
infância da sua mulher perguntou se Tereza estava. Sinval procurou nos
recônditos mais obscuros um fiapo de coragem, mas não conseguiu localizar, e
com o polegar como se estivesse pedindo carona, apontou para os fundos da sua
casa:
-
Ela tá lá estendendo roupas. - O modo como ele disse foi cruel, o que queria
mesmo era mostrar ao solteirão que sua mulher nada mais era que uma faxineira e
dona de casa.
Mas
pelo jeito, Kellerson não se importou muito, e passou por ele ignorando-o. Sinval
descobriu, pela primeira vez, o ciúme... ou o medo de mudar sua rotina de casado.
E
o ápice para todos acontecimentos foi no dia que Tereza apareceu na frente dele
toda produzida. Ele, que assistia televisão com Fabinho, seu filho de seis
anos, perguntou:
- Pra onde tá indo toda produzida?
Tereza
lançou um olhar gélido para ele e respondeu:
-
Vou trabalhar.
-
Assim, desse jeito?
O
aroma do perfume que impregnava a sala era desconhecido; Sinval imaginou como
ela teria comprado o perfume, já que a mesma sempre dizia que com o que
ganhava nas faxinas mal sobrava para comprar um pequeno frasco de Alfazema.
Tereza
não respondeu à pergunta dele, apenas beijou os filhos e disse:
-
Mamãe vai voltar tarde, obedeçam seu pai - e saiu.
As
estranhas atitudes de Tereza mexiam com ele, tanto que perdeu sua inspiração
para novas pinturas. E a gota d'água foi quando Carlinhos, que vinha da rua,
falou com ele, que lavava a louça do almoço:
-
Pai, tio Kellerson comprou um carro novo!
Envolvido
pela esponja borbulhando de detergente e um prato embaixo da torneira da pia,
Sinval só mencionou:
-
É mesmo?
-
É, pai!
Irritado,
Sinval quase deixou que o prato escapasse das suas mãos. Não aguentava mais escutar aquele nome dentro de casa. Uma hora era Tereza enaltecendo Kellerson, outra hora, as crianças
brincando com tio Kellerson, e o cúmulo de tudo, o quilo de carne que Kellerson dava para eles...
Por
isso decidiu que ia trabalhar, nem que fosse de servente de obra. Pegou o
jornal em cima da poltrona e saiu de casa para devolve-lo ao seu amigo Miro. E
quando chegou na calçada em frente do portão, viu a multidão correndo no outro
lado da rua.
Eram
homens, mulheres, crianças pulando e erguendo os punhos fechados como se
comemorassem um gol, pessoas idosas e até seu amigo Miro, que no meio da
multidão em correria, acenou para ele com suas mãos e gritou:
-
Vem logo, Sinval! Assim você vai perder o espetáculo!
Ainda
segurando o jornal dobrado, Sinval gritou:
-
Que espetáculo?
No
meio do vozerio, pôde ouvir Miro:
-
Vem logo, rápido!
Um
homem com uma perna engessada passou por ele feito saci se equilibrando pelas
muletas, e gemia:
-
Isso é tão bom! Espetacular!!!
Sinval
viu o povo dobrando a esquina, mas continuou no mesmo lugar. Foi quando viu
Miro de novo, acenando feito louco:
-
Sinval, você vai perder o maior espetáculo da terra! Vai ficar moscando!!!
E
sumiu quando dobrou a esquina de novo. Curioso, Sinval correu, e na ânsia da
corrida largou o jornal de Miro em cima do primeiro muro que viu. Pensou:
" Pode ser um novo circo, um artista dando autógrafos ou uma peça ao ar
livre!" Pelo jeito era um grandioso espetáculo, para ter chamado tanta
atenção dos outros. Nunca foi um esportista, e tinha aversão a qualquer
exercício físico. As batatas das suas pernas deram sensação que iam travar;
Sinval não se lembrava quando fora sua última corrida... talvez quando tinha
seis anos...
Esbaforido,
dobrou a esquina. E viu a multidão, devia ter umas 50 pessoas de várias faixas
etárias que rodeavam um poste.
Quando
Sinval se aproximou das pessoas que pulavam, gritavam em euforia, viu o motivo
do espetáculo:
Amarrado
no poste, um sujeito magro estava sendo linchado.
A
cena do homem sendo espancado fez com que Sinval quase voltasse para sua casa.
Mas ele continuou parado no mesmo lugar, assistindo à toda barbaridade na sua
frente. Viu um grandalhão segurando um pedaço de pau batendo com violência na
cabeça do sujeito; dois garotos da idade do seu filho mais velho jogavam
pedras, uma mulher histérica gritava e cuspia no sujeito amarrado. Miro vibrava
entre a multidão e quando viu Sinval, gritou:
-
Vem pra cá! Vem participar! Cara, isso é tão bom!!!!!!
Sinval
sentiu suas pernas pesadas, e parecia que seus pés haviam criado raízes que
penetravam no asfalto, impedindo que saísse de lá. Nunca vira uma cena daquela
antes.
O
rosto do sujeito estava desfigurado, era apenas sangue e pele. Provavelmente,
no início deve ter gritado, mas no decorrer da pancadaria, não emitia mais
nenhum som. A multidão era única, uma verdadeira horda de sanguinários, que se
divertiam com o espetáculo que tinham à sua frente. Mas Sinval não queria
participar, queria ir embora...
Ele
não soube explicar o que foi primeiro: O corpo destroçado do sujeito amarrado,
sem nenhuma chance de defesa, ou os gritos e comemorações do povo. Algo o
contagiou, e Sinval quis manter a distância, mas era como um imã que o puxava
para o meio deles.Quando deu conta de si, estava imprensado entre Miro e uma
senhora gorducha, que devia ter oito pedras nas mãos e soltando um gritinho
frenético, semelhante a um relincho. Anestesiado, nem percebeu quando Miro
enlaçou seu braço em torno do seu pescoço:
-
Não te falei, Sinval! - Os olhos de Miro brilhavam, e deu a impressão que
babava. - Quase que perde o espetáculo! Cara, como tô feliz! Isso aqui é
sensacional!!!!
Sinval
não comentou sobre a euforia do seu amigo. Enquanto batiam no sujeito do poste,
ele pensava. Um turbilhão de pensamentos o assaltou. Agora não ouvia mais os
aplausos, nem os vivas da turba. Em vez de ver um sujeito destroçado, viu sua
mulher. Tereza e as reclamações, Tereza e as ironias, Tereza tendo um caso com
Kellerson, o rapaz atlético, esportista que mandava um quilo de carne por
semana para sua casa... Seus filhos o chamando de tio Kellerson. Seus filhos
admirando o tio Kellerson. Seus filhos o ignorando, seu filho dizendo que tio
Kellerson comprou um carro novo, dando a entender que seu pai não podia comprar
nenhum brinquedo para eles... Tereza impregnada pelo cheiro adocicado de um
perfume que ele não conhecia... Tereza dizendo que suas pinturas eram
medíocres, que ninguém ia expor seus quadros em nenhum lugar e que o lugar para
aquelas bostas eram dentro de caixas de supermercado...
Sinval
sentiu seu sangue borbulhando de raiva, e como uma máquina manipulada por um
controle remoto invisível, ele abaixou-se e pegou algumas pedras portuguesas, e
sem mirar, atirou-as na direção do sujeito amarrado. Vagamente, ouviu a voz de
Miro bem longe, dizendo:
-
Cara! Arrebentou o olho do cara!
Sinval
empurrou as pessoas na sua frente para abrir caminho, e quando ficou do lado do
grandalhão, tomou-lhe o pedaço de pau das suas mãos. Ignorou o grandalhão
reclamando atrás dele e aproximou-se do sujeito amarrado. E tascou uma, duas,
cinco, dez pauladas em cima do homem, que não reagia mais. E continuaria
batendo se Miro não viesse por trás e o puxasse. Dobrando a esquina, viu uma
viatura da polícia se aproximando.
A
debandada foi geral, cada um correndo de um lado ao outro. Sinval caminhou, se afastando de lá, com Miro ao seu lado, e ainda deu uma espiada nos dois policiais
confabulando entre eles quando se aproximaram da massa disforme e sem vida
amarrada no poste.
Sinval
tentou entender o porquê da sua súbita fúria. Ou foi influenciado pela multidão, ou
suas frustrações vieram à tona. Sabia que tinha agido de forma irracional, mas
não foi o único - como se isso o redimisse do que fez.
Quando
chegou no portão da sua casa, perguntou a Miro, que se afastava a caminho do
bar para contar as novidades:
-
Miro, o que aquele cara fez pra merecer aquilo?
Miro
deu de ombros e disse:
-
Acho que foi um assalto... Roubou um remédio... Acho que foi isso. Sei lá.
Rogerio
de C. Ribeiro
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