Translate

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O ESPETÁCULO

Logo que chegou em casa, abriu o jornal, que pegou emprestado do seu amigo Miro, na seção de classificados. Com o dedo indicador percorreu os anúncios de emprego. Desempregado há quatro meses e com o prazo do seguro desemprego já chegando na reta final, Sinval catava qualquer tipo de serviço; com Tereza buzinando seu ouvido todos dias, até vaga de servente de obras lhe cairia bem.
E não aguentava mais ficar em casa enclausurado sem fazer absolutamente nada, a não ser dando uma de babá para seus quatro filhos, enquanto Tereza fazia faxinas em casa dos bacanas na Região Oceânica.
Tereza era do tipo que jogava na cara:
- Olha só, Sinval, vou te falar pela última vez: Ou arregaça as mangas e arruma um trabalho, ou faz sua mala e sai de casa. Não sou mulher pra ficar sustentando vagabundo!
- Tô procurando, mas ainda não achei nada no meu ramo!
- E qual é o seu ramo, cara? Nunca se firmou em trabalho nenhum!
Sinval preferiu não discutir com ela; Tereza era incapaz de entender que ele era um artista, pintava aquarelas e vendia nas feiras de sábado no Campo de São Bento. Só não tinha sorte nas vendas, o que faturava mal dava para pagar as contas. As pessoas que passeavam pelo Campo elogiavam seus quadros mas não compravam, e ainda não tivera a sorte e nem a oportunidade de que um marchand aparecesse e se interessasse em fazer uma grande exposição das suas obras de arte. Sinval tinha fé que esse dia ia chegar, mas como agora estava desempregado e não tinha a mínima condição financeira de pagar o aluguel do espaço na feira para exibir suas obras, ficava em casa pintando, enquanto sua esposa ralava todos dias nas mansões dos bacanas.
- O aluguel está atrasado há dois meses - Tereza repetia todos dias pela manhã, antes de sair de casa. - Se Kellerson não tivesse feito um gato, agora estaríamos sem luz. Daqui a pouco estão cortando a água, e aí quero ver como vamos tomar banho e lavar a louça e...
E Tereza desfiava o rosário de queixas em cima dele. Sinval escutava tudo e não replicava. Ela podia ter razão, mas ele era um artista!
E ainda por cima tinha as crianças; estavam naquela fase de pedir tudo que viam nos comerciais da tevê.
- Pai, compra o Turbo Jet para mim!
- Compro - respondia Sinval, como se tivesse grana sobrando para isso.
- Pai, quero a Barbie...
- Compro.
- Pai, tô com dor de barriga...
- Compro.
Era essa sua vida. Um artista talentoso, que por um acaso do destino, ainda não foi descoberto, escondido no bairro do Cubango e sendo pressionado por todos os lados, com centenas de aquarelas empilhadas na área dos fundos, mofando em caixas de papelão de supermercados. Às vezes ele pegava algumas e perdia horas admirado sozinho seu trabalho... Tinha certeza que se morasse na zona sul,  sua vida seria outra. Lá, acreditava, as pessoas já nasciam  intelectuais. Valorizavam um artista. Mas nesse bairro...
Sinval fechou o jornal. Não encontrou nada que prestasse. Só vagas para vendedor, e ainda por cima, sem carteira assinada. Leu um que dizia: "Ganhe até quatro mil reais trabalhando em casa, sem horário fixo e sem patrão." Isso o interessou, mas quando ligou para o a empresa, descobriu que era um tipo de pirâmide, e aquilo o desanimou.
Viu Carlinhos, seu filho de dez anos, entrando na sala com uma sacola de plástico na mão. Sinval esqueceu o jornal em cima da poltrona e perguntou:
- O que é isso, Carlinhos?
- Tio Kellerson mandou para mamãe - respondeu o garoto. - Um quilo de carne.
Kellerson era o vizinho da frente. Tinha trinta e poucos anos, solteiro, moreno e praticava esportes. Ele e Tereza se conheciam desde criança.
Sinval fez uma careta de desagrado. Aquele sujeito sempre estava disponível para os chamados de sua esposa. Era Tereza estalar os dedos e ele surgia feito um cachorrinho abanando o rabo. Aquela proximidade toda o desagradava, mas na única vez que foi se queixar, Tereza respondeu:
- Olha só, Sinval, o Kellerson é o tipo do cara que toda mulher sonha de ter como companheiro. É prestativo, nunca se apertou nas dificuldades, tem os pés no chão!
- E você o admira por isso...
Tereza, sonhadora:
- E muito... Bem diferente de alguém que conheço... - deixou o resto no ar.
Com quatorze anos de convivência, Sinval dizia para si mesmo que não tinha ciúmes da esposa, mas às vezes seu subconsciente gritava que ele mentia. Uma vez esbarrou com Kellerson na frente da sua casa. O atlético e esportista amigo de infância da sua mulher perguntou se Tereza estava. Sinval procurou nos recônditos mais obscuros um fiapo de coragem, mas não conseguiu localizar, e com o polegar como se estivesse pedindo carona, apontou para os fundos da sua casa:
- Ela tá lá estendendo roupas. - O modo como ele disse foi cruel, o que queria mesmo era mostrar ao solteirão que sua mulher nada mais era que uma faxineira e dona de casa.
Mas pelo jeito, Kellerson não se importou muito, e passou por ele ignorando-o. Sinval descobriu, pela primeira vez, o ciúme... ou o medo de mudar sua rotina de casado.
E o ápice para todos acontecimentos foi no dia que Tereza apareceu na frente dele toda produzida. Ele, que assistia televisão com Fabinho, seu filho de seis anos, perguntou:
- Pra onde tá indo toda produzida?
Tereza lançou um olhar gélido para ele e respondeu:
- Vou trabalhar.
- Assim, desse jeito?
O aroma do perfume que impregnava a sala era desconhecido; Sinval imaginou como ela teria comprado o perfume, já que a mesma sempre dizia que com o que ganhava nas faxinas mal sobrava para comprar um pequeno frasco de Alfazema.
Tereza não respondeu à pergunta dele, apenas beijou os filhos e disse:
- Mamãe vai voltar tarde, obedeçam seu pai - e saiu.
As estranhas atitudes de Tereza mexiam com ele, tanto que perdeu sua inspiração para novas pinturas. E a gota d'água foi quando Carlinhos, que vinha da rua, falou com ele, que lavava a louça do almoço:
- Pai, tio Kellerson comprou um carro novo!
Envolvido pela esponja borbulhando de detergente e um prato embaixo da torneira da pia, Sinval só mencionou:
- É mesmo?
- É, pai!
Irritado, Sinval quase deixou que o prato escapasse das suas mãos. Não aguentava mais escutar aquele nome dentro de casa. Uma hora era  Tereza enaltecendo Kellerson, outra hora, as crianças brincando com tio Kellerson, e o cúmulo de tudo, o quilo de carne que Kellerson dava para eles...
Por isso decidiu que ia trabalhar, nem que fosse de servente de obra. Pegou o jornal em cima da poltrona e saiu de casa para devolve-lo ao seu amigo Miro. E quando chegou na calçada em frente do portão, viu a multidão correndo no outro lado da rua.
Eram homens, mulheres, crianças pulando e erguendo os punhos fechados como se comemorassem um gol, pessoas idosas e até seu amigo Miro, que no meio da multidão em correria, acenou para ele com suas mãos e gritou:
- Vem logo, Sinval! Assim você vai perder o espetáculo!
Ainda segurando o jornal dobrado, Sinval gritou:
- Que espetáculo?
No meio do vozerio, pôde ouvir Miro:
- Vem logo, rápido!
Um homem com uma perna engessada passou por ele feito saci se equilibrando pelas muletas, e gemia:
- Isso é tão bom! Espetacular!!!
Sinval viu o povo dobrando a esquina, mas continuou no mesmo lugar. Foi quando viu Miro de novo, acenando feito louco:
- Sinval, você vai perder o maior espetáculo da terra! Vai ficar moscando!!!
E sumiu quando dobrou a esquina de novo. Curioso, Sinval correu, e na ânsia da corrida largou o jornal de Miro em cima do primeiro muro que viu. Pensou: " Pode ser um novo circo, um artista dando autógrafos ou uma peça ao ar livre!" Pelo jeito era um grandioso espetáculo, para ter chamado tanta atenção dos outros. Nunca foi um esportista, e tinha aversão a qualquer exercício físico. As batatas das suas pernas deram sensação que iam travar; Sinval não se lembrava quando fora sua última corrida... talvez quando tinha seis anos...
Esbaforido, dobrou a esquina. E viu a multidão, devia ter umas 50 pessoas de várias faixas etárias que rodeavam um poste.
Quando Sinval se aproximou das pessoas que pulavam, gritavam em euforia, viu o motivo do espetáculo:
Amarrado no poste, um sujeito magro estava sendo linchado.
A cena do homem sendo espancado fez com que Sinval quase voltasse para sua casa. Mas ele continuou parado no mesmo lugar, assistindo à toda barbaridade na sua frente. Viu um grandalhão segurando um pedaço de pau batendo com violência na cabeça do sujeito; dois garotos da idade do seu filho mais velho jogavam pedras, uma mulher histérica gritava e cuspia no sujeito amarrado. Miro vibrava entre a multidão e quando viu Sinval, gritou:
- Vem pra cá! Vem participar! Cara, isso é tão bom!!!!!!
Sinval sentiu suas pernas pesadas, e parecia que seus pés haviam criado raízes que penetravam no asfalto, impedindo que saísse de lá. Nunca vira uma cena daquela antes. 
O rosto do sujeito estava desfigurado, era apenas sangue e pele. Provavelmente, no início deve ter gritado, mas no decorrer da pancadaria, não emitia mais nenhum som. A multidão era única, uma verdadeira horda de sanguinários, que se divertiam com o espetáculo que tinham à sua frente. Mas Sinval não queria participar, queria ir embora...
Ele não soube explicar o que foi primeiro: O corpo destroçado do sujeito amarrado, sem nenhuma chance de defesa, ou os gritos e comemorações do povo. Algo o contagiou, e Sinval quis manter a distância, mas era como um imã que o puxava para o meio deles.Quando deu conta de si, estava imprensado entre Miro e uma senhora gorducha, que devia ter oito pedras nas mãos e soltando um gritinho frenético, semelhante a um relincho. Anestesiado, nem percebeu quando Miro enlaçou seu braço em torno do seu pescoço:
- Não te falei, Sinval! - Os olhos de Miro brilhavam, e deu a impressão que babava. - Quase que perde o espetáculo! Cara, como tô feliz! Isso aqui é sensacional!!!!
Sinval não comentou sobre a euforia do seu amigo. Enquanto batiam no sujeito do poste, ele pensava. Um turbilhão de pensamentos o assaltou. Agora não ouvia mais os aplausos, nem os vivas da turba. Em vez de ver um sujeito destroçado, viu sua mulher. Tereza e as reclamações, Tereza e as ironias, Tereza tendo um caso com Kellerson, o rapaz atlético, esportista que mandava um quilo de carne por semana para sua casa... Seus filhos o chamando de tio Kellerson. Seus filhos admirando o tio Kellerson. Seus filhos o ignorando, seu filho dizendo que tio Kellerson comprou um carro novo, dando a entender que seu pai não podia comprar nenhum brinquedo para eles... Tereza impregnada pelo cheiro adocicado de um perfume que ele não conhecia... Tereza dizendo que suas pinturas eram medíocres, que ninguém ia expor seus quadros em nenhum lugar e que o lugar para aquelas bostas eram dentro de caixas de supermercado...
Sinval sentiu seu sangue borbulhando de raiva, e como uma máquina manipulada por um controle remoto invisível, ele abaixou-se e pegou algumas pedras portuguesas, e sem mirar, atirou-as na direção do sujeito amarrado. Vagamente, ouviu a voz de Miro bem longe, dizendo:
- Cara! Arrebentou o olho do cara!
Sinval empurrou as pessoas na sua frente para abrir caminho, e quando ficou do lado do grandalhão, tomou-lhe o pedaço de pau das suas mãos. Ignorou o grandalhão reclamando atrás dele e aproximou-se do sujeito amarrado. E tascou uma, duas, cinco, dez pauladas em cima do homem, que não reagia mais. E continuaria batendo se Miro não viesse por trás e o puxasse. Dobrando a esquina, viu uma viatura da polícia se aproximando.
A debandada foi geral, cada um correndo de um lado ao outro. Sinval caminhou, se afastando de lá, com Miro ao seu lado, e ainda deu uma espiada nos dois policiais confabulando entre eles quando se aproximaram da massa disforme e sem vida amarrada no poste.
Sinval tentou entender o porquê da sua súbita fúria. Ou foi influenciado pela multidão, ou suas frustrações vieram à tona. Sabia que tinha agido de forma irracional, mas não foi o único - como se isso o redimisse do que fez.
Quando chegou no portão da sua casa, perguntou a Miro, que se afastava a caminho do bar para contar as novidades:
- Miro, o que aquele cara fez pra merecer aquilo?
Miro deu de ombros e disse:
- Acho que foi um assalto... Roubou um remédio... Acho que foi isso. Sei lá.




Rogerio de C. Ribeiro


Nenhum comentário:

Postar um comentário