DUAS PALAVRAS APENAS, E ADEUS
De
que jeito? Não tinha nenhuma alternativa mesmo...
Orlando
ajeitou seus óculos de grau e observou, da janela do sétimo andar, o movimento do
trânsito pela avenida. Mesmo de onde estava, ouvia o barulho dos carros e
ônibus, com suas buzinas e freadas, e o fluxo de pessoas indo e vindo nas
calçadas.
É...
Fazer o quê?
Parecia
que estava predestinado para o que ia acontecer. Era inevitável mesmo. Se ainda
tivesse alguém com ele no apartamento, talvez as coisas fossem diferentes.
Ou
não.
É muito difícil quando a gente precisa tomar uma decisão importante, e quando chega a
hora H, vem alguma coisa, e breca a decisão. Era assim que Orlando se sentia
agora. Até chegar na janela, entre as passadas firmes e convincentes pela sala
de poucos móveis, sabia o que ia fazer. Mas na hora que pôs as mãos no
parapeito, e olhou a multidão na avenida e o tráfego intenso, seus pés se
transformaram em chumbos, e o pânico, coisa que nunca sentiu antes na sua
vida, brotou, explodiu, retumbou. E Orlando foi para trás, sentindo seu coração disparando como uma taquicardia, dando impressão que os batimentos chegavam no seu gogó.
Calma...
Respire fundo...
Puxou
uma cadeira e olhou, por detrás das grossas lentes dos óculos de grau,
a sala quase deserta, com poucos móveis. Foi o que restou da sua vida. Uma sala
quase nua. Nem um quadro na parede. Uma tevê que não funcionava. Uma mesa de
seis cadeiras, mas que só tinha uma cadeira. Um sofá esburacado, um assoalho de
linóleo gasto pelo tempo. E mais nada.
E
o que mais... Pense!
Podia
descrever a cozinha, mas era demais para sua cabeça. Em cima da pia, uma
montanha de quentinhas com restos de comida, se equilibravam feito a Torre de
Pisa, e moscas varejeiras davam rasantes em cima de sobras pisoteadas no chão
quadriculado. Sem geladeira para guardar as sobras, o cheiro fétido empesteou o
ambiente. E na área, sacos de lixos abertos espalhavam o conteúdo podre,
coberto de vermes amarelos.
Orlando,
você acha que descrevendo os ambientes do apartamento, vai comover alguém?
É disso que precisa? Piedade?
Torceu
as mãos. Sentiu as palmas geladas e molhadas. No fundo, no fundo, esperava sim,
que uma pessoa entrasse no apartamento e tivesse piedade dele. Da sua situação
de extrema penúria. Recebendo piedade, seu ego de pobre coitado ia inchar. Orlando
queria ser a eterna vítima. Mas sozinho, não tinha graça. Sozinho, era mais um
entre tantos que existiam por aí.
Vai
falar do seu quarto? Que dorme em cima de um colchão fino?
Orlando
não queria pensar no seu quarto. Que um dia foi um quarto de casal. Aliás, o
apartamento todo foi de um casal.
Até
que a morte os separe...
Por
acreditar nessas palavras, fez o que não devia ter feito. Fez e abusou na dose.
Belinha não merecia isso... mas ela revidou, e agora, nesse instante, Orlando
sentia-se ultrajado.
Mas
quem começou foi você!
Orlando
ficou de pé. Chutou a cadeira, que voou longe e bateu na parede. Será que o
vizinho escutou o barulho? Orlando sabia que, mesmo tendo ouvido, seu
vizinho não ia se intrometer. Pra ser sincero, ninguém no prédio ia bater na
sua porta. Ninguém se importava com ele.
Só
Belinha.
Orlando
concordou. Só Belinha que tinha paciência com seu gênio intempestivo, seu vício
no jogo, das amantes que arrumava e ela, silenciosamente, aceitava.
Quando
ia no Jockey Clube, o momento que apostava no cavalo e ganhava no páreo, era
como um orgasmo prolongado. Era do tipo de tudo ou nada. Entrava com cem reais
e às vezes saía com dez mil. Mas ao invés de voltar para casa, ia para a Lapa,
e lá torrava o dinheiro com seus colegas de copo e com mulheres que nem
conhecia. Quando tinha dinheiro no bolso, sabia que as mulheres o desejavam...
Sentavam na sua mesa, bebiam e comiam por sua conta, e mediante um singelo
pagamento, representavam bem na cama, chamando-o de atlético, viril, cheiroso...
Mas quando acabava o dinheiro, e mal sobrava o do ônibus, as mesmas mulheres
diziam que ele era um fracassado, que não sabia satisfazer uma mulher fogosa,
que agia como crápula do que fazia com Belinha.
E
arrependido, voltava para casa e Belinha perdoava. Mais uma vez.
Começou
vendendo o que tinha para sustentar seu vício nos cavalos. Primeiro, empenhou
sua aliança de ouro. Quando Belinha notou, a desculpa que deu foi que...
Seja
homem e fala o que aconteceu mesmo!
Quando
Belinha notou, ele disse que foi assaltado. Limparam sua carteira e ainda
levaram a aliança de contrapeso.
Belinha
balançou a cabeça, triste. E não disse mais nada.
Depois
da aliança, foram as joias de família. Da família de Belinha. Empenhava na
Caixa, e prometia a si mesmo, que ganhando um bom dinheiro nas corridas, ia
resgatar e depois botar no mesmo lugar que pegou, uma caixinha de madeira crua
onde Belinha guardava seus objetos.
Ele
ganhava, contava o dinheiro, guardava na carteira e prometia a si mesmo que ia
resgatar as joias no dia seguinte.
Só
que esse dia seguinte nunca chegou.
Enquanto
Belinha trabalhava, ele curava a ressaca acordando tarde, ouvindo rádio. O
programa que escutava era do Jóquei Clube. Assinalava os palpites, calculava os
ganhos, pegava dinheiro que Belinha guardava no armário e de noite ia, para
mais uma noite de apostas.
E
chegava em casa de madrugada. Sem nenhum dinheiro no bolso.
Em
um final de semana, na casa dos seus sogros, percebeu que Belinha não era mais
a mesma. Deixou-o plantado sozinho em um canto e foi confabular com seus pais.
Desconfiado,
perguntou se estava acontecendo alguma coisa. E Belinha respondeu que sim.
-
Acontecendo tudo, Orlando!
Ela
disse que cansara daquela vida sem futuro. Que com o apoio dos seus pais, ia
deixa-lo e viver sua vida.
E
você, Orlando? Como reagiu a essas notícias?
Orlando
gritou. Era um grito desesperado, um grito sem razão nenhuma. Mas acreditou que
com esse grito, mostraria quem mandava na casa:
-
Não me venha com essa conversa mole de futuro, Belinha! Há tempos que tenho
notado sua indiferença comigo. Um amante... Você tem um amante!
Belinha
negou. E Orlando cresceu em cima da negação:
-
Confessa... fala aqui, na minha cara, Belinha! É um colega do seu trabalho? Um
que você sempre almoça... O cara é bom na cama... te satisfaz...
Quando
você perde a razão, as palavras que despeja podem ser mais letais que um tiro
ou facada.
-
Não tem amante nenhum, Orlando. Ainda não.
E
foi aquele "ainda não", que desencadeou o que houve. Sem pensar, Orlando levantou
o braço e tascou um tabefe em Belinha.
E,
um segundo depois, se arrependeu.
Mas
era tarde. Por causa de duas palavras, ele acabou de vez com o casamento.
Belinha
fez as malas e saiu. Sem olhar para trás, sem ver que Orlando chorava.
Orlando
chorou, chorou, chorou, meteu a mão no bolso, contou quanto tinha de grana,
chorou mais um pouco, se arrumou, choramingou, procurou no armário alguma coisa
que Belinha pudesse ter esquecido, chorou, não achou nada, ela levou todo
dinheiro guardado, então ele desceu, pegou um ônibus, sentiu um nó na garganta,
uma furtiva lágrima escorregou até seu nariz, saltou na frente do Jóquei Clube,
apostou, perdeu, apostou, ganhou, e depois ganhou mais um pouco, e depois foi
afogar suas mágoas na Lapa, abraçado com uma mulata que conhecera a menos de
dois minutos, gastou, gastou, gastou, e quando viu que estava duro, chorou
novamente.
Foi
vendendo o que podia para jogar. Quando ganhava uma bolada, jurava que ia
mudar, aplicar o dinheiro, voltar pro trabalho e provar a Belinha que ainda era
digno de confiança.
Um
homem de brio!
Seus
sonhos de mudança esfarelavam na mesma velocidade que os minutos passavam, e
que não tinha mais volta. Orlando foi esvaziando o apartamento, foi pegando
dinheiro emprestado com amigos, parentes, vizinhos, e como nunca honrou nenhum
pagamento, todos se afastaram dele. E entrou na fase de pegar dinheiro com
agiotas, passando cheques sem fundo como garantia. E como também não pagou,
começou a ser caçado nas ruas do centro, e não voltou mais para a Lapa. Mal saía
de casa.
Orlando
viu que entrou num caminho sem volta.
E
decidiu por fim nessa vida.
Sem
Belinha patrocinando seus páreos, sem amigos, e com os seguranças dos agiotas vasculhando a cidade, o que lhe restava? Nem dinheiro tinha mais!
Por
isso decidiu que ia pular da janela. Mais uma vez, encostou o peito no parapeito e
olhou a avenida. Viu vida ali embaixo.
E
o que fizera com sua vida?
Vou
pular - disse convicto.
Vou
morrer e Belinha vai se arrepender por ter me largado.
Ao
imagina-la sofrendo, se descabelando com sua morte, Orlando sentiu-se melhor.
Pegou
a cadeira que chutara e a colocou ao embaixo da janela aberta. Subiu e
equilibrou-se. Olhou os prédios em frente, e em uma das janelas, viu uma moça
acenando.
Orlando
apontou para si, e a moça em frente concordou. De longe parecia bonitinha, mas
a distância às vezes engana...
Orlando
levantou uma perna e apoiou o pé dentro de um Vulcabrás no parapeito. Viu,
extasiado, a moça mexendo os braços em desespero.
Logo
em seguida ela saiu da janela, mas voltou com um cartaz. Nele estava escrito
com caneta Pilot o seguinte:
A
VIDA É SAGRADA DEMAIS PARA SER JOGADA FORA! ME LIGA, SANDRA. TELEFONE...
E
o que ele fez em seguida?
A
vida oferecia mais uma chance para ele.
Orlando
ligou, a moça foi no seu apartamento, conversaram, ela era solteira e
evangélica, o conhecia de vê-lo da janela, via seu sofrimento e sempre quis
ajuda-lo...
Enfim...
O
apartamento voltou a ser mobiliado. Sandra arrumava tudo e sempre sorria feliz.
Ela tinha cinquenta e tantos anos, era viúva e sem filhos. Aposentada, recebia
a pensão do seu falecido marido, coronel do exército, e ainda recebia sua
aposentadoria de professora universitária federal.
Orlando
agradecia à sua segunda chance. Pagou os agiotas, os amigos e prometia que
nunca mais ia pisar no Jóquei. Dizia à Sandra que ia arrumar um emprego, e que
se sentia ofendido com ela pagando suas contas.
-
O que é meu é seu, amor!
Orlando
prometeu para si mesmo:
-
Juro... com ela não vou cometer os mesmos erros de antes...
Bem...
Para
finalizar...
Orlando
nunca foi mesmo de cumprir nenhuma promessa ...
Rogerio
de C. Ribeiro
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