AS BARATAS
Me
botaram num lugar que fede. O fedor de mijo e merda vem do buraco ali no canto.
Os caras lá foram devem chamar isso de banheiro. Aposto qualquer coisa que desse
buraco deve sair ratos, ou ratazanas do tamanho de um cachorro pinsher. Sinceramente,
não é com cheiro do mijo e nem dos ratos que me preocupa agora. O que me
apavora mesmo são as baratas; essas sim. Agora não tô vendo nenhuma, mas com
certeza, quando escurecer, elas vão aparecer. Elas nunca me abandonam; aonde eu
estiver, elas vem. Sempre em bando. As baratas me acompanham desde criança, há quinhentos
anos atrás. E nunca consegui me livrar delas!
Disseram
que estou de castigo porque me comportei mal na hora do almoço. Eles queriam o
quê? O cara ia me pegar a força. Falou que sou frouxo, trouxa e tinha que servi-lo. Ora bolas, posso
ter entrado agora, mas durante minha vida miserável já apanhei o suficiente
para cinco gerações inteiras, e não é um cara que nunca vi na vida que vai se
dar bem em cima de mim, me enrabar, sem que eu me defenda.
Antigamente
baixei minha cabeça várias vezes, sempre
obedecendo as ordens do meu pai, e não me rebelei por isso. Aceitei tudo, primeiro
porque sou o filho mais velho, e depois, porque fui educado dessa forma, para servir minha família sem questionar as ordens.
Mas
no momento que me revoltei, quando chutei o balde, deu no que deu. Senhoras e
senhores, eis aqui o grandessíssimo idiota, Sandoval Pereira, trancado de
castigo, pelas peraltices que cometeu, e que agora tem como companhia, os ratos, ratazanas, e pra
completar a salada mista, as baratas.
Se
tivesse qualquer coisa para tampar esse buraco que fede a mijo e merda, eu
botava em cima, e pra mijar ou cagar me
virava aqui mesmo. Mas como não tem nada, só resta mesmo é ficar aqui sentadinho, esperando que passe
logo o tempo pra voltar na minha cela.
Meu
único passatempo agora, enquanto estou pagando meu castigo de ter sido um menino
rebelde que se diverte de furar olhos de caras que acreditam que o seu cu é
público, é pensar. Preciso pensar mesmo, para provar aos outros que não sou
esse maluco como meus adorados e dedicados pais e meu idolatrado e fabuloso
irmão caçula pintaram, quando vim pra cá.
Pensar
em quê? Na minha vida? Chega a ser comédia, estou agindo exatamente como eles mandaram
fazer. Papai me disse, com emocionante ternura e mostrando o quanto me amava:
-
A partir de agora, o senhor vai ter bastante
tempo pra pensar na merda que fez!
É,
paizinho, agora tenho a eternidade toda para pensar. E se duvidar, ainda repensar
milhares de vezes. Estou aprendendo que aqui é um lugar onde não se pode falar
muito, que aqui o silêncio vale ouro, e que só resta mesmo pensar e lembrar da
merda que fiz.
Imagino
quando mamãe engravidou de mim. Quando criança, viajava no meu quartinho, enquanto
não vinha meu sono. Nos meus pensamentos, via mamãe grávida, indo para o
hospital com papai dirigindo seu velho
Passat, pisando fundo no acelerador, ultrapassando Fuscas, Chevettes, Opalas,
furando sinais vermelhos, enquanto mamãe gemia, soprava e gritava:
-
Corra mais rápido, imbecil, ou quer ver seu filho nascendo na merda desse
carro?
Como
naqueles filmes oito milímetros, vi mamãe sendo empurrada por uma enfermeira
velocista numa cadeira de rodas por um corredor branco e imaculado até a sala
do parto, e o papai acendendo um cigarro depois do outro, andando em círculos e
perguntando para qualquer um que usasse roupa branca se eu já tinha nascido.
E
finalmente, depois dos gritos histéricos e das palavras que ia morrer de tanta
dor, nasci de parto normal. Me botaram no colo da mamãe, que tinha seus olhos
fechados depois de tanto esforço. E papai ansioso entrando no quarto, com um
cigarro pela metade esquecido entre os dedos.
E
o médico, constrangido, anunciando em duas secas palavras: Um menino.
Papai
baixando a cabeça e me vendo no colo de mamãe. Cena bucólica, linda, o nascimento da criaturinha que
ficou dentro da mamãe durante nove meses.
Agora
vem a melhor cena do momento. A do papai, quando perguntou à minha mãe:
-
De quem é essa criança?
Mamãe
abrindo os olhos, ainda exausta do trabalhão que teve antes. Ela me olhando e
indagando:
-
Ué, trocaram de bebê no berçário?
O
médico abrindo os braços como Cristo Redentor e exclamando, tentando ser
amigável:
-
É seu filho!
Papai,
sempre tolerante e otimista:
-
Não é possível! Isso aí não pode ser meu filho! - E ele apontando os dedos que ainda seguram o filtro amarelo do cigarro
apagado, berrando: - Com quem andou saindo, Jucilene? Tá me trocando por quem?
Mamãe,
tão doce e maternal:
-
Eu nunca saí com ninguém, Leônidas, se bem que às vezes você mereça mesmo um
par de chifres. Eu tava dormindo quando entrou no quarto... Doutor, chega de
brincadeiras e devolve meu filho, essa coisa deve ser filho de uma doente
mental...
O
médico e uma enfermeira - adoro imaginar que entrou uma enfermeira no meio dessa
conversa civilizada -, convenceram meus preocupados pais que aquela criança
enrugada, com um pedaço do cordão umbilical cortado, era o filho que tanto
esperaram e sonharam durante nove meses. E mamãe, ah, minha querida mamãe, foi
obrigada a contragosto, e com uma leve repulsa, em me dar o bico do seu seio
para minha primeira refeição de nascido.
Essa
cena toda me comove. Deve ter sido também comovente para os meus pais.
E
minha infância... Ah, minha infância, tão doce, tão alegre, quanto
aprendizado...
-
Olha aqui o Sandoval berrando no meu lado! Faça alguma coisa pra calar a boca
desse estrupício, Jucilene!
-
Ele também é teu filho, estou ocupada agora raspando minhas pernas!
-
Você fala que esse mongoloide é meu filho, mas ainda acho que andou abrindo
suas pernas cabeludas pro lixeiro!
-
Você que tem porra rala, e aí, deu no que deu.
E
eu sentadinho no canto da sala, com mucos de catarro escorrendo do nariz,
abrindo o berreiro.
Papai,
sempre paciente com crianças, falando suavemente comigo para me acalmar:
-
Se não ficar quieto agora te jogo pela janela, projeto de monstro!
-
Cortei minha perna com essa gilete cega. E agora não para de sangrar... Por quê
não abortei essa coisa?
Ah,
mamãe, tão zelosa...
Vejo
os anos passando, e com o afeto que recebi dos meus pais foram me transformando
nesse homem maravilhoso que sou hoje. Recordo do meu primeiro quarto, e do medo
que eu tinha do escuro.
-
Papai, deixa a luz acesa?
E
meu pai, compreensivo , de pé no corredor, segurando a maçaneta da porta do meu
quarto:
-
Acha que sou sócio da Light? - ele apertava o interruptor e desligava a luz, e
depois fechava a porta, ignorando meu choro.
E
foram tantas noites que fiquei com os olhos arregalados, buscando um pinguinho
de luz, rezando pra que não viesse nenhum monstro de baixo da cama e puxasse
meus pés...
Ah!
Doces lembranças que não trazem mais aquele passado tão maravilhoso como o que
tive na minha infância.
E
agora me vem, de repente, o dia que ouvi
papai falando com mamãe, enquanto eu rabiscava em um papel no chão da sala de
estar:
-
Tem certeza?
-
Toda certeza.
-
Quantos meses?
-
Dois, conforme o exame.
E
eu sem entender que o teor daquela conversa iria desencadear o meu pesadelo.
Do
cantinho da sala onde costumava ser ignorado, observei mamãe nos dias seguintes
caminhando com dificuldade, sempre botando as mãos nas costas e com sua barriga
crescendo. Intrigado, achei que mamãe devia estar comendo bastante melancia.
Fiquei preocupado, se ela não parasse daquela forma, ia acabar explodindo!
Aí
chegou o fatídico dia! Eu via televisão quando ouvi mamãe gritando o nome do
papai. Ele veio correndo com um macacão sujo de graxa (naquele tempo ainda não
sabia que papai tinha uma oficina mecânica ao lado de casa, e que mais tarde,
eu ia trabalhar lá com ele), e os dois saíram apressados, me largando sozinho
em casa.
Fiquei
sentado no sofá, o que me pareceu uma eternidade, com sede e fome, até que um
amigo de papai entrou em casa e me pegou. Chorei porque achava que ia ser
levado para longe dos meus pais, mas depois fiquei aliviado quando vi meu papai
no seu velho Passat.
No
banco de trás do Passat ouvi papai, agora com uma roupa limpa, falando com seu
amigo que ia de carona:
-
Vão fazer cesariana...
-
Já sabe se é menino ou menina?
-
O que Deus mandar será bem vindo.
Ah,
papai tão católico, tão temente a Deus... E tão mentiroso também!
No
corredor do hospital, eu achei tudo tão limpo e com um cheiro estranho também.
Observei algumas pessoas reclamando com as atendentes do balcão, pais com filhos
que choravam, vi uma mulher pálida de camisola sangrando nas pernas, era tanta
gente que fiquei tonto. Pedi a papai que me levasse ao banheiro, e ele disse
que eu fosse sozinho. E lá foi um menino de cinco anos perambulando sozinho por
um corredor desconhecido, repleto de macas, de médicos, enfermeiras que mal
notavam minha presença. Entrei no banheiro, fui voando na primeira privada que
vi, e vomitei todo almoço. Era o cheiro do hospital que estava me enjoando, mas
se adivinhasse o que viria depois, com certeza, o cheiro do hospital seria
perfume pro meu nariz.
Quando
sai do banheiro, não vi meu pai e nem o amigo dele. Tive certeza que fizeram de
propósito, aproveitaram que fui no banheiro e foram embora. Acreditei mesmo que
o hospital ia ser minha nova casa.
Andei
pelos corredores, atônito e com um nó na garganta, me segurando para não
chorar, e não fazer vexame. Tive impressão que para todas as pessoas que ali
estavam, eu não existia, era invisível. Ninguém
falava comigo, nem davam conta de um menino atarantado perdido em imensos
corredores frios. Não aguentei mais ficar segurando, e desandei no choro,
sentado numa cadeira com uma mulher imensa ao lado com uma menina magrinha no colo.
A menina riu quando me viu chorando, mas não liguei. Quando se tem cinco anos e
é menino, ainda não sabemos que os homens não foram feitos para chorar. Essa
lição aprendi com meu catedrático papai, mais tarde na vida.
Chorei
baixinho, enquanto estava sozinho e invisível, mas meu choro dobrou de intensidade
quando levei um cascudo.
-
Por onde andou, seu melequinha? Tá pensando que tenho tempo pra perder para
ficar te procurando por aí? Juro que na próxima vez te esqueço e te largo
sozinho.
Sempre
papai preocupado com o minha segurança...
Papai
agarrou meu braço raquítico e foi me puxando até uma porta entreaberta. Quando
entramos, fiquei feliz de ver mamãe. Sabia que aquelas melancias iam fazer mal a
ela. Mamãe tava deitada, tinha uma cara cansada, e aquela barrigona sumiu. Uma
enfermeira entrou logo em seguida, e carregava alguma coisa nos braços.
-
Seu filho está com fome, senhora.
Papai
aproximou-se da cama, no instante que mamãe pegava alguma coisa embrulhada em
uma coberta. Papai disse primeiro:
-
Que garoto lindo!
E
mamãe completou:
-
É sua cara, querido.
-
Querida, eu te amo! Obrigado por ter me dado esse presente maravilhoso!
-
Ele é nosso presente, meu amor!
E
eu ali esquecido ao lado da porta, parado e testemunhando aquelas eternas juras
de amor entre papai e mamãe. E no colo dela, meu pior pesadelo.
Meu
irmão Afonsinho.
Quando
mamãe voltou para casa com meu irmãozinho no colo, papai decidiu que algumas
mudanças seriam feitas em casa, para maior conforto e bem estar do
recém-chegado. Enquanto minha mãe estava no hospital, meu pai e dois amigos
dele pintaram o meu quarto, tiraram minha cama e armário, que foi substituído
por um berço, brinquedos, e o quarto pintado de azul. Enquanto eles estavam
entretidos entre pincéis e tintas, fiquei sentado no canto da sala, sozinho,
sem nenhum brinquedo, sem ver televisão que estava desligada, só com um papel
todo rabiscado na mão e um coto de lápis. De onde estava, ninguém me via, mas
eu olhava minhas coisas indo para o quarto de empregada, que antes era um
depósito de materiais de trabalho do meu pai.
E
Afonsinho chegou. E Afonsinho veio reinar a casa. Ele era o epicentro de tudo e
de todos; meus pais o tratavam como um bibelô, um cristal chinês. Quando
Afonsinho chorava, mamãe corria desesperada até ele, e meu pai, lá da oficina
vinha voando apavorado, gritando:
-
Meu tesouro está passando mal, se engasgou com alguma coisa, tá morrendo?? Liga
pro médico, Jucilene, liga logo pra porra do médico!
-
Ele só quer mamar - diagnosticou minha santa mãezinha.
E
ouvia as gargalhadas dos dois, e papai, eternamente preocupado:
-
Cada susto que você nos apronta, tesouro.
E
eu sempre no canto da sala, completamente esquecido. Afonsinho era o tesouro da
casa, e eu, o pirata.
Inesquecível
a minha primeira noite em meu novo quarto. Para mim, um lugar aterrorizante. O
antigo depósito de tralhas do papai se transformou num minúsculo quartinho nos fundos da casa, separada
por um muro que dava em um terreno baldio, onde as pessoas civilizadas do nosso
bairro despejavam seus lixos, uma montanha que aguardava ser recolhida pela Comlurb,
coisa que só acontecia de meses em meses. O quartinho de empregada, com sua
velha porta de madeira descascada e a maçaneta emperrada, nunca fechava por
inteiro. O terror que sentia quando criança eram das baratas que atravessavam o
muro e iam se alojar no meu quarto em estratégicos esconderijos. E era ali, sem
lâmpada no bocal para poder iluminar minhas noites insones, que fui instalado.
No
verão era pior. Enquanto no inverno não via nenhuma barata, no verão, no quarto
sem ventilador (papai instalou um ar condicionado no quarto de Afonsinho, para
que ele não sofresse com o calorão da Zona Norte. Não é comovente? Fico
emocionado quando penso nisso!), eu suava deitado em uma cama estreita e de
colchão fino, castigando minhas costas nos estrados.
E
me veio agora a nítida lembrança daquela primeira noite no quarto. Essa
lembrança é tão real e nítida, que dá a impressão que estou assistindo um filme
em uma tela gigante, só que nesse caso, a tela é a parede de cimento do
cubículo que estou agora.
O
filme preto e branco mostra um menino de cinco anos deitado em uma cama
estreita, enfiado debaixo de um cobertor, apesar do imenso calor que fazia
naquela noite, o corpo inteiro melado de suor. E o indefeso menino escuta
barulhos que vinham de todos lados. Aterrorizado, não se atrevia de olhar pra
ver o que era. Ouviu sons de flap, como asas batendo, e soube, mesmo na sua
idade, que o barulho vinha de baratas voadoras. Protegido pelo cobertor, o
menino tremia, apesar do calorão que fazia. E sentiu, sim, sentiu a coberta
caindo em cima dele. Eram as centenas, milhares de baratas passeando em cima da
sua coberta, as baratas confraternizando, dando boas vindas para o menino escondido,
embaixo de um cobertor puído e velho.
E
o cheiro forte entranhou no seu nariz, e o menino, sem saída, encoberto pelo
breu, rezou; rezou tanto que já nem sabia se rezava direito, misturou o Ave
Maria com o Pai Nosso, e quando sentiu cócegas nos seus pés, gritou alto, um
grito agudo, mas ninguém apareceu para socorrer o menino, nem seu papai e nem
mamãe, porque estavam sentados ao lado do berço de um bebê gordinho e rosado, babando
por ele, rindo com ele, mimando ele...
Vieram
outras noites, e mais outras noites
intermináveis se sucederam até que o garotinho se transformou em um adolescente
de 14 anos. Um rapazinho que foi reprovado três vezes seguidas no colégio, até
que papai, o magnânimo acadêmico, sugeriu:
-
Sandoval, a partir desse ano nada de escola. Você vai trabalhar comigo na
oficina.
Tentei
argumentar, mas minhas palavras não surtiram efeito no papai zeloso que tenho.
-
Não, não vê que é desperdício de tempo você ficar ocupando espaço para uma
criança que realmente queira estudar? Vai trabalhar comigo sim, até mesmo para pagar
a comida que come e o quarto que dorme aqui em casa.
Eu
estudava em colégio público, e larguei na sexta série. E Afonsinho, agora com
nove anos, estudava no melhor colégio particular da cidade.
Para
Afonsinho, tudo. Os melhores brinquedos, um computador novo, as melhores
roupas. E para o Sandoval, a sobra das sobras. Nunca tive um computador, nem
brinquedos, nem roupas novas. As minhas camisas eram puídas, e minha mãe
exemplar só se lembrava de lava-las na máquina de lavar quando ia ao meu
quartinho e as via embrulhadas, esquecidas em cima de um cesto cheio.
E
enquanto eu ajudava meu pai na oficina, meus pais gastavam o que tinham e não
tinham para o conforto de Afonsinho. Um menino mimado, mal educado que desde
cedo aprendeu, era só ficar emburrado ou ameaçar um choro, que vinha tudo na
sua mão.
-
Detesto isso - ele apontava para o prato de salada. - Quero batatas fritas.
E
corria a mamãe alvoroçada preparar batatas fritas ao seu bibelô.
-
Pai, não quero mais esse computador, quero um tablet!
E
papai voava ao banco, contraía mais um empréstimo, e comprava o bendito tablet.
E
Afonsinho, para mim:
-
Limpa meu sapato.
-
Não - eu respondia.
-
LIMPA!!!!!
E
vinha papai ou mamãe, soltavam um cascudo em mim, e diziam:
-
Não contrarie seu irmão. Faça o que ele mandou.
E
eu limpava os sapatos dele, e sentia o riso debochado do meu caridoso irmão.
Eu
era como as baratas do meu quarto de empregada. Lá, elas ficavam escondidas em
frestas, e mesmo com todo veneno que eu jogava, elas sobreviviam. Eu também era
assim. Mesmo com o desprezo que minha família nutria por mim, eu permanecia com
eles. Com o tempo acostumei em ser servil, ser um insignificante, um zero a
esquerda. Nunca tive amigos, ao contrário de Afonsinho, que abarrotava a casa
com seus amigos e se portando como um
líder natural para eles. Eu ouvia meu pai comentando com seus amigos na oficina:
-
Afonsinho veio ao mundo para vencer. Esse sim, é meu orgulho.
E
eu, ao lado dele, encharcado de graxa no macacão, mexendo no motor de um carro,
escutando em silêncio.
O
silêncio era meu refúgio. Era dentro dos meus pensamentos, na minha imaginação,
que habitava em meu mundo particular. Lá não era o Sandoval servil, o escravo;
eu era bem amado, tinha uma mulher linda ao meu lado, meus pais me amavam,
tinham orgulho de mim.
E
assim, dentro dos devaneios, ficava deitado na minha cama, enquanto algumas
baratas desfilavam no chão e no pequeno móvel de três gavetas, sempre me
fazendo companhia.
Acreditei
que minha vida ia prosseguir dessa forma até o dia que Afonsinho, com seus 19
anos e prestes a entrar na faculdade de advocacia, trouxe uma pessoa para
apresentar a família.
E
foi aí que minha vida deu uma cambalhota.
Quando
botei os olhos em Ritinha, com uma graça simples, seu jeito tímido, que sorriu
para mim quando me viu na sala, soube naquele exato momento que me apaixonei
por ela.
E
essa paixão não era gratuita. Enquanto meus pais e meu irmão praticamente
ignoravam minha presença na casa, Ritinha era a única pessoa que me
cumprimentava, que perguntava pela minha saúde, e vejam só, um dia até ELOGIOU
o café que fiz, que servi para ela na xícara para visitas e ela pediu para
repetir.
E
nas noites quentes, deitado na minha cama, com as baratas passeando pelos
cantos dos rodapés, a imagem de Ritinha não saía da minha cabeça. Sonhava
acordado com ela deitada na minha cama, nua, sussurrando no meu ouvido como eu era
um cara bonito, bacana, viril e audacioso. Com Ritinha guardada em meu coração,
nasceu uma força dentro de mim que eu ignorava que houvesse; meu ponto de vista
para minha família transformou-se radicalmente, enxerguei que os vilões da
história eram eles, e que eu sempre fui refém do egoísmo e das maldades
implícitas de Afonsinho.
No
dia que escutei Afonsinho dizendo aquilo ao papai, surtei:
-
Pai, sábado que vem quero anunciar meu noivado com Ritinha para toda família,
inclusive a dela, que também vem.
Meu
dedicado papai deu os parabéns, e minha mamãe mestre da culinária informou que
faria o melhor jantar dos últimos quinze anos.
Enquanto
abraçavam Afonsinho, continuei onde estava, escutando tudo escondido na porta
da cozinha.
E
decidi de que dessa vez Afonsinho não ia mais ganhar a partida do jogo.
Ritinha
era minha.
Por
isso, tomei a decisão mais certa no momento. Ia matar meu irmão caçula. Tipo
Caim e Abel.
Deus
ia me perdoar pelo crime. Porque sabia que eu estaria prestando um grande favor
para a humanidade.
Afonsinho
ia morrer, e seria naquele sábado.
Os
dias que antecederam ao jantar passaram rápido. Enquanto mamãe se descabelava,
preocupada com o jantar, papai nem apareceu na oficina. Soube que tinha ido a
um alfaiate para fazer um terno sob medida, para ele e Afonsinho. Os pais de
Rosinha eram de uma família tradicional, o sobrenome era influente nos altos
escalões. Papai não ia ficar atrás no luxo, só esqueceu um pequeno detalhe: Não
pensaram na minha roupa.
Mamãe,
que sempre padeceu no paraíso, sugeriu:
-
Arruma um trocado pro Sandoval dormir fora...
Papai,
sempre prático:
-
Pra ele, o hotel na Rodoviária vai parecer um cinco estrelas.
Afonsinho,
minha futura vítima:
-
Não, nada disso. Sandoval é importante.
Papai
e mamãe, incrédulos, não disseram nada. Afonsinho explicou:
-
Pra que gastar mais com um garçom, se já temos um em casa?
-
É... pode ser...
-
Pode não, vai ser - disse o meu irmão caçula autoritário.
Acham
que fiquei magoado de ter sido excluído na mesa de jantar? Óbvio que não. Minha
obsessão pela morte do meu irmãozinho Caim era tão grande, que só não comemorei
para não chamar a atenção deles.
E
o veneno estava pronto para o brinde...
Os
convidados foram pontuais. Mais uma vez, quando vi Rosinha deslumbrante no seu
vestido de gala, meu coração parecia que ia sair da boca. Enquanto as duas
famílias conversavam na sala, entre risadas e elogios, eu arrumava a bandeja na
cozinha com as bebidas.
Papai
comprou uma dúzia de garrafas de champanhe. Pra mim, dinheiro jogado fora. Não
iam passar da primeira garrafa...
Enchi
duas taças com a bebida, e uma delas batizei com o veneno. Eu parecia aqueles
coadjuvantes em filmes B de Hollywood. Meteram uma roupa branca e gravata
borboleta que cismou em ficar torta no meu gogó, mas aos que não me conheciam,
eu podia passar por esse papel ridículo de garçom de quinta.
Entrei
na sala, equilibrando a bandeja com as duas taças. Entreguei a batizada a
Afonsinho, enquanto Rosinha pegou a outra e agradeceu. Afonsinho também
agradeceu:
-
Obrigado, zé mané!
Nem
me importei com o elogio, fui para a cozinha e deixei a bandeja em cima da
mesa. Voltei para a porta, e esperei o cronograma do pedido:
-
Senhor e senhora Bentes, peço a mão da sua filha em casamento...
-
Sim, com todo gosto - disse o pai de Rosinha, o meu futuro sogro.
Afonsinho
ergueu sua taça e Rosinha fez o mesmo.
Que
suspense delicioso! Eu visualizei o desfecho desse drama mexicano, e me sentia
o mocinho da novela, que no último capítulo acaba com o vilão e fatura a
mocinha.
Afonsinho
virou lentamente o cálice com a bebida batizada, quando...
Quando?
Quando? Quando?
O
trapalhão do papai, digno para contracenar na novela como o sujeito desastrado,
foi apertar a mão do meu futuro sogro e sem querer, esbarrou com seu braço de
mecânico suburbano no ombro delicado da minha Julieta.
A
taça escapou da sua mão, e se espatifou aos seus pés. Me deu um aperto no coração
quando vi aquela cena. Meu desastrado papai pediu mil desculpas, Rosinha
argumentou que não era nada, e eu ia voltando para levar outra taça quando
ouvi:
-
Amor, pegue a minha.
Afonsinho
estendeu sua taça batizada para minha Dulcinéia del Toboso, que aceitou de bom
grado, educada como era.
Era.
Gelei.
O
ato dela virando a taça correu em uma eternidade. Como se tivesse sido
contagiado pela câmera lenta, tentei correr e impedir o lance final.
Meus
pés pareciam colados no chão. Não sai do lugar.
O
grupo aplaudiu o gesto nobre do meu irmão sortudo.
Quis
gritar. Mas nenhum som veio.
Minha
Desdêmona bebeu a champanhe como uma sedenta no meio do deserto. Em três goles,
esvaziou a taça.
E
não demorou muito, tossiu.
E
ficou sem ar. Pôs as mãos na garganta, como se tivesse engolido algum pedaço de
carne e entalou na sua traquéia.
Ninguém
se mexeu, o grupo era uma plateia que assistia um espetáculo teatral.
Uma
tragédia de Shakespeare.
Depois
de adulto, ignorei a lição do meu catedrático papai. Chorei.
Chorei
enquanto via minha amada caindo no chão, e deitada, estrebuchando.
Tremia
como se tivesse tendo um ataque epilético
Mas
não era epilepsia.
Afonsinho
dobrou os joelhos e tentou acudi-la.
Cheguei
ao lado e pude ver seu rosto inocente azulado.
Não
demorou muito, e a perdi para sempre.
Afonsinho
se levantou e virou-se para mim. Gritou:
-
Desgraçado! Seu retardado! Quis me matar, mas como sempre, se deu mal!
E depois do soco que levei dele, não me lembro de mais nada, .
Depois
disso, já se passou algum tempo. Nunca mais vi meus pais, e nem Afonsinho.
Soube por um carcereiro que meu irmão caçula foi eleito deputado federal mais votado
no Brasil. E agora ficou noivo da filha de um Ministro de Brasília. Bem
que meu profeta papai disse: Afonsinho ia ser alguém na vida.
E
eu... Bem, depois do que houve, fui excluído definitivamente da família.
Enquanto
eles estão bem, conto meus dias para sair daqui.
Um
detalhe para não me esquecer. Graças à influência que meu irmão emana nos
órgãos judiciais do País, minha estadia na colônia de férias tem sido a pior
possível.
Só
não morri esfaqueado por um detento ou numa cilada no pátio, é que meu sexto
sentido é forte.
Mas
não conto muito com a eterna sorte. Tanto que estou aqui agora, nesse cubículo
fedendo a mijo e merda.
Se
quiserem me esquecer aqui, esquecem.
Podem
envenenar minha comida. Ou simplesmente esquecer de trazer minha ração.
Afonsinho
foi um menino mimado. Teve tudo que quis.
Só
omiti que é rancoroso. E vingativo.
Olha
lá, não demoraram muito. Sentiram meu cheiro.
Dezenas
de baratas saindo do buraco. Agora desfilam ao lado dos meus pés.
Reconhecendo
o terreno.
Fazer
o quê?
Elas são as únicas que se lembram de mim.
Que sempre me fazem companhia.
Rogerio
de C. Ribeiro
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