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quinta-feira, 12 de junho de 2014

AS BARATAS


Me botaram num lugar que fede. O fedor de mijo e merda vem do buraco ali no canto. Os caras lá foram devem chamar isso de banheiro. Aposto qualquer coisa que desse buraco deve sair ratos, ou ratazanas do tamanho de um cachorro pinsher. Sinceramente, não é com cheiro do mijo e nem dos ratos que me preocupa agora. O que me apavora mesmo são as baratas; essas sim. Agora não tô vendo nenhuma, mas com certeza, quando escurecer, elas vão aparecer. Elas nunca me abandonam; aonde eu estiver, elas vem. Sempre em bando. As baratas me acompanham desde criança, há quinhentos anos atrás. E nunca consegui me livrar delas!
Disseram que estou de castigo porque me comportei mal na hora do almoço. Eles queriam o quê? O cara ia me pegar a força. Falou que sou frouxo, trouxa e tinha que servi-lo. Ora bolas, posso ter entrado agora, mas durante minha vida miserável já apanhei o suficiente para cinco gerações inteiras, e não é um cara que nunca vi na vida que vai se dar bem em cima de mim, me enrabar, sem que eu me defenda.
Antigamente  baixei minha cabeça várias vezes, sempre obedecendo as ordens do meu pai, e não me rebelei por isso. Aceitei tudo, primeiro porque sou o filho mais velho, e depois, porque fui educado dessa forma, para  servir minha família sem questionar as ordens.
Mas no momento que me revoltei, quando chutei o balde, deu no que deu. Senhoras e senhores, eis aqui o grandessíssimo idiota, Sandoval Pereira, trancado de castigo, pelas peraltices que cometeu, e que agora tem como  companhia, os ratos, ratazanas, e pra completar a salada mista,  as baratas.
Se tivesse qualquer coisa para tampar esse buraco que fede a mijo e merda, eu botava em cima, e pra mijar ou cagar  me virava aqui mesmo. Mas como não tem nada, só resta mesmo  é ficar aqui sentadinho, esperando que passe logo o tempo pra voltar na minha cela.
Meu único passatempo agora, enquanto estou pagando meu castigo de ter sido um menino rebelde que se diverte de furar olhos de caras que acreditam que o seu cu é público, é pensar. Preciso pensar mesmo, para provar aos outros que não sou esse maluco como meus adorados e dedicados pais e meu idolatrado e fabuloso irmão caçula pintaram, quando vim pra cá.
Pensar em quê? Na minha vida? Chega a ser comédia, estou agindo exatamente como eles mandaram fazer. Papai me disse, com emocionante ternura e mostrando o quanto me amava:
-  A partir de agora, o senhor vai ter bastante tempo pra pensar na merda que fez!
É, paizinho, agora tenho a eternidade toda para pensar. E se duvidar, ainda repensar milhares de vezes. Estou aprendendo que aqui é um lugar onde não se pode falar muito, que aqui o silêncio vale ouro, e que só resta mesmo pensar e lembrar da merda que fiz.
Imagino quando mamãe engravidou de mim. Quando criança, viajava no meu quartinho, enquanto não vinha meu sono. Nos meus pensamentos, via mamãe grávida, indo para o hospital com papai dirigindo seu  velho Passat, pisando fundo no acelerador, ultrapassando Fuscas, Chevettes, Opalas, furando sinais vermelhos, enquanto mamãe gemia, soprava e gritava:
- Corra mais rápido, imbecil, ou quer ver seu filho nascendo na merda desse carro?
Como naqueles filmes oito milímetros, vi mamãe sendo empurrada por uma enfermeira velocista numa cadeira de rodas por um corredor branco e imaculado até a sala do parto, e o papai acendendo um cigarro depois do outro, andando em círculos e perguntando para qualquer um que usasse roupa branca se eu já tinha nascido.
E finalmente, depois dos gritos histéricos e das palavras que ia morrer de tanta dor, nasci de parto normal. Me botaram no colo da mamãe, que tinha seus olhos fechados depois de tanto esforço. E papai ansioso entrando no quarto, com um cigarro pela metade esquecido entre os dedos.
E o médico, constrangido, anunciando em duas secas palavras: Um menino.
Papai baixando a cabeça e me vendo no colo de mamãe. Cena bucólica,    linda, o nascimento da criaturinha que ficou dentro da mamãe durante nove meses.
Agora vem a melhor cena do momento. A do papai, quando perguntou à minha mãe:
- De quem é essa criança?
Mamãe abrindo os olhos, ainda exausta do trabalhão que teve antes. Ela me olhando e indagando:
- Ué, trocaram de bebê no berçário?
O médico abrindo os braços como Cristo Redentor e exclamando, tentando ser amigável:
- É seu filho!
Papai, sempre tolerante e otimista:
- Não é possível! Isso aí não pode ser meu filho! - E ele  apontando os dedos  que ainda seguram o filtro amarelo do cigarro apagado, berrando: - Com quem andou saindo, Jucilene? Tá me trocando por quem?
Mamãe, tão doce e maternal:
- Eu nunca saí com ninguém, Leônidas, se bem que às vezes você mereça mesmo um par de chifres. Eu tava dormindo quando entrou no quarto... Doutor, chega de brincadeiras e devolve meu filho, essa coisa deve ser filho de uma doente mental...
O médico e uma enfermeira - adoro imaginar que entrou uma enfermeira no meio dessa conversa civilizada -, convenceram meus preocupados pais que aquela criança enrugada, com um pedaço do cordão umbilical cortado, era o filho que tanto esperaram e sonharam durante nove meses. E mamãe, ah, minha querida mamãe, foi obrigada a contragosto, e com uma leve repulsa, em me dar o bico do seu seio para minha primeira refeição de nascido.
Essa cena toda me comove. Deve ter sido também comovente para os meus pais.
E minha infância... Ah, minha infância, tão doce, tão alegre, quanto aprendizado...
- Olha aqui o Sandoval berrando no meu lado! Faça alguma coisa pra calar a boca desse estrupício, Jucilene!
- Ele também é teu filho, estou ocupada agora raspando minhas pernas!
- Você fala que esse mongoloide é meu filho, mas ainda acho que andou abrindo suas pernas cabeludas pro lixeiro!
- Você que tem porra rala, e aí, deu no que deu.
E eu sentadinho no canto da sala, com mucos de catarro escorrendo do nariz, abrindo o berreiro.
Papai, sempre paciente com crianças, falando suavemente comigo para me acalmar:
- Se não ficar quieto agora te jogo pela janela, projeto de monstro!
- Cortei minha perna com essa gilete cega. E agora não para de sangrar... Por quê não abortei essa coisa?
Ah, mamãe, tão zelosa...
Vejo os anos passando, e com o afeto que recebi dos meus pais foram me transformando nesse homem maravilhoso que sou hoje. Recordo do meu primeiro quarto, e do medo que eu tinha do escuro.
- Papai, deixa a luz acesa?
E meu pai, compreensivo , de pé no corredor, segurando a maçaneta da porta do meu quarto:
- Acha que sou sócio da Light? - ele apertava o interruptor e desligava a luz, e depois fechava a porta, ignorando meu choro.
E foram tantas noites que fiquei com os olhos arregalados, buscando um pinguinho de luz, rezando pra que não viesse nenhum monstro de baixo da cama e puxasse meus pés...
Ah! Doces lembranças que não trazem mais aquele passado tão maravilhoso como o que tive na minha infância.
E agora me vem, de repente,  o dia que ouvi papai falando com mamãe, enquanto eu rabiscava em um papel no chão da sala de estar:
- Tem certeza?
- Toda certeza.
- Quantos meses?
- Dois, conforme o exame.
E eu sem entender que o teor daquela conversa iria desencadear o meu pesadelo.
Do cantinho da sala onde costumava ser ignorado, observei mamãe nos dias seguintes caminhando com dificuldade, sempre botando as mãos nas costas e com sua barriga crescendo. Intrigado, achei que mamãe devia estar comendo bastante melancia. Fiquei preocupado, se ela não parasse daquela forma, ia acabar explodindo!
Aí chegou o fatídico dia! Eu via televisão quando ouvi mamãe gritando o nome do papai. Ele veio correndo com um macacão sujo de graxa (naquele tempo ainda não sabia que papai tinha uma oficina mecânica ao lado de casa, e que mais tarde, eu ia trabalhar lá com ele), e os dois saíram apressados, me largando sozinho em casa.
Fiquei sentado no sofá, o que me pareceu uma eternidade, com sede e fome, até que um amigo de papai entrou em casa e me pegou. Chorei porque achava que ia ser levado para longe dos meus pais, mas depois fiquei aliviado quando vi meu papai no seu velho Passat.
No banco de trás do Passat ouvi papai, agora com uma roupa limpa, falando com seu amigo que ia de carona:
- Vão fazer cesariana...
- Já sabe se é menino ou menina?
- O que Deus mandar será bem vindo.
Ah, papai tão católico, tão temente a Deus... E tão mentiroso também!
No corredor do hospital, eu achei tudo tão limpo e com um cheiro estranho também. Observei algumas pessoas reclamando com as atendentes do balcão, pais com filhos que choravam, vi uma mulher pálida de camisola sangrando nas pernas, era tanta gente que fiquei tonto. Pedi a papai que me levasse ao banheiro, e ele disse que eu fosse sozinho. E lá foi um menino de cinco anos perambulando sozinho por um corredor desconhecido, repleto de macas, de médicos, enfermeiras que mal notavam minha presença. Entrei no banheiro, fui voando na primeira privada que vi, e vomitei todo almoço. Era o cheiro do hospital que estava me enjoando, mas se adivinhasse o que viria depois, com certeza, o cheiro do hospital seria perfume pro meu nariz.
Quando sai do banheiro, não vi meu pai e nem o amigo dele. Tive certeza que fizeram de propósito, aproveitaram que fui no banheiro e foram embora. Acreditei mesmo que o hospital ia ser minha nova casa.
Andei pelos corredores, atônito e com um nó na garganta, me segurando para não chorar, e não fazer vexame. Tive impressão que para todas as pessoas que ali estavam, eu não existia, era invisível.  Ninguém falava comigo, nem davam conta de um menino atarantado perdido em imensos corredores frios. Não aguentei mais ficar segurando, e desandei no choro, sentado numa cadeira com uma mulher imensa ao lado com uma menina magrinha no colo. A menina riu quando me viu chorando, mas não liguei. Quando se tem cinco anos e é menino, ainda não sabemos que os homens não foram feitos para chorar. Essa lição aprendi com meu catedrático papai, mais tarde na vida.
Chorei baixinho, enquanto estava sozinho e invisível, mas meu choro dobrou de intensidade quando levei um cascudo.
- Por onde andou, seu melequinha? Tá pensando que tenho tempo pra perder para ficar te procurando por aí? Juro que na próxima vez te esqueço e te largo sozinho.
Sempre papai preocupado com o minha segurança...
Papai agarrou meu braço raquítico e foi me puxando até uma porta entreaberta. Quando entramos, fiquei feliz de ver mamãe. Sabia que aquelas melancias iam fazer mal a ela. Mamãe tava deitada, tinha uma cara cansada, e aquela barrigona sumiu. Uma enfermeira entrou logo em seguida, e carregava alguma coisa nos braços.
- Seu filho está com fome, senhora.
Papai aproximou-se da cama, no instante que mamãe pegava alguma coisa embrulhada em uma coberta. Papai disse primeiro:
- Que garoto lindo!
E mamãe completou:
- É sua cara, querido.
- Querida, eu te amo! Obrigado por ter me dado esse presente maravilhoso!
- Ele é nosso presente, meu amor!
E eu ali esquecido ao lado da porta, parado e testemunhando aquelas eternas juras de amor entre papai e mamãe. E no colo dela, meu pior pesadelo.
Meu irmão Afonsinho.
Quando mamãe voltou para casa com meu irmãozinho no colo, papai decidiu que algumas mudanças seriam feitas em casa, para maior conforto e bem estar do recém-chegado. Enquanto minha mãe estava no hospital, meu pai e dois amigos dele pintaram o meu quarto, tiraram minha cama e armário, que foi substituído por um berço, brinquedos, e o quarto pintado de azul. Enquanto eles estavam entretidos entre pincéis e tintas, fiquei sentado no canto da sala, sozinho, sem nenhum brinquedo, sem ver televisão que estava desligada, só com um papel todo rabiscado na mão e um coto de lápis. De onde estava, ninguém me via, mas eu olhava minhas coisas indo para o quarto de empregada, que antes era um depósito de materiais de trabalho do meu pai.
E Afonsinho chegou. E Afonsinho veio reinar a casa. Ele era o epicentro de tudo e de todos; meus pais o tratavam como um bibelô, um cristal chinês. Quando Afonsinho chorava, mamãe corria desesperada até ele, e meu pai, lá da oficina vinha voando apavorado, gritando:
- Meu tesouro está passando mal, se engasgou com alguma coisa, tá morrendo?? Liga pro médico, Jucilene, liga logo pra porra do médico!
- Ele só quer mamar - diagnosticou minha santa mãezinha.
E ouvia as gargalhadas dos dois, e papai, eternamente preocupado:
- Cada susto que você nos apronta, tesouro.
E eu sempre no canto da sala, completamente esquecido. Afonsinho era o tesouro da casa, e eu, o pirata.
Inesquecível a minha primeira noite em meu novo quarto. Para mim, um lugar aterrorizante. O antigo depósito de tralhas do papai se transformou  num minúsculo quartinho nos fundos da casa, separada por um muro que dava em um terreno baldio, onde as pessoas civilizadas do nosso bairro despejavam seus lixos, uma montanha que aguardava ser recolhida pela Comlurb, coisa que só acontecia de meses em meses. O quartinho de empregada, com sua velha porta de madeira descascada e a maçaneta emperrada, nunca fechava por inteiro. O terror que sentia quando criança eram das baratas que atravessavam o muro e iam se alojar no meu quarto em estratégicos esconderijos. E era ali, sem lâmpada no bocal para poder iluminar minhas noites insones, que fui instalado.
No verão era pior. Enquanto no inverno não via nenhuma barata, no verão, no quarto sem ventilador (papai instalou um ar condicionado no quarto de Afonsinho, para que ele não sofresse com o calorão da Zona Norte. Não é comovente? Fico emocionado quando penso nisso!), eu suava deitado em uma cama estreita e de colchão fino, castigando minhas costas nos estrados.
E me veio agora a nítida lembrança daquela primeira noite no quarto. Essa lembrança é tão real e nítida, que dá a impressão que estou assistindo um filme em uma tela gigante, só que nesse caso, a tela é a parede de cimento do cubículo que estou agora.
O filme preto e branco mostra um menino de cinco anos deitado em uma cama estreita, enfiado debaixo de um cobertor, apesar do imenso calor que fazia naquela noite, o corpo inteiro melado de suor. E o indefeso menino escuta barulhos que vinham de todos lados. Aterrorizado, não se atrevia de olhar pra ver o que era. Ouviu sons de flap, como asas batendo, e soube, mesmo na sua idade, que o barulho vinha de baratas voadoras. Protegido pelo cobertor, o menino tremia, apesar do calorão que fazia. E sentiu, sim, sentiu a coberta caindo em cima dele. Eram as centenas, milhares de baratas passeando em cima da sua coberta, as baratas confraternizando, dando boas vindas para o menino escondido, embaixo de um cobertor puído e velho.
E o cheiro forte entranhou no seu nariz, e o menino, sem saída, encoberto pelo breu, rezou; rezou tanto que já nem sabia se rezava direito, misturou o Ave Maria com o Pai Nosso, e quando sentiu cócegas nos seus pés, gritou alto, um grito agudo, mas ninguém apareceu para socorrer o menino, nem seu papai e nem mamãe, porque estavam sentados ao lado do berço de um bebê gordinho e rosado, babando por ele, rindo com ele, mimando ele...
Vieram outras noites, e  mais outras noites intermináveis se sucederam até que o garotinho se transformou em um adolescente de 14 anos. Um rapazinho que foi reprovado três vezes seguidas no colégio, até que papai, o magnânimo acadêmico, sugeriu:
- Sandoval, a partir desse ano nada de escola. Você vai trabalhar comigo na oficina.
Tentei argumentar, mas minhas palavras não surtiram efeito no papai zeloso que tenho.
- Não, não vê que é desperdício de tempo você ficar ocupando espaço para uma criança que realmente queira estudar? Vai trabalhar comigo sim, até mesmo para pagar a comida que come e o quarto que dorme aqui em casa.
Eu estudava em colégio público, e larguei na sexta série. E Afonsinho, agora com nove anos, estudava no melhor colégio particular da cidade.
Para Afonsinho, tudo. Os melhores brinquedos, um computador novo, as melhores roupas. E para o Sandoval, a sobra das sobras. Nunca tive um computador, nem brinquedos, nem roupas novas. As minhas camisas eram puídas, e minha mãe exemplar só se lembrava de lava-las na máquina de lavar quando ia ao meu quartinho e as via embrulhadas, esquecidas em cima de um cesto cheio.
E enquanto eu ajudava meu pai na oficina, meus pais gastavam o que tinham e não tinham para o conforto de Afonsinho. Um menino mimado, mal educado que desde cedo aprendeu, era só ficar emburrado ou ameaçar um choro, que vinha tudo na sua mão.
- Detesto isso - ele apontava para o prato de salada. - Quero batatas fritas.
E corria a mamãe alvoroçada preparar batatas fritas ao seu bibelô.
- Pai, não quero mais esse computador, quero um tablet!
E papai voava ao banco, contraía mais um empréstimo, e comprava o bendito tablet.
E Afonsinho, para mim:
- Limpa meu sapato.
- Não - eu respondia.
- LIMPA!!!!!
E vinha papai ou mamãe, soltavam um cascudo em mim, e diziam:
- Não contrarie seu irmão. Faça o que ele mandou.
E eu limpava os sapatos dele, e sentia o riso debochado do meu caridoso irmão.
Eu era como as baratas do meu quarto de empregada. Lá, elas ficavam escondidas em frestas, e mesmo com todo veneno que eu jogava, elas sobreviviam. Eu também era assim. Mesmo com o desprezo que minha família nutria por mim, eu permanecia com eles. Com o tempo acostumei em ser servil, ser um insignificante, um zero a esquerda. Nunca tive amigos, ao contrário de Afonsinho, que abarrotava a casa com seus amigos  e se portando como um líder natural para eles. Eu ouvia meu pai comentando com seus amigos na oficina:
- Afonsinho veio ao mundo para vencer. Esse sim, é meu orgulho.
E eu, ao lado dele, encharcado de graxa no macacão, mexendo no motor de um carro, escutando em silêncio.
O silêncio era meu refúgio. Era dentro dos meus pensamentos, na minha imaginação, que habitava em meu mundo particular. Lá não era o Sandoval servil, o escravo; eu era bem amado, tinha uma mulher linda ao meu lado, meus pais me amavam, tinham orgulho de mim.
E assim, dentro dos devaneios, ficava deitado na minha cama, enquanto algumas baratas desfilavam no chão e no pequeno móvel de três gavetas, sempre me fazendo companhia.
Acreditei que minha vida ia prosseguir dessa forma até o dia que Afonsinho, com seus 19 anos e prestes a entrar na faculdade de advocacia, trouxe uma pessoa para apresentar a família.
E foi aí que minha vida deu uma cambalhota.
Quando botei os olhos em Ritinha, com uma graça simples, seu jeito tímido, que sorriu para mim quando me viu na sala, soube naquele exato momento que me apaixonei por ela.
E essa paixão não era gratuita. Enquanto meus pais e meu irmão praticamente ignoravam minha presença na casa, Ritinha era a única pessoa que me cumprimentava, que perguntava pela minha saúde, e vejam só, um dia até ELOGIOU o café que fiz, que servi para ela na xícara para visitas e ela pediu para repetir.
E nas noites quentes, deitado na minha cama, com as baratas passeando pelos cantos dos rodapés, a imagem de Ritinha não saía da minha cabeça. Sonhava acordado com ela deitada na minha cama, nua, sussurrando no meu ouvido como eu era um cara bonito, bacana, viril e audacioso. Com Ritinha guardada em meu coração, nasceu uma força dentro de mim que eu ignorava que houvesse; meu ponto de vista para minha família transformou-se radicalmente, enxerguei que os vilões da história eram eles, e que eu sempre fui refém do egoísmo e das maldades implícitas de Afonsinho.
No dia que escutei Afonsinho dizendo aquilo ao papai, surtei:
- Pai, sábado que vem quero anunciar meu noivado com Ritinha para toda família, inclusive a dela, que também vem.
Meu dedicado papai deu os parabéns, e minha mamãe mestre da culinária informou que faria o melhor jantar dos últimos quinze anos.
Enquanto abraçavam Afonsinho, continuei onde estava, escutando tudo escondido na porta da cozinha.
E decidi de que dessa vez Afonsinho não ia mais ganhar a partida do jogo.
Ritinha era minha.
Por isso, tomei a decisão mais certa no momento. Ia matar meu irmão caçula. Tipo Caim e Abel.
Deus ia me perdoar pelo crime. Porque sabia que eu estaria prestando um grande favor para a humanidade.
Afonsinho ia morrer, e seria naquele sábado.
Os dias que antecederam ao jantar passaram rápido. Enquanto mamãe se descabelava, preocupada com o jantar, papai nem apareceu na oficina. Soube que tinha ido a um alfaiate para fazer um terno sob medida, para ele e Afonsinho. Os pais de Rosinha eram de uma família tradicional, o sobrenome era influente nos altos escalões. Papai não ia ficar atrás no luxo, só esqueceu um pequeno detalhe: Não pensaram na minha roupa.
Mamãe, que sempre padeceu no paraíso, sugeriu:
- Arruma um trocado pro Sandoval dormir fora...
Papai, sempre prático:
- Pra ele, o hotel na Rodoviária vai parecer um cinco estrelas.
Afonsinho, minha futura vítima:
- Não, nada disso. Sandoval é importante.
Papai e mamãe, incrédulos, não disseram nada. Afonsinho explicou:
- Pra que gastar mais com um garçom, se já temos um em casa?
- É... pode ser...
- Pode não, vai ser - disse o meu irmão caçula autoritário.
Acham que fiquei magoado de ter sido excluído na mesa de jantar? Óbvio que não. Minha obsessão pela morte do meu irmãozinho Caim era tão grande, que só não comemorei para não chamar a atenção deles.
E o veneno estava pronto para o brinde...
Os convidados foram pontuais. Mais uma vez, quando vi Rosinha deslumbrante no seu vestido de gala, meu coração parecia que ia sair da boca. Enquanto as duas famílias conversavam na sala, entre risadas e elogios, eu arrumava a bandeja na cozinha com as bebidas.
Papai comprou uma dúzia de garrafas de champanhe. Pra mim, dinheiro jogado fora. Não iam passar da primeira garrafa...
Enchi duas taças com a bebida, e uma delas batizei com o veneno. Eu parecia aqueles coadjuvantes em filmes B de Hollywood. Meteram uma roupa branca e gravata borboleta que cismou em ficar torta no meu gogó, mas aos que não me conheciam, eu podia passar por esse papel ridículo de garçom de quinta.
Entrei na sala, equilibrando a bandeja com as duas taças. Entreguei a batizada a Afonsinho, enquanto Rosinha pegou a outra e agradeceu. Afonsinho também agradeceu:
- Obrigado, zé mané!
Nem me importei com o elogio, fui para a cozinha e deixei a bandeja em cima da mesa. Voltei para a porta, e esperei o cronograma do pedido:
- Senhor e senhora Bentes, peço a mão da sua filha em casamento...
- Sim, com todo gosto - disse o pai de Rosinha, o meu futuro sogro.
Afonsinho ergueu sua taça e Rosinha fez o mesmo.
Que suspense delicioso! Eu visualizei o desfecho desse drama mexicano, e me sentia o mocinho da novela, que no último capítulo acaba com o vilão e fatura a mocinha.
Afonsinho virou lentamente o cálice com a bebida batizada, quando...
Quando? Quando? Quando?
O trapalhão do papai, digno para contracenar na novela como o sujeito desastrado, foi apertar a mão do meu futuro sogro e sem querer, esbarrou com seu braço de mecânico suburbano no ombro delicado da minha Julieta.
A taça escapou da sua mão, e se espatifou aos seus pés. Me deu um aperto no coração quando vi aquela cena. Meu desastrado papai pediu mil desculpas, Rosinha argumentou que não era nada, e eu ia voltando para levar outra taça quando ouvi:
- Amor, pegue a minha.
Afonsinho estendeu sua taça batizada para minha Dulcinéia del Toboso, que aceitou de bom grado, educada como era.
Era.
Gelei.
O ato dela virando a taça correu em uma eternidade. Como se tivesse sido contagiado pela câmera lenta, tentei correr e impedir o lance final.
Meus pés pareciam colados no chão. Não sai do lugar.
O grupo aplaudiu o gesto nobre do meu irmão sortudo.
Quis gritar. Mas nenhum som veio.
Minha Desdêmona bebeu a champanhe como uma sedenta no meio do deserto. Em três goles, esvaziou a taça.
E não demorou muito, tossiu.
E ficou sem ar. Pôs as mãos na garganta, como se tivesse engolido algum pedaço de carne e entalou na sua traquéia.
Ninguém se mexeu, o grupo era uma plateia que assistia um espetáculo teatral.
Uma tragédia de Shakespeare.
Depois de adulto, ignorei a lição do meu catedrático papai. Chorei.
Chorei enquanto via minha amada caindo no chão, e deitada, estrebuchando.
Tremia como se tivesse tendo um ataque epilético
Mas não era epilepsia.
Afonsinho dobrou os joelhos e tentou acudi-la.
Cheguei ao lado e pude ver seu rosto inocente azulado.
Não demorou muito, e a perdi para sempre.
Afonsinho se levantou e virou-se para mim. Gritou:
- Desgraçado! Seu retardado! Quis me matar, mas como sempre, se deu mal!
depois do soco que levei dele, não me lembro de mais nada, .
Depois disso, já se passou algum tempo. Nunca mais vi meus pais, e nem Afonsinho. Soube por um carcereiro que meu irmão caçula foi eleito deputado federal mais votado no Brasil. E agora ficou noivo da filha de um Ministro de Brasília. Bem que meu profeta papai disse: Afonsinho ia ser alguém na vida.
E eu... Bem, depois do que houve, fui excluído definitivamente da família.
Enquanto eles estão bem, conto meus dias para sair daqui.
Um detalhe para não me esquecer. Graças à influência que meu irmão emana nos órgãos judiciais do País, minha estadia na colônia de férias tem sido a pior possível.
Só não morri esfaqueado por um detento ou numa cilada no pátio, é que meu sexto sentido é forte.
Mas não conto muito com a eterna sorte. Tanto que estou aqui agora, nesse cubículo fedendo a mijo e merda.
Se quiserem me esquecer aqui, esquecem.
Podem envenenar minha comida. Ou simplesmente esquecer de trazer minha ração.
Afonsinho foi um menino mimado. Teve tudo que quis.
Só omiti que é rancoroso. E vingativo.
Olha lá, não demoraram muito. Sentiram meu cheiro.
Dezenas de baratas saindo do buraco. Agora desfilam ao lado dos meus pés.
Reconhecendo o terreno.
Fazer o quê?
Elas são as únicas que se lembram de mim.
Que sempre me fazem companhia.



Rogerio de C. Ribeiro


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