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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 9

No capítulo anterior: Aurélio se encontra com Xavier, que se diz intermediário de um construtor espanhol e quer comprar o casarão da família. Ele recebe uma proposta tentadora, e fará de tudo que sua esposa aceite a proposta da compra.

Sua mala estava aberta sobre a cama e Fernanda retirou o último dos três vestidos compridos que tinha e pendurou no cabide do armário. Depois pegou suas roupas íntimas e acomodou na primeira gaveta. Dona Vera arrumara uma caixa de papelão que Fernanda virou-a de cabeça para baixo e improvisou uma mesinha ao lado da cama, onde largou uma bíblia em cima.
Dona Vera também tinha providenciado um uniforme. Seria com esse que ia ter que usar até segunda-feira, quando sua patroa trariam outros para substituir os sujos.
Fernanda arrancou o vestido que usava e se olhou no espelho da porta do armário. O corpo dela não era gordo e nem magro, tinha cintura e seus seios eram pequenos e firmes. Ela acariciou os mamilos até endurecerem e desceu os dedos até os pelos pubianos. Um leve arrepio correu pelo corpo e os pelinhos dos braços arrepiaram. Ela sorriu. Gostava de se acariciar. De se sentir.
Pegou o uniforme e vestiu. Agora era apenas a empregada insignificante. Aquela que ninguém presta atenção. Enquanto os patrões conversam na mesa de jantar, a empregada é a sombra que circula entre eles e nunca é notada, a não ser que queiram que cumpra alguma ordem.
O uniforme era preto de golas brancas e um avental da mesma cor. Ajeitou o coque do cabelo com grampos, exibiu os dentes e viu que estavam limpos. Calçou uma sandália branca e saiu do quarto.
Ainda não se acostumara com o tamanho da cozinha. Sentia-se um pouco perdida. Em cima da mesa, dona Vera deixara um bilhete. Ela pegou e leu:
"O cardápio da semana inteira está dentro do armário, junto com a lista de remédios da minha mãe. No cardápio, vai saber os horários das refeições e os pratos que deve fazer. Se não tiver algum ingrediente necessário, você vai compra-lo na mercearia do Marquinhos, na primeira rua à esquerda. Só botar na conta. Já falei com ele que você substituiu Belinda. Você só precisa se identificar para pegar a mercadoria que falta. Atenção: Nunca deixe para comprar depois. Viu que falta, desça a rua e compre. Se deixar para depois, pode correr o risco de esquecer. Faça exatamente como estou mandando para que não haja surpresas desagradáveis."
Fernanda leu e releu o bilhete. A expressão do seu rosto, de pacífico, se transformou. Ela amassou o bilhete e guardou-o no bolso do avental. Suas feições voltaram a ficar serenos. Ela sorriu. Caminhou pelo piso sujo até que chegou no armário. Pegou o cardápio e leu o que ela queria para a janta.
- Sem problemas, dona Vera - sussurrou a moça, guardando o cardápio no lugar que pegou. - Prometo que a senhora não vai ficar decepcionada com meu serviço. O que a senhora disser, faço sem nenhum erro. Afinal de contas, a senhora é a patroa, é quem manda.
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Fernanda preparou o jantar e viu que tinha tempo de sobra para ver dona Vitória. Foi ao quarto da velha senhora e a encontrou sozinha, na sua cadeira de rodas, aparentemente assistindo televisão.
Quando dona Vitória a viu, voltou aquele sorriso vazio. Fernanda também sorriu; puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dela. A velha estendeu as mãos e Fernanda as segurou. O rosto da moça era cândido, puro, inocente.
Fazia bastante tempo que não via um anjo em forma de gente, pensou dona Vitória. Essa menina... Lembra tanto alguém que conhece... Como era mesmo seu nome? Ferpa? Ferpita? Às vezes sua memória falhava, mas tinha alguma coisa a ver com Ferpa...
Fernanda acariciou as mãos da velha senhora e disse, suavemente:
- A partir de hoje sempre estarei ao seu lado. Você vai se enjoar de tanto me ver. Gostou de mim, dona Vitória?
A velha escutou: Gastou no alguma coisa... A menina sorria para ela... Que sorriso bondoso!
- A senhora tem dificuldades na fala, dona Vitória? Que houve? O gato comeu sua língua? - Fernanda disse, ainda suavemente, enquanto acariciava a mão da velha senhora.
Ela entendeu falar... sim, a menina queria saber se podia falar... não conseguia, mas não custava nada tentar...
- E...E...Euuu - A voz da velha senhora era fraca e rouca. - N..N...Nãooo cunsiguo dereito
Fernanda abriu um largo sorriso.
- Olha só! A senhora disse alguma coisa! Errado, mas falou!
- Eeeeeuuu gralhei...
- Isso aí, dona Vitória - Fernanda disse, incentivando. - Vou te ensinar o beabá, mas não agora. Só vim para dar uma olhada na senhora. Daqui a pouco te pego para jantar!
- Grantar...
Fernanda se levantou e disse:
- Guarde seu fôlego pra depois, não "gralhe" muito senão cansa. Nós teremos bastante tempo pra bater um papo gostoso!
Como Fernanda ainda sorria, a velha fez o mesmo. A moça deu adeus agitando os dedos e saiu do quarto.
Voltou para a cozinha. A panela de pressão com a sopa chiava. Ela apagou o fogo e pegou os pratos e talheres. Enquanto arrumava a mesa, cantarolava. Há tempos que não se sentia tão bem como agora. Talvez fosse o novo trabalho... ou de trabalhar em um lugar com tanta gente bacana.
Ou tanta gente inofensiva, pensou ela enquanto separava os talheres em seus devidos lugares.
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- Hummm... - Vera suspirou quando provou a sopa de legumes. - Está de parabéns, Fernanda! Que delícia de sopa!
A família estava à mesa jantando, cada um em seu respectivo lugar. A única diferença era Fernanda, que ocupou o lugar de Belinda, para alimentar dona Vitória.
E ao contrário de outros dias, que dona Vitória teimosamente recusava a comida da antiga empregada da casa, agora ela estava comendo alegremente e ainda arriscava umas palavras:
- Trotoso...me drá baix!
- Fernanda, você operou um verdadeiro milagre com minha mãe! - disse Vera, emocionada. - Tem mais de quatro meses que ela não falava nada...
- É!!!! - disse Juninho. Ele tinha pedaços de couve presos entre os dentes cavalares. - Vovó falou! Mas tá falando errado! Parece uma retardada... - ele caiu na risada, que parecia um relincho.
- Olha como fala da sua avó - recriminou Aurélio, chamando a atenção. - Respeite os mais velhos!
- Ué? - zombou Juninho. - Então ela falou certo e eu que escutei errado?
- Não ouviu papai? - Anabela interveio.
- Não fale assim com seu irmão - Vera repreendeu. - Ele falou aquilo sem pensar. E tem razão, sua vó não falou certo!
Fernanda segurava o prato com um resto de sopa em uma das mãos e a outra segurava a colher que dava para uma faminta dona Vitória. Ela fingia que não ouvia nada. Uma empregada doméstica tem que saber seu lugar e se portar com a máxima discrição. Era seu lema. Mesmo mostrando indiferença, ela ouvia muito bem e analisava mentalmente a família que estava conhecendo ainda:
"O menino é cruel. Mas sua crueldade é só com os mais fracos. É o queridinho da mãe. Já a menina, Anabela, é pelo pai. A menor nem abriu a boca. Ganhei uns créditos com dona Vera por causa da mãe. E o marido... Achava que era o homem que sentava na cabeceira da mesa. Mas aqui é o contrário. O marido é um zero à esquerda. "
Fernanda anotou suas avaliações na sua mente. Continuou quieta, servindo a velha senhora. Uma empregada doméstica eficiente é aquela que fica invisível na frente dos patrões.
- Guero braix, mi dra braix...
- Mamãe quer repetir! - exclamou Vera, surpresa. - Fernanda! Você é um anjo que veio do céu pra cuidar da minha mãe!
- Não, dona Vera - retrucou a moça. - Eu não acredito em anjos, só em Jesus...
- Desculpe - disse Vera, constrangida. - Não falei por mal... esqueci da sua religião...
- Não tem nada - disse Fernanda. - Vou na cozinha pegar mais um pouco de sopa para dona Vitória. - E para a velha senhora, ela falou: - Já volto, hein? Prepare a barriguinha pra mais sopa!
Dona Vitória bateu palmas. Quando Fernanda se afastou, Aurélio comentou:
- Que achado, Vera!
- E não é que foi mesmo? Ela conquistou minha mãe e as crianças. E sabe... a mim também. Sou uma mulher com sorte na vida.
- É mesmo... - disse Aurélio. - Você é sortuda.
Vera olhou para o seu marido com menosprezo e retrucou:
- Sem ironias na mesa do jantar. Você não tem cacife pra isso.
Aurélio disse:
- É... não tenho... - e pensou: Ainda! 

Continua...

No próximo capítulo: Liberdade aos canários!

Rogerio de C. Ribeiro

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