Enquanto
Vera andava com passos firmes, Fernanda acompanhava atrás arrastando suas sandálias sobre um assoalho de tacos soltos. Primeiro, Vera mostrou a sala
principal. Ali havia uma mesa de jacarandá com seis cadeiras, um antigo sofá
estampado de três lugares, duas poltronas que ficavam uma ao lado da outra, um
armário de quatro portas e a televisão de 29 polegadas em cima dela e uma janela
que tomava de uma parede à outra com persiana. Passaram por um arco que dava para a sala de estar, que um dia foi o lugar preferido do vereador Teodoro. Era um
ambiente com pouca claridade; ali tinha uma cadeira de balanço e uma mesinha
com várias estatuetas de elefante que o pai de Vera comprara nas diversas
viagens que fizera pelo mundo.
-
Esse lugar tem que ser mantido conforme está agora. É proibido que tire as estatuetas da posição que estão. Aqui era o canto que meu pai mais gostava da casa. Está claro?
- Sim, entendi, dona Vera.
Acima
da cadeira de balanço, um quadro pintado à óleo era pendurado na parede. O desenho mostrava um
homem de cabelos grisalhos, bigode, com ar austero.
-
Meu pai - comunicou Vera. - Antigamente o quadro ficava na sala, mas depois da sua
morte, decidi colocar aqui para que todo mundo saiba que essa sala era dele.
-
Compreendo - disse Fernanda, quase sussurrando.
Vera
voltou para a sala principal e passou novamente pela sala de jantar. A mesa de
mogno tinha oito cadeiras.
-
O jantar tem que ser servido exatamente às oito horas da noite. Nada de oito e
cinco, oito e dez. Não. Aqui, a família vem para a mesa quando falta cinco para as
oito. E durante o jantar, você tem que dar a comida para minha mãe. Seu lugar é esse aqui - Vera
apontou a segunda cadeira à esquerda de onde sentava. - Quando trouxer minha
mãe, tire essa primeira cadeira para ajeitar a dela, que é de rodas. Depois que
ela terminar, você volta com a cadeira na mesa. Entendeu ou tenho que repetir?
-
Não, senhora, não precisa repetir. Jantar às oito em ponto, cadeira aqui atrás
pra sua mãe sentar com a dela de rodas.
-
Bom, não gosto de falar duas vezes...
Fernanda
não disse nada. E nem precisava. Vera a chamou e seguiram para a cozinha. Se
divertiu quando viu o rosto da moça, que estampou surpresa com o
tamanho do lugar.
Pelo
jeito, aquela pobre criatura nunca tinha entrado numa cozinha daquele tamanho. " A casa dela não deve chegar nem a um terço da cozinha", imaginou Vera.
A
cozinha tinha uma pia de inox que era a principal e uma pequena ao lado da
porta que dava para a escada que levava ao jardim. A geladeira era antiga, mas
que nos dias de hoje ainda custavam uma fortuna; o fogão era industrial e de
seis bocas, uma mesa retangular abrigava fruteiras, armários na parede que
guardavam conservas em lata e produtos não perecíveis.
Mas
o que mais surpreendeu a coitada foram os pratos, com seus desenhos no fundo e
os talheres de prata do século passado, herança que Vera recebeu dos
seus avós.
Vera
conduziu, como uma guia turística, Fernanda à grande janela e mostrou o jardim
e o canil.
-
Quando você tiver um tempo livre, quero que cuide do jardim.
Fernanda
viu lixo espalhado no meio do matagal.
-
Sim, senhora.
-
Venha comigo - Vera ordenou.
Saíram
da cozinha e havia uma porta no início do corredor. Vera abriu-a e saíram em
uma grande área fechada com um varal de roupas, máquina de lavar e de secar.
Mais na frente havia um pequeno banheiro que continha um vaso sanitário, um
chuveiro ao lado e uma pia encardida. Era o banheiro que Fernanda ia usar.
Ao
lado do banheiro, uma porta de madeira descascada dava para um pequeno quarto,
onde cabia uma cama de solteiro e um armário de duas portas. Um antigo
ventilador empoeirado jazia sobre uma mesinha sem gaveta.
-
Esse é seu quarto - anunciou Vera, como se aquele cubículo fosse um quarto
luxuoso em um hotel cinco estrelas.
-
Parece confortável - disse Fernanda, de pé com as mãos cruzadas em cima da sua
bolsa.
-
No verão é um pouco quente, mas nada que um ventilador não resolva -
disse Vera, sorrindo.
-
Claro, dona Vera.
"Acho
que nem um quarto você tinha na sua antiga casa", pensou Vera, com certa
maldade. "Agradeça por ter um teto pra dormir..."
Esse
era um mal que Vera tinha, e que Aurélio por várias vezes chamou-lhe a atenção.
Sua mania de achar que só ela morava bem, que tinha um casarão, que era melhor
que todo mundo. Mas não adiantava nada as chamadas que Aurélio dava. Vera dava
de ombros e as palavras dele entravam por um ouvido e saía pelo outro. Foi
criada assim, sempre ouvindo sua mãe dizendo que a família Paranhos era a
melhor de Niterói. A arrogância da dona Vitória contaminou a filha única, que
herdou a soberba da mãe.
As
duas foram andando até que entraram no corredor. Fernanda viu várias portas
fechadas, e o local tinha pouca luz com vários bocais vazios e só uma lâmpada
fluorescente iluminando o lugar. As paredes rabiscadas por lápis de cera eram
como pichações em muros; em alguns pontos o papel de parede descascava.
Vera
explicou:
-
É duro quando tem três crianças que se acham artistas... No início
brigava com eles, mas não adiantou nada. Afinal, deixe eles exercitarem o lado
artístico. Quem sabe não surge um novo Picasso ou uma futura Tarsila do Amaral?
-
É, dona Vera, os psicólogos aconselham que devem deixar as crianças rabiscar
paredes, cadernos... Vi na televisão.
-
E todas crianças são assim. O seu não rabiscava?
-
Leonardo? Não que eu me lembre. - disse Fernanda, triste.
Vera
percebeu sua indiscrição:
-
Desculpe, não queria falar...
-
Não se preocupe, dona Vera.
Constrangida,
Vera abriu a primeira porta. Era o quarto da sua mãe.
Dona
Vitória estava na sua cadeira de rodas, com olhos perdidos além da pequena
televisão ligada na Globo. Fernanda viu uma senhora bem arrumada, cheirando a
talco e alfazema, os cabelos prateados bem penteados. Mesmo naquela situação, notou que foi uma mulher dominadora. Tinha um nariz adunco e os
olhos azuis aquosos.
A
velha senhora sentava-se empertigada e repousava a mão enrugada de longos dedos
(meus dedos são de pianista!, dizia ela para Vera quando criança) sobre as
pernas dobradas.
Vera
e Fernanda pararam na sua frente e a filha apresentou:
-
Mãe! Essa é Fernanda. Ela vai substituir Belinda. Começa hoje.
Dona
Vitória não entendeu o que aquela gringa falava. Ela estranhou, porque
dominava o inglês, francês, italiano e até russo. Talvez ela fosse grega ou falava em aramaico!
Fernanda
segurou suavemente as mãos da velha.
-
Olá, dona Vitória - disse, docemente. - Tudo bem com a senhora?
Um
leve brilho fulgurou naqueles olhos azuis ausentes. Dona Vitória levantou o
queixo lentamente e fixou sua atenção nela.
Viu uma menina bonita, de cabelo preso em um coque, com pequenas e leves mãos que
aqueciam as suas. A voz era gentil, suave. Uma voz que dava paz no espírito.
Buscou nas suas vagas lembranças se já a conhecia...
-
Oi - disse a moça. - Meu nome é Fernanda!
A
velha continuava com os olhos grudados nela. Esboçou um sorriso. Isso deixou
Vera surpresa.
-
Fe-Fer...Ferpa...Ferpa... - Balbuciou, em uma voz grave.
Vera
quase foi às lágrimas. Quanto tempo sua mãe não falava? Um, dois meses? Já era
bastante tempo.
Vera
se ajoelhou ao lado da cadeira de rodas e segurou os braços da mãe:
-
Que bom, mamãe! É muito bom ouvir sua voz...
-
Ferpa...Ferpaaaaaaaaaaaaaa...
Fernanda
apertou as mãos da velha senhora com suavidade.
-
Se a senhora prefere me chamar de Ferpa, fique à vontade. - Ela acariciou o
rosto de dona Vitória, que contribuiu com um largo sorriso. - Sabe, dona Vera,
ela lembra minha avó... cuidei tanto dela...
Vera
se levantou. Ficou feliz que aquilo estivesse acontecendo. Se sua mãe
simpatizou com a moça, já era meio caminho andado. Via agora que não foi tão
ruim a aposentadoria de Belinda. Sua mãe precisava de uma renovação.
Fernanda
disse baixinho:
-
Agora vou conhecer o resto da casa, mas volto logo pra ver a senhora!
Fernanda
se afastou e dona Vitória estendeu as mãos na sua direção. Antes de sair, a
moça lançou um beijo. A velha senhora escancarou a boca em um largo sorriso,
mostrando gengivas vazias.
A
próxima parada foi no quarto ao lado, que eram das filhas. Haviam duas camas de
solteiro, um grande quadro de cortiça com fotos pregadas com percevejos
coloridos de Justin Bieber, ao lado de uma cama com a cabeceira escrita com as
letras A e B, e uma penteadeira repleta de maquiagens, perfumes, que não tinha a
última gaveta. Várias bonecas estavam espalhadas pelos cantos.
-
Normalmente um quarto de meninas é arrumado - comentou Vera. - Essa tese não se funciona pra minhas filhas...
-
Se a senhora quiser, posso arrumar tudo em um instante - Fernanda se
prontificou.
-
Agora não. Vamos para o quarto ao lado. É de Juninho.
Quando
Vera abriu a porta, seu filho estava sentado em cima do tapete no chão, jogando
video game com Anabela ao seu lado. Os dois discutiam enquanto Dequinha,
deitada na cama do irmão, assistia a briga em silêncio. Estranhou aquela moça
baixinha ao lado da sua mãe.
-
Vamos parar com a briga agora mesmo!!! - gritou Vera, assustando as crianças. Juninho
pôs a mão no peito e disse, com um meio sorriso safado:
-
Ei, mãe! A senhora quase me matou de susto!
Vera
disse, apontando as crianças:
-
Esses são os anjinhos da casa. Crianças, digam olá para Fernanda. Ela está
substituindo Belinda a partir de hoje.
-
Olá! - disseram Juninho e Anabela, ainda sentados sobre o tapete. Dequinha não
falou nada. Parecia emburrada.
-
Andréia, diga alô para Fernanda - Vera mandou.
-
Não - Dequinha resmungou. As faces dela estavam mais coradas ainda.
Fernanda
se aproximou com cautela e sentou-se e na beira da cama. A moça manteve certa distância da menina.
-
Não precisa dizer alô para mim, Andréia. Imagino como deve estar sofrendo. Você
era muito apegada à Belinda.
Dequinha
escondeu o rosto debaixo do travesseiro e falou, com um som abafado:
-
Belinda sempre cuidou de mim.
-
Eu também vou cuidar de você - disse Fernanda, carinhosa.
-
E também fazia um bolo de chocolate muito gostoso!
Fernanda
e Vera se entreolharam. Juninho e Anabela ignoraram a presença das duas e
voltaram para o jogo. Dequinha continuava com o travesseiro cobrindo sua
cabeça.
-
Eu posso fazer um bolo de chocolate especial. Só eu tenho essa receita!
Dequinha
afastou o travesseiro e jogou-o para o lado. Seu rostinho ainda mostrava
desconfiança.
-
E contava história para eu dormir.
-
Posso contar um milhão de histórias pra você dormir - disse Fernanda, sorrindo.
Dequinha retribuiu o sorriso.
Vera
suspirou aliviada. Fernanda foi aprovada pela família.
Ela
pensou em Aurélio. Ele dissera que ia conversar com um amigo para tentar cavar
uma vaga na Patrimóvel. A opinião dele não contava. Afinal de contas, quem ia
pagar o salário era ela mesma...
- Preciso pegar minha mala - disse Fernanda. - Mas prometo para a senhora que até três horas
estou de volta.
Vera
concordou.
-
Pode ir. Mas não se atrase muito. Vamos provar sua comida hoje. Vai fazer o
jantar. Ah, e não precisa trazer muitos vestidos. Nem tem espaço para guardar
tudo naquele armário. A roupa que vai usar aqui é seu uniforme. Disso não abro mão.
-
Como a senhora quiser, dona Vera - disse Fernanda, humildemente. - A senhora manda.
Continua...
No próximo capítulo: Aurélio e uma proposta tentadora
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Aurélio e uma proposta tentadora
Rogerio de C. Ribeiro
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