Translate

terça-feira, 5 de agosto de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 2

No capítulo anterior: Belinda comunica à sua patroa Vera que vai se aposentar por problema de saúde. Vera se desespera com essa notícia, mas Belinda a tranquiliza, dizendo que vai procurar uma substituta.



Belinda perguntou para suas irmãs se sabia de alguém que pudesse substituí-la no trabalho no casarão e que fosse responsável para cuidar de dona Vitória. Passado uma semana depois que manteve contato com as irmãs, ainda trabalhou no casarão do Bairro de Fátima, mesmo sentindo dores no peito. A falta de resposta começou a incomodar a velha doméstica. Dera sua palavra para dona Vera que só ia sair de lá depois que contratassem sua substituta.
Enquanto Belinda esperava ansiosa por uma resposta das suas irmãs, Vera seguia tranquila na sua rotina. Saía da cama às oito da manhã, tomava café com seu marido e sua mãe, perguntava pra Belinda se a Kombi Escolar tinha vindo na hora certa para buscar as crianças, depois se arrumava e saía com Aurélio, com ela dirigindo o velho Palio, direto ao centro da cidade. Como o casarão se localizava no alto da rua, ela fazia questão de se locomover de carro e pagar mensalidade em estacionamento; para Belinda, acostumada em descer e subir a rua de paralelepípedos que os moradores chamavam de colina, achava que a patroa desperdiçava dinheiro, já que dali até o centro não ficava a dez minutos a pé do bairro que moravam.
Oito dias depois daquele anúncio da aposentadoria, Vera acreditou que não ia aparecer ninguém, e a vida no casarão continuaria a mesma, com Belinda cuidando deles.
Toda vez que voltava do escritório, Vera dava uma passadinha no quarto da sua mãe. Era um quarto amplo, com uma cama de casal sempre bem arrumada, a penteadeira bem lustrada, os espelhos brilhando.
Vera via sua mãe no mesmo lugar de sempre: Sentada na cadeira de rodas ao lado da penteadeira, de frente à uma televisão de quatorze polegadas que só transmitia a Globo. Se desligassem a televisão, mesmo assim dona Vitória continuaria olhando para a tela escura.
Ela mal dizia algo, e quando falava, sempre se referia no passado. Às vezes tinha amnésia ou se confundia com o tempo.
- Oi, mãe - disse Vera, beijando a testa da velha senhora. Dona Vitória era magra, de cabelos prateados e olhos aquosos. Mas a definição também podia ser olhos ausentes, pensou Vera.
Ela não se conformava com o atual estado da mãe. Antigamente, Dona Vitória foi uma mulher decidida, de punho forte. Enquanto Teodoro mantinha seus contatos políticos, ela administrava rigidamente a casa e a família. Todo mundo a temia e a respeitava. Mas agora, naquele estado letárgico e amnésico, era alvo de chacotas dos mesmos que baixavam a cabeça antes.
Dona Vitória virou o rosto na direção da voz e manteve os olhos naquela moça estranha. Todo dia ela entrava no seu quarto e beijava sua testa. Aquilo já estava começando a irritar. Essa menina deve ser uma das amiguinhas da Vera. Estranho... achava que conhecia todas meninas que frequentavam sua casa. Será que era Lizandra? Essa se mudou há pouco na Palieri. De que família mesmo? Agora fugiu.
Vera puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da mãe. Acariciou o rosto enrugado da velha senhora e disse:
- Mamãe, mamãe... o que deve estar pensando agora?
Dona Vitória franziu as sobrancelhas. A amiguinha da sua filha falava alguma coisa, mas numa língua estranha. Devia ser estrangeira. Uma gringa!
- Quem me dera se inventassem algo para recuperar sua sanidade - disse Vera. - Esses cientistas inventam tanta coisa inútil! Tinham que pesquisar sobre a cura da mente!
Vera ouviu barulho de correria pelo corredor. Eram as crianças, com certeza. Levantou-se, abriu a porta e viu seus filhos brincando de pega no corredor semi escuro.
- Por quê não brincam lá fora? O que não falta nessa casa é espaço para correr!
Anabela, de nove anos, tinha as faces coradas. Seus olhos brilhavam enquanto dizia:
- Ah, mãe!!!! Aqui é tão bom!!!!
- É! - Juninho, de sete anos, era o único menino da turma. Também tinha faces coradas e cabelos ondulados. - Lá fora tem muito mato! E muito bicho!
- Tenho medo de bicho - disse Andréia, a Dequinha, de 4 anos, fazendo beicinho. - Quando a gente brinca de pique esconde, todo mundo some e me deixa sozinha...
Vera recriminou os dois filhos maiores:
- Não podem deixar sua irmã sozinha lá no jardim!
- Ela é chata! - disse Anabela, emburrando a cara e cruzando os braços.
- É! - Juninho adorava essa expressão. - Ela não larga do meu pé. Já avisei que vou chamar o homem do saco pra levar ela daqui!
- Não!!!!! - protestou Dequinha, os olhos se enchendo de lágrimas.
- É!!!!! Eu vou!!!!!
Vera chamou a atenção deles:
- Ninguém vai chamar homem do saco nenhum! Para de implicar com sua irmã, Juninho. Você é o mais velho e tem a obrigação de cuidar das suas irmãs!
-Ei! Anabela é mais velha que eu!
- Ela é menina. Você é menino, e meninos são corajosos!
Juninho não concordou muito com essa tese. Mas logo abriu um sorriso.
- É!!!!! Então elas tem que me obedecer! Oba!!!! - O menino deu pulinhos com os braços para o alto.
- Ah, mãe, assim não vale! - resmungou Anabela, com a cara emburrada.
Vera riu.
- Vale sim. Juninho é o homenzinho da casa!
- Ué... - Anabela ficou cismada. - O homem da casa não é o papai?
Vera pensou no marido. Aurélio, homem da casa... Affff! O dia que ele tomar a frente nas contas, no colégio das crianças, na cama com ela, aí sim, talvez possa desempenhar o papel de homem da casa. Mas do jeito que se portava, sem ambição, que se contentava com a vida que levavam, da sua eterna omissão, não, ela não o considerava homem com agá maiúsculo!
Mas para as crianças, ele era o herói da casa. Aquele que os salvavam dos perigos! Vera não ia queimar a imagem que elas faziam dele, por isso respondeu:
- É mesmo, papai é o homem da casa. E Juninho, o homenzinho. - Definiu ela. - Agora vão brincar lá fora. Essa barulheira vai assustar a avó de vocês!
A criançada saiu em disparada pelo corredor direto para a cozinha. Lá havia uma porta que dava para uma escada de dez degraus que levava direto ao jardim abandonado.
Vera lembrou-se que quando era criança, levava suas amigas a esse mesmo jardim. Só que naquele tempo, elas brincavam nos balanços, na gangorra, no escorrega. Hoje, aquilo tudo estava quebrado ou enferrujado. A roseira, o gramado bem aparado, as azaleias, tudo isso desapareceu com o tempo.
Ingrato tempo. Não devia ser assim. Mas infelizmente, Vera precisava conviver com essa triste realidade. Se curvasse diante das intempéries, o que seria da família no casarão? Por isso arrancava forças para manter a casa sã. Mesmo que seu jeito incomodasse as pessoas. Não podia ser dobrada.
O tempo passa para todo mundo. Cabia às pessoas administrar sua vida diariamente, para não ser surpreendidas pelas mudanças inevitáveis que infelizmente surgem, querendo ou não.

Continua...

No próximo capítulo: Um jantar e uma ligação esperada

Rogerio de C. Ribeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário