Belinda
perguntou para suas irmãs se sabia de alguém que pudesse substituí-la no trabalho no casarão e que fosse responsável para cuidar de
dona Vitória. Passado uma semana depois que manteve contato com as irmãs, ainda trabalhou no casarão do Bairro de
Fátima, mesmo sentindo dores no peito. A falta de resposta começou a incomodar a velha
doméstica. Dera sua palavra para dona Vera que só ia sair de lá depois que contratassem sua
substituta.
Enquanto
Belinda esperava ansiosa por uma resposta das suas irmãs, Vera seguia
tranquila na sua rotina. Saía da cama às oito da manhã, tomava café com seu
marido e sua mãe, perguntava pra Belinda se a Kombi Escolar tinha vindo na hora
certa para buscar as crianças, depois se arrumava e saía com Aurélio, com ela dirigindo
o velho Palio, direto ao centro da cidade. Como o casarão se localizava no alto da rua, ela fazia questão de se locomover de
carro e pagar mensalidade em estacionamento; para
Belinda, acostumada em descer e subir a rua de paralelepípedos que os moradores chamavam de colina, achava que a patroa desperdiçava dinheiro, já que dali até o centro não
ficava a dez minutos a pé do bairro que moravam.
Oito dias depois daquele anúncio da aposentadoria, Vera acreditou que não ia aparecer ninguém, e a vida no casarão continuaria a mesma, com Belinda cuidando deles.
Toda
vez que voltava do escritório, Vera dava uma passadinha no quarto da sua mãe. Era um quarto
amplo, com uma cama de casal sempre bem arrumada, a penteadeira bem lustrada,
os espelhos brilhando.
Vera
via sua mãe no mesmo lugar de sempre: Sentada na cadeira de rodas ao lado da
penteadeira, de frente à uma televisão de quatorze polegadas que só transmitia a Globo. Se desligassem a televisão, mesmo assim dona
Vitória continuaria olhando para a tela escura.
Ela
mal dizia algo, e quando falava, sempre se referia no passado. Às vezes tinha amnésia ou se confundia com o tempo.
-
Oi, mãe - disse Vera, beijando a testa da velha senhora. Dona Vitória era
magra, de cabelos prateados e olhos aquosos. Mas a definição também podia ser olhos
ausentes, pensou Vera.
Ela não se conformava com o atual estado da mãe. Antigamente, Dona Vitória foi uma mulher
decidida, de punho forte. Enquanto Teodoro mantinha seus contatos políticos,
ela administrava rigidamente a casa e a família. Todo mundo a temia e a respeitava. Mas
agora, naquele estado letárgico e amnésico, era alvo de chacotas dos mesmos que
baixavam a cabeça antes.
Dona
Vitória virou o rosto na direção da voz e manteve os olhos naquela moça
estranha. Todo dia ela entrava no seu quarto e beijava sua testa. Aquilo já
estava começando a irritar. Essa menina deve ser uma das amiguinhas da Vera. Estranho... achava que
conhecia todas meninas que frequentavam sua casa. Será que era Lizandra? Essa
se mudou há pouco na Palieri. De que família mesmo? Agora fugiu.
Vera
puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da mãe. Acariciou o rosto enrugado da
velha senhora e disse:
-
Mamãe, mamãe... o que deve estar pensando agora?
Dona
Vitória franziu as sobrancelhas. A amiguinha da sua filha falava alguma coisa,
mas numa língua estranha. Devia ser estrangeira. Uma gringa!
-
Quem me dera se inventassem algo para recuperar sua sanidade - disse Vera. -
Esses cientistas inventam tanta coisa inútil! Tinham que pesquisar sobre a cura
da mente!
Vera ouviu barulho de correria pelo corredor. Eram as crianças, com certeza. Levantou-se,
abriu a porta e viu seus filhos brincando de pega no
corredor semi escuro.
-
Por quê não brincam lá fora? O que não falta nessa casa é espaço para correr!
Anabela,
de nove anos, tinha as faces coradas. Seus olhos brilhavam enquanto dizia:
-
Ah, mãe!!!! Aqui é tão bom!!!!
-
É! - Juninho, de sete anos, era o único menino da turma. Também tinha faces
coradas e cabelos ondulados. - Lá fora tem muito mato! E muito bicho!
-
Tenho medo de bicho - disse Andréia, a Dequinha, de 4 anos, fazendo beicinho. - Quando a gente
brinca de pique esconde, todo mundo some e me deixa sozinha...
Vera
recriminou os dois filhos maiores:
-
Não podem deixar sua irmã sozinha lá no jardim!
-
Ela é chata! - disse Anabela, emburrando a cara e cruzando os braços.
-
É! - Juninho adorava essa expressão. - Ela não larga do meu pé. Já avisei que
vou chamar o homem do saco pra levar ela daqui!
-
Não!!!!! - protestou Dequinha, os olhos se enchendo de lágrimas.
-
É!!!!! Eu vou!!!!!
Vera chamou a atenção deles:
-
Ninguém vai chamar homem do saco nenhum! Para de implicar com sua irmã,
Juninho. Você é o mais velho e tem a obrigação de cuidar das suas irmãs!
-Ei!
Anabela é mais velha que eu!
-
Ela é menina. Você é menino, e meninos são corajosos!
Juninho
não concordou muito com essa tese. Mas logo abriu um sorriso.
-
É!!!!! Então elas tem que me obedecer! Oba!!!! - O menino deu pulinhos com os
braços para o alto.
-
Ah, mãe, assim não vale! - resmungou Anabela, com a cara emburrada.
Vera
riu.
-
Vale sim. Juninho é o homenzinho da casa!
-
Ué... - Anabela ficou cismada. - O homem da casa não é o papai?
Vera
pensou no marido. Aurélio, homem da casa... Affff! O dia que ele tomar a frente
nas contas, no colégio das crianças, na cama com ela, aí sim, talvez possa
desempenhar o papel de homem da casa. Mas do jeito que se portava, sem ambição,
que se contentava com a vida que levavam, da sua eterna omissão, não, ela não o
considerava homem com agá maiúsculo!
Mas
para as crianças, ele era o herói da casa. Aquele que os salvavam dos perigos!
Vera não ia queimar a imagem que elas faziam dele, por isso respondeu:
-
É mesmo, papai é o homem da casa. E Juninho, o homenzinho. - Definiu ela. -
Agora vão brincar lá fora. Essa barulheira vai assustar a avó de vocês!
A
criançada saiu em disparada pelo corredor direto para a cozinha. Lá havia uma
porta que dava para uma escada de dez degraus que levava direto ao jardim
abandonado.
Vera
lembrou-se que quando era criança, levava suas amigas a esse mesmo jardim. Só
que naquele tempo, elas brincavam nos balanços, na gangorra, no escorrega. Hoje, aquilo tudo estava quebrado ou enferrujado. A roseira, o gramado bem aparado,
as azaleias, tudo isso desapareceu com o tempo.
Ingrato
tempo. Não devia ser assim. Mas infelizmente, Vera precisava conviver com essa
triste realidade. Se curvasse diante das intempéries, o que seria da família no
casarão? Por isso arrancava forças para manter a casa sã. Mesmo que seu
jeito incomodasse as pessoas. Não podia ser dobrada.
O
tempo passa para todo mundo. Cabia às pessoas administrar sua vida diariamente,
para não ser surpreendidas pelas mudanças inevitáveis que infelizmente surgem,
querendo ou não.
Continua...
No próximo capítulo: Um jantar e uma ligação esperada
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Um jantar e uma ligação esperada
Rogerio de C. Ribeiro
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