Translate

sábado, 16 de agosto de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 11

No capítulo anterior: Dona Vitória, em seus raros momentos de lucidez, lembra quando Vera, ainda criança, libertou canários do viveiro de Teodoro. Vera se lembrou da mesma coisa.

Vera entrou na sala principal carregando uma pilha de pastas nos braços. Jogou-as em cima da mesa e enxugou a testa. Era uma noite quente de outono e ela suava muito. Por um momento teve vontade de ligar o ar condicionado, mas a vontade passou quando se lembrou da última conta de luz que veio com aquele valor exorbitante. Foi até a cômoda e ligou o ventilador que estava em cima.
As vozes das crianças retumbavam pelo corredor. Vera colocou seus óculos de leitura e pegou a primeira pasta de cima do monte; o vento quente do ventilador virava as páginas e o barulho que as crianças faziam começou a dar nos seus nervos.
Irritada, desligou o ventilador. Preferia definhar de tanto suor do que ficar voltando as folhas levadas ao vento. Antes de sentar, ainda gritou:
- Vocês podem ficar "um minuto" quietos? Não tô pedindo muito!
Anabela saiu do corredor com as faces afogueadas e os olhos brilhando. Ela disse:
- Tamos acampando!
O acampamento que ela se referia era um lençol esticado, com as pontas amarradas em quatro cadeiras, como se fosse uma barraca, e eles ficavam sentados lá embaixo. Vera brincou muito disso quando foi criança com seus amiguinhos. E recordou que sua mãe não entendia qual era a graça deles ficarem ali embaixo espremidos um no outro, jogando luz da lanterna na própria cara enquanto contavam histórias.
Como Vera ainda se lembrava da sua infância, não recriminou Anabela. Mas pediu:
- Tá bom, brinquem à vontade, mas deixa mamãe estudar esses processos. Tenho uma audiência na segunda e não posso chegar lá sem saber de nada, né?
Anabela concordou. A testa dela brilhava de suor :
- Claro, mãe. Vou falar com Juninho.
Anabela deu as costas e correu pelo corredor até o seu quarto.
Juninho ajeitava as pilhas na lanterna que segurava e quando viu Anabela de volta, perguntou:
- Ela tá mais calma? - Esse ELA se referia à sua mãe.
- Mais ou menos - respondeu Anabela, sentando no chão com as pernas cruzadas. - Ela só pediu que não fizéssemos barulho.
Juninho ligou a lanterna e jogou o foco da luz em cima da irmã:
- É!!!! Mas é impossível a gente brincar quietos!
Dequinha, deitada na cama, disse:
- Podemos brincar de estátua.
- Estátua é coisa de menina! - Juninho reclamou. 
- Podemos falar baixinho... - disse Anabela, coçando as pernas.
Ele estalou os dedos e riu.
- Já sei! Vamos apagar a luz e contar histórias de terror!
- Nãoooooo!!! - Dequinha agarrou seu travesseiro. - Não gosto de ficar no escuro!
Juninho direcionou a lanterna na direção da caçula e jogou a luz nos olhos dela.
- Medrosa! Toma luz na cara então! - Ele desandou naquela gargalhada que parecia um relincho.
- Para, Juninho! - advertiu Anabela. - Ela vai contar pra mamãe.
- Se ela contar, falo com meu amigo que é fantasma pra puxar os pés dela de noite!
Dequinha pulou da cama e protestou:
- Não! Juro que não falo com mamãe...
Juninho jogou a lanterna de uma mão para a outra. A expressão no seu rosto era séria.
- Acho que agora já era! Ele disse que vem te visitar hoje!
Dequinha saiu correndo do quarto, enquanto Juninho rolava de rir no chão. Anabela disse:
- Maldade, Juninho. Dequinha pode ter pesadelos por causa disso!
Ainda rindo e exibindo seus dentes cavalares e amarelados, o garoto disse:
- Que tenha! Ela é muito chata!
Dequinha saiu pelo corredor e viu a porta do quarto da sua avó entreaberta. Entrou ali e Fernanda, que assistia um filme junto com dona Vitória, perguntou:
- Que carinha assustada é essa, neném?
Dequinha ficou parada na porta. Estava vestida com seu pijama de gatinhos e disse, com o beicinho trêmulo:
- É Juninho... ele tem um amigo fantasma... vai me pegar no escuro...
Fernanda pediu que ela se aproximasse. Dequinha andou devagar, com as pernas juntas e quando chegou perto da empregada, Fernanda pegou-a e a pôs no seu colo.
- Você não gosta do escuro, não é?
- Não! - disse Dequinha, com os olhos marejados.
- Bem, me escute. Prometo que não vou deixar que nenhum fantasma pegue no seu pé. Se ele aparecer, mato ele!
Dequinha ficou surpresa:
- Você não pode matar um fantasma! Ele já morreu!
Fernanda acariciou os cabelos da menina e murmurou:
- Então mato de novo! Assim ele morre duas vezes!
Dequinha riu.
- Você é engraçada, Fernanda!
Dona Vitória, que mantinha os olhos aquosos na telinha da tevê, olhou para elas e disse, naquele tom de voz gutural:
- Ferpa... Ferpita...
- Vó! - Dequinha gritou. - O nome dela é Fernanda! Fala certo! Fernanda!!!!!!
A julgar pelos olhos azuis ausentes da velha senhora, ela não entendeu nada do que a neta dissera. Fernanda tirou Dequinha do seu colo e disse:
- Vou ter que botar sua avó para dormir. Pode ir despreocupada, nenhum fantasma vai puxar seus pés de noite. Eu vou ficar de olho nele.
- Jura?
- Juro. Agora vai.
Depois que Dequinha saiu, Fernanda tirou a velha senhora da cadeira de rodas e a acomodou no colchão d'água da imensa cama. Trocou a roupa, colocando uma camisola fresca. O jeito que a velha a olhava era como o olhar de um cachorro agradecido pelo osso. Fernanda pôs as mãos na cintura e disse:
- Você pesa um bocado.
Fernanda passou os olhos pelo armário e a penteadeira da velha. Ela pensou em voz alta:
- Aposto que tem joias caras... Não me admiro. Antigamente as mulheres ricas ganhavam joias dos maridos como se fosse um calaboca. Não é verdade, Vitória? Enquanto teu marido se divertia com putas, você não tinha orgasmos com rubis e esmeraldas?
Fernanda sorriu. Quando saiu do quarto, dona Vitória ainda estava acordada. Ela apagou a luz e fechou a porta.
Aurélio saía do quarto de casal. Os dois quase se esbarraram no corredor. Aurélio pediu desculpas e passou por ela. Fernanda virou a cabeça e olhou o homem de camisa polo e calça jeans indo para a sala. Ele tinha um ar preocupado no rosto. Ela deu de ombros e foi para seu quarto.

Continua...

No próximo capítulo: Aurélio e Vera discutem novamente.

Rogerio de C. Ribeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário