Vera
entrou na sala principal carregando uma pilha de pastas nos braços. Jogou-as em cima da mesa e enxugou a testa. Era uma noite quente de outono e ela suava muito. Por um
momento teve vontade de ligar o ar condicionado, mas a vontade passou quando se lembrou da última conta de
luz que veio com aquele valor exorbitante. Foi até a cômoda e ligou o ventilador que estava em cima.
As
vozes das crianças retumbavam pelo corredor. Vera colocou seus óculos de leitura e
pegou a primeira pasta de cima do monte; o vento quente do ventilador virava as páginas e o barulho que as crianças faziam começou a dar nos seus nervos.
Irritada,
desligou o ventilador. Preferia definhar de tanto suor do que ficar voltando as
folhas levadas ao vento. Antes de sentar, ainda gritou:
-
Vocês podem ficar "um minuto" quietos? Não tô pedindo muito!
Anabela
saiu do corredor com as faces afogueadas e os olhos brilhando. Ela disse:
-
Tamos acampando!
O
acampamento que ela se referia era um lençol esticado, com as pontas amarradas
em quatro cadeiras, como se fosse uma barraca, e eles ficavam sentados lá embaixo. Vera brincou muito disso quando foi criança com seus amiguinhos. E recordou que sua mãe não entendia qual era a graça deles
ficarem ali embaixo espremidos um no outro, jogando luz da lanterna na própria cara enquanto contavam histórias.
Como
Vera ainda se lembrava da sua infância, não recriminou Anabela. Mas pediu:
-
Tá bom, brinquem à vontade, mas deixa mamãe estudar esses processos. Tenho uma
audiência na segunda e não posso chegar lá sem saber de nada, né?
Anabela
concordou. A testa dela brilhava de suor :
-
Claro, mãe. Vou falar com Juninho.
Anabela
deu as costas e correu pelo corredor até o seu quarto.
Juninho
ajeitava as pilhas na lanterna que segurava e quando viu Anabela de volta,
perguntou:
-
Ela tá mais calma? - Esse ELA se referia à sua mãe.
-
Mais ou menos - respondeu Anabela, sentando no chão com as pernas cruzadas. - Ela
só pediu que não fizéssemos barulho.
Juninho
ligou a lanterna e jogou o foco da luz em cima da irmã:
-
É!!!! Mas é impossível a gente brincar quietos!
Dequinha,
deitada na cama, disse:
-
Podemos brincar de estátua.
-
Estátua é coisa de menina! - Juninho reclamou.
- Podemos falar baixinho... - disse Anabela, coçando as pernas.
- Podemos falar baixinho... - disse Anabela, coçando as pernas.
Ele
estalou os dedos e riu.
-
Já sei! Vamos apagar a luz e contar histórias de terror!
-
Nãoooooo!!! - Dequinha agarrou seu travesseiro. - Não gosto de ficar no escuro!
Juninho
direcionou a lanterna na direção da caçula e jogou a luz nos olhos dela.
-
Medrosa! Toma luz na cara então! - Ele desandou naquela gargalhada que parecia
um relincho.
-
Para, Juninho! - advertiu Anabela. - Ela vai contar pra mamãe.
-
Se ela contar, falo com meu amigo que é fantasma pra puxar os pés dela de
noite!
Dequinha
pulou da cama e protestou:
-
Não! Juro que não falo com mamãe...
Juninho
jogou a lanterna de uma mão para a outra. A expressão no seu rosto era séria.
-
Acho que agora já era! Ele disse que vem te visitar hoje!
Dequinha
saiu correndo do quarto, enquanto Juninho rolava de rir no chão. Anabela disse:
-
Maldade, Juninho. Dequinha pode ter pesadelos por causa disso!
Ainda
rindo e exibindo seus dentes cavalares e amarelados, o garoto disse:
-
Que tenha! Ela é muito chata!
Dequinha
saiu pelo corredor e viu a porta do quarto da sua avó entreaberta. Entrou ali e
Fernanda, que assistia um filme junto com dona Vitória, perguntou:
-
Que carinha assustada é essa, neném?
Dequinha
ficou parada na porta. Estava vestida com seu pijama de gatinhos e disse, com o
beicinho trêmulo:
-
É Juninho... ele tem um amigo fantasma... vai me pegar no escuro...
Fernanda
pediu que ela se aproximasse. Dequinha andou devagar, com as pernas juntas e
quando chegou perto da empregada, Fernanda pegou-a e a pôs no seu colo.
-
Você não gosta do escuro, não é?
-
Não! - disse Dequinha, com os olhos marejados.
-
Bem, me escute. Prometo que não vou deixar que nenhum fantasma pegue no seu pé.
Se ele aparecer, mato ele!
Dequinha
ficou surpresa:
-
Você não pode matar um fantasma! Ele já morreu!
Fernanda
acariciou os cabelos da menina e murmurou:
-
Então mato de novo! Assim ele morre duas vezes!
Dequinha
riu.
-
Você é engraçada, Fernanda!
Dona
Vitória, que mantinha os olhos aquosos na telinha da tevê, olhou para elas e
disse, naquele tom de voz gutural:
-
Ferpa... Ferpita...
-
Vó! - Dequinha gritou. - O nome dela é Fernanda! Fala certo! Fernanda!!!!!!
A
julgar pelos olhos azuis ausentes da velha senhora, ela não entendeu nada do
que a neta dissera. Fernanda tirou Dequinha do seu colo e disse:
-
Vou ter que botar sua avó para dormir. Pode ir despreocupada, nenhum fantasma
vai puxar seus pés de noite. Eu vou ficar de olho nele.
-
Jura?
-
Juro. Agora vai.
Depois
que Dequinha saiu, Fernanda tirou a velha senhora da cadeira de rodas e a
acomodou no colchão d'água da imensa cama. Trocou a roupa, colocando uma
camisola fresca. O jeito que a velha a olhava era como o olhar de um cachorro
agradecido pelo osso. Fernanda pôs as mãos na cintura e disse:
-
Você pesa um bocado.
Fernanda
passou os olhos pelo armário e a penteadeira da velha. Ela pensou em voz alta:
-
Aposto que tem joias caras... Não me admiro. Antigamente as mulheres ricas
ganhavam joias dos maridos como se fosse um calaboca. Não é verdade, Vitória? Enquanto teu marido se divertia com putas, você não tinha orgasmos com rubis e esmeraldas?
Fernanda
sorriu. Quando saiu do quarto, dona Vitória ainda estava acordada. Ela apagou a
luz e fechou a porta.
Aurélio
saía do quarto de casal. Os dois quase se esbarraram no corredor. Aurélio
pediu desculpas e passou por ela. Fernanda virou a cabeça e olhou o homem de
camisa polo e calça jeans indo para a sala. Ele tinha um ar preocupado no
rosto. Ela deu de ombros e foi para seu quarto.
Continua...
No próximo capítulo: Aurélio e Vera discutem novamente.
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Aurélio e Vera discutem novamente.
Rogerio de C. Ribeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário