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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 8

No capítulo anterior: Fernanda, a nova empregada doméstica da família Paranhos, conhece o restante dos moradores do casarão. Para surpresa de Vera, sua mãe simpatizou com a moça. 

Aurélio parou exausto, se apoiando no muro do casarão. Suas pernas pareciam que pegavam fogo. O coração pulsava na garganta. A camisa estava encharcada de suor. Respirou fundo várias vezes. Olhou a rua abaixo.
Raramente subia a colina à pé. Normalmente ia e voltava de carona com Vera, mas hoje ela tinha a entrevista com a nova empregada doméstica e não pôde sair de casa.
Por cima do muro viu o monstrengo que era aquele casarão decrépito. A fachada com a varanda de pilastras vivia abandonada, coberto de infiltrações pelas paredes e o gramado que se transformou em um matagal. De noite ouvia nitidamente guinchos das ratazanas que corriam pela varanda e pelo muro.
Aurélio continuou encostado no muro pelo lado de fora. Antigamente, ainda sentava na varanda para observar a rua descendo, mas agora não tinha mais prazer de ficar no vestíbulo frio, úmido, sem vida. Só ficava ali mesmo quando fumava.
Há dias, sugeriu levemente que Vera vendesse o casarão enquanto era tempo. Quanto mais tempo passasse, mais a casa ficaria desvalorizada.A reação que ela teve foi a pior possível:
- Do que você tá falando?
- Meu amor, ainda se consegue um bom dinheiro pela casa. O terreno é grande e cobiçado pelas construtoras. Quantas propostas já recebeu?
- Agora? Uma só! E rasguei a proposta na cara do sujeito!
- Pense no futuro das crianças! Se fôssemos morar em um apartamento em Icaraí...
- Apartamento??? Ficou maluco, Aurélio? Quer que nossos filhos fiquem trancados dentro de um apartamento??
- Não é nenhum bicho de sete cabeças! Sempre morei em apartamento.
- E eu sempre em casa. Nessa casa!
Vera era teimosa. Não enxergava que aquele casarão só dava despesas. E na condição que estavam, logo a casa perderia o valor.
- Olha só - Aurélio disse, pausadamente, escolhendo as palavras certas, - tem um cliente interessado de comprar essa casa. Ele paga à vista! Com o dinheiro dele, podemos comprar um apartamento em Icaraí e mais uns dois no centro da cidade para alugarmos. Pelo menos você não se preocuparia com dinheiro contado...
Vera explodiu, que era seu normal:
- Uma pinoia! Meu pai construiu essa casa há mais de quarenta anos. Ele e mamãe vieram morar aqui ainda jovens. Eu nasci aqui! Essa casa foi palco de encontros memoráveis com a alta sociedade de Niterói! Por aqui desfilaram escritores, artistas, políticos. As reuniões que meu pai organizava mensalmente era manchete de jornais da Capital! Pessoas disputavam um convite a tapa!
- Você tá vivendo do passado. Agora, são outros tempos!
- Minha mãe nunca se acostumaria de ficar trancada dentro de um quarto!
- Ela já fica! Sua mãe não tem nenhuma condição para distinguir onde está.
- Não adianta, Aurélio. Não vendo a casa.
- Abra os olhos. Enxergue o óbvio! Tem infiltrações se alastrando pela casa toda. A fiação elétrica tem que ser toda mudada, senão corre o risco de um dia tudo isso aqui incendiar. O jardim é um antro de lixo. Ratos passeiam pela varanda como se estivessem desfilando. A garagem é um amontoado de caixas com papéis e quinquilharias inúteis.
- Aurélio, fique à vontade. Se quer sair daqui, a porta é serventia da casa. Pegue suas trouxas e sai. Eu não arredo pé daqui. Nem eu e nem as crianças.
E Aurélio decidiu não falar mais nada por enquanto. O cliente estava obcecado pelo terreno. Sonhava em construir ali o maior prédio residencial de Niterói. E não era por menos. Um edifício de 20 andares naquele local teria uma vista privilegiada da praia de Icaraí e do centro da cidade. Um apartamento ali valeria pelo menos uns 500 mil no barato. E tinha um bônus com a comissão pela venda do terreno... seria sua independência financeira.
Na surdina, tentaria novamente com Vera. Tinha que agir sem que ela desconfiasse de nada. Aurélio lembrou do dia que recebeu a oferta; estava sozinho no escritório quando o telefone tocou. O sujeito se identificou como Xavier e procurava por ele. Explicou que trabalhava para um poderoso construtor que estava interessado em um terreno específico no Bairro de Fátima.
- Que terreno? - Perguntou Aurélio.
- Podemos marcar um encontro? Um almoço?
Aurélio aceitou o almoço em um restaurante em São Francisco. Mal tinha feito o pedido para o garçom, Xavier, um sujeito alto e acima do peso, de um nariz acostumado a muito pó, foi logo entrando no assunto:
- Olha, não sou o tipo de cara que fica de enrolação na conversa. O intuito de você ter sido convidado é um só. Meu cliente tá disposto, a qualquer custo, em adquirir um terreno no Bairro de Fátima.
Aurélio levantou os olhos que estavam fixos no cardápio.
- Você já me falou nisso. Mas vou ser sincero contigo, achar um terreno vazio naquele bairro é uma tarefa quase impossível.
Aurélio notou que Xavier, quando falava, passava as costas da mão naquele gigantesco nariz.
- E quem disse em terreno vazio?
O garçom se aproximou carregando uma bandeja com alguns petiscos. Xavier pegou seu guardanapo do colo e esfregou no narigão. Aurélio serviu-se de azeitonas pretas.
- Vou simplificar essa estória toda. Não liguei pro teu escritório em busca de informações. Meu cliente, o tal da construção, não quer ver o seu nome divulgado agora e me incumbiu nessa tarefa. Ele bateu na mesa e disse: "Quero tal terreno pro meu projeto". E tá disposto de pagar a quantia que for.
- Ainda não entendi...
- Vai entender, espera um pouco! Saboreie aí  essas azeitonas calabresas e só me escute!
" Meu cliente, que não posso dizer quem é, intimou que eu conseguisse, a qualquer custo, um terreno nesse bairro que falei. Mandei várias cartas para a proprietária do terreno oferecendo uma quantia X, mas ela nunca respondeu a nenhuma carta. Resolvi então ligar. A princípio, ela me atendeu educadamente, mas quando ouviu que era sobre a compra da casa, simplesmente bateu com o telefone na minha cara!
"Mas aquilo não me abalou, tanto que fui pessoalmente no escritório dela. Ela me disse na cara dura que por nenhuma quantia venderia a casa. Ela nem quis saber o valor oferecido, simplesmente abriu a porta e me escorraçou da sala dela como se eu fosse um cachorro sarnento!
"Liguei pro meu cliente, expliquei toda dificuldade que rondava aquela transação, mas ele foi direto no ponto: Me deu carta branca para conseguir aquele terreno de qualquer forma!
"Mas como?, pensei. Aí entrou em cena um amigo que é do mesmo ramo. Ele que me deu a ideia. Se a mulher tá fazendo jogo duro, porquê não falar com o marido dela?
"Investiguei quem era o tal marido. Pra sorte minha, um conhecido, que também é corretor de imóveis, me falou que o conhecia. Me deu o telefone e o endereço da imobiliária que ele trabalhava. Foi aí então que te liguei!
- Imaginei isso. Próprio da Vera. - Aurélio cuspiu um caroço de azeitona na palma da mão e juntou-a com outros caroços em um prato de sobremesa. Limpou a boca com o guardanapo e prosseguiu. - Minha mulher é daquele estilo extremamente radical. Se bota uma coisa na cabeça, nem Cristo consegue que mude de opinião.
- Mas você é o marido dela, pai das crianças! - Xavier esfregou o nariz com um guardanapo, onde em seguida largou no seu colo. Aurélio nem queria imaginar se aquele guardanapo ia ser usado no almoço; manteve seu foco nas azeitonas.
- Sim, sou o marido e pai dos meus filhos. E também o único daquela casa sem direito ao voto.
- É difícil acreditar nisso - resmungou Xavier, enquanto passava as costas da mão naquele nariz que era como um aspirador de pó branco.
- Não é tão difícil assim - comentou Aurélio, em seu eterno conformismo. - Quando casei com Vera, meu estimado sogro, que agora descansa no céu junto aos anjos tocando harpa, praticamente obrigou que eu assinasse um pacto pré-nupcial para que sua filha tivesse sua benção no matrimônio. Percebe que ele não era muito a favor que sua filha dondoca casasse com um pé rapado como eu era. Por isso, fez um contrato, que entre itens e sub itens, dizia que eu não tinha nenhum direito naquele casarão, e que todos bens de sua filha seriam somente dela e dos futuros filhos. Caso houvesse uma separação, eu simplesmente sairia daquele casarão decrépito com uma mão na frente e outra atrás.
Xavier ouviu com atenção. E anotava tudo em uma caderneta. O garçom veio com os pedidos e Aurélio disse:
- Agora entende, né? Por mim, já tinha vendido aquele mausoléu há muito tempo!
Xavier pegou um celular do seu bolso. Fez um gesto com a mão pedindo silêncio e conversou com alguém em espanhol. Aurélio conhecia poucas palavras nesse idioma e mal entendeu o que era falado. Xavier desligou o telefone e disse:
- Bem... desculpe tê-lo interrompido assim. Liguei pro cliente. Ele fez uma contraproposta. Acredito que você vai gostar dela.
- Sou todos ouvidos, mas já te falei...
Xavier o interrompeu. Esfregou o narigão e disse:
- Primeiro escute a proposta. Se você conseguir convencer que sua esposa venda o casarão e o terreno pelo preço oferecido, meu cliente está disposto de, além de pagar a comissão de cinco por cento, que é a de mercado, ainda te dar um bônus de cem mil reais, em cash, dinheiro vivo, livre de impostos, na tua mão!
Aurélio engasgou enquanto engolia um pedaço de carne assada. Largou o garfo e disse, assustado:
- Cem mil...
- Livre de impostos e mais a comissão da venda.
Aurélio não acreditou. Era uma proposta irrecusável!
- O negócio que seu cliente quer fazer deve ser uma coisa fora do comum...
- Ele quer construir o melhor prédio inteligente de Niterói. Cada apartamento valerá milhões. O que ele quer pagar ,não chega nem a dez por cento do que vai faturar depois!
Aurélio se imaginou com aquele dinheiro todo na mão. Ia conquistar sua independência financeira... Se livraria das explosões da sua mulher...
Podia ter seu próprio escritório. Ser reconhecido no mercado. Nunca mais ia ficar com as migalhas...
- E aí? Quer pelo menos tentar?
Aurélio decidiu.
- Pode dizer ao seu cliente espanhol que vou fazer de tudo, mas tudo mesmo, para que ele seja o próximo dono daquele casarão. Por bem ou por mal, eu vou conseguir!
Ele tentou só uma vez, sem nenhum sucesso. Deixou que passasse alguns dias para que Vera esquecesse daquela conversa, para retomar o assunto novamente. Uma hora conseguiria. Uma hora, ela ia enxergar que faria um ótimo negócio.
Aurélio desencostou do muro, onde recuperou o fôlego pela subida que fez pela colina. Abriu o portão. Quando ia entrando, viu uma moça subindo a rua carregando uma mala que parecia pesada. Achou a moça bonita, mesmo com o cabelo preso em um coque. Só o vestido fechado destoava. Ela acenou para ele timidamente e Aurélio concluiu que devia ser a nova empregada da casa, a que substituiria Belinda. Foi até ela e pegou sua mala.
- Não precisa - disse Fernanda, tímida.
- Essa subida mata qualquer um. Ainda com essa uma mala pesada...
- O senhor é o marido da dona Vera? Sou Fernanda, vou trabalhar na sua casa agora.
- Imaginei isso - disse ele, que observou pequenas gotinhas de suor naquele nariz sardento. A moça tinha olhos lindos! Verdes e amendoados!
- Meu nome é Aurélio - Ele se apresentou. - Seja bem vinda, Fernanda.
Ela sorriu. Ele deixou que ela entrasse primeiro e observou-a de costas. Com aquele vestido todo não tinha ideia se era gordinha ou magra. Ele deu de ombros, fechou o portão e entrou.

Continua...

No próximo capítulo: O primeiro jantar preparado pela nova empregada.

Rogerio de C. Ribeiro

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