Aurélio passou no quarto das meninas. Juninho e Anabela estavam embaixo do lençol, com a lanterna ligada, enquanto Dequinha dormia abraçada com uma boneca caolha. Ele desejou boa noite e quando fechou a porta, o celular vibrou dentro do bolso da sua calça jeans.
-
Alô! - disse Aurélio. Não reconheceu o número.
-
Boa noite, Aurélio! Xavier! - Exclamou o narigudo, no outro lado da linha.
-
Sabe que horas são? - Aurélio sussurrou, zangado.
-
Não... não tenho tempo pra olhar relógio! - Soltou uma gargalhada.
-
O que você quer?
No
outro lado da linha veio um som de nariz fungando e uma voz rouca:
-
O que eu quero? Ainda pergunta?
-
Xavier, não tive tempo pra convence-la ainda!
-
Cara!!!! Parece até que não gosta de grana!
-
Não é isso, foi falta de oportunidade...
Aurélio
afastou o celular da orelha. No outro lado, Xavier berrou:
-
Então arruma a porra dessa chance! Cara, meu cliente tá me pressionando direto me ligando de cinco em cinco minutos pra saber a resposta! Porra! Se ele me
pressiona, vou te pressionar também! Tu não quis entrar na parada? Não tá saindo de graça
pra você, merda!
-
Eu entrei e já te falei que vou fazer o possível...
- Faça o impossível então, merda!
Aurélio
disse:
-
Estou saindo do quarto das minhas filhas. Me liga amanhã.
Aurélio
ouviu um "Snif" e a voz de Xavier:
- Tenha certeza absoluta que vou ligar! Tem muita grana em jogo, irmão! Tanto
pra tu como pra mim. E não tô afim de perder essa bolada!
-
Ninguém vai perder, te garanto. Amanhã. Liga amanhã.
Desligou
e colocou o celular de volta no bolso da calça jeans. Caminhou em
frente e saiu na sala principal.
Vera
tinha uma pasta aberta e folheava um calhamaço de papéis. Ela levantou a
cabeça, tirou os óculos e comentou:
-
Minha cabeça tá doendo!
-
Lendo com essa lâmpada amarela... isso estraga qualquer vista.
Ele
puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dela. Vera largou a pasta em cima das
outras e, intrigada, perguntou:
-
O que você quer?
Aurélio
se fez de desentendido:
-
Por quê?
Vera
esticou o corpo na cadeira. Os seus óculos eram presos com uma fita e ficou
pendurado na altura dos seios.
-
Te conheço não é de hoje, Aurélio. Você passou o jantar inteiro com essa cara
preocupada. Vamos, não esconda.
-
Eu quero falar uma coisa, mas já conversamos antes e...
-
Já sei! Mais uma vez me engabelou e continua naquele muquiço de imobiliária.
Aquele papo que ia trabalhar na Patrimóvel era mentira...
-
Não é isso! Estive na Patrimóvel de Icaraí, mas ainda não encontrei o
gerente... O assunto é aquele que falamos naquele dia...
-
O quê? Da venda do casarão? Já não deixei bem claro que não vou vender a casa
em hipótese nenhuma?
Aurélio
tremia por dentro. Tremia de raiva, mas buscava forças para não explodir. Seria
pior, aí mesmo que Vera ficaria irredutível.
-
Verinha... - sua voz soou calma, - já parou um momento pra dar uma olhada nos vazamentos? E nas
infiltrações? Nunca esbarrou com uma ratazana na varanda que nunca tem luz?
Acha mesmo justo que nossos filhos vivam nesse mausoléu abandonado só porque
foi seu pai quem o construiu há trezentos anos?
-
Esse foi o único patrimônio que papai deixou de herança!
-
Um patrimônio endividado! Isso aqui é um elefante branco! Hoje você tem na mão
uma grande chance de passar isso para frente. Não é toda hora que surge uma
pessoa interessada em pagar uma quantia considerável por uma casa
caindo aos pedaços! Se você não aproveitar essa oportunidade, que é única,
amanhã pode se arrepender, e muito, da sua teimosia!
O jeito que Vera o escutava, no mais completo silêncio, animou Aurélio. Talvez
agora ela estivesse pesando na balança depois do argumento que apresentou. Vera
pegou um lápis, batucou com o lado da borracha na mesa e depois que pensou em
algo, disse:
-
O que está ganhando com isso, Aurélio?
O
coração dele disparou. Suas mãos suaram. Ele disfarçou.
-
Vera? Não entendi...
Vera
mordeu a ponta do lápis e não tirou os olhos em cima do marido.
-
Eu não sou boba, nem trouxa, Aurélio. Te conheço muito bem. Quanto vai levar na
venda da casa?
Ele
ganiu:
-
Eu???? Nada!!!
-
Tá muito interessado nessa venda. Até duas semanas atrás nem tocava nesse
assunto. Agora, só fala nisso.
-
Pô, Vera! Como pode ser tão injusta? - Ele buscava uma resposta rápido, antes
que botasse tudo a perder. - Sempre fiquei pensando nisso. Só não falei antes
porque nunca apareceu ninguém interessado na casa. Mas agora há!
-
E como você sabe que tem alguém interessado? Não falei com ninguém...
Aurélio
sentiu uma dor queimando suas costas. Era o estresse.
-
Verinha... sei que não falou comigo. Um dia, cheguei em casa mais cedo. Belinda
falou comigo que tinha um homem querendo falar com o dono da casa. Fui lá ver
quem era. Vi um cara grandalhão com um enorme nariz no portão. Ele me disse o
que queria e eu respondi que não podia fazer nada, era só com minha esposa. Ele
deu as costas e foi embora.
-
E não me disse nada...
-
Não disse porque esqueci. Sei lá por quê não falei... Não me meto com coisas
que não é da minha alçada, meu amor. E pelo que vi do sujeito narigudo, achei
que ele ia te procurar...
-
Procurou. E botei ele porta afora. Cara chato! Não fui com a cara dele. Achei ele com um
jeito de bandido...
-
Imaginação sua. Ele me pareceu bem normal.
Vera
pegou a pasta com os processos e disse:
-
Não sei não... é muito difícil me enganar com as pessoas. Mas deixa pra lá. Tem
minha resposta: Posso me arrepender amanhã, mas não existe nenhuma possibilidade de que
eu venda a casa que meu pai deixou para nossa família. E fim de assunto! Preciso ler esse o processo. Vou ter uma audiência que não vai ser mole. Me deixe
aqui sossegada, vá ler um livro.
Ela
enfiou os óculos na cara e voltou na leitura. Aurélio se afastou e foi para a
varanda. O ar da noite estava fresco com uma leve brisa que sacudia seus
cabelos. Tateou o bolso da calça e pegou um maço amassado de Derby. Acendeu um
cigarro e soprou a fumaça para o alto. Não fumava muito, só quando ficava
ansioso. Como agora. Sua ansiedade quase botou tudo a perder. Ia dizer isso ao
Xavier amanhã. Não adiantava aquela pressão toda, seria pior. Precisava usar da
sua astúcia de vendedor. Quando tinha um cliente na sua frente que só dizia
não, o que fazia? Dava as costas e ia embora? Não! Garimpava o cliente como se
fosse uma pedra bruta até que conseguisse atingir o ponto crucial, a hora do
sim.
Vera
precisava ser dilapidada lentamente. Uma hora ia aceitar seus argumentos e
diria sim. Depois disso, teria sua recompensa.
As
luzes de neon dos postes enfileirados rua abaixo mostravam várias casas. O
casarão que morava era no final da rua com uma vista privilegiada para a rua
que descia até a avenida principal. Talvez no século passado essa casa fosse a mais
importante da cidade. Agora era um depósito de velharias e quase caindo aos
pedaços.
Aurélio
terminou o cigarro e jogou-o no gramado em frente. Um rato passou correndo e se
escondeu em algum canto perto do muro. Aurélio ameaçou dar a volta e viu um
homem subindo a rua. Ficou curioso. A maioria dos moradores subiam a rua de
carro, talvez fosse alguém procurando um número...
De
onde estava não podia ver como era o sujeito. Ele olhava as casas, parou - com
certeza bem cansado pela subida - acendeu um cigarro e deu meia-volta e desceu
a rua.
-
Alguém que deve estar perdido. Mas que lugar para errar de rua!
Ele
deu as costas e entrou.
Continua...
No próximo capítulo: Domingo ensolarado. Uma conversa no jardim e um passeio ao parque.
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Domingo ensolarado. Uma conversa no jardim e um passeio ao parque.
Rogerio de C. Ribeiro
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