Vera observou a moça sentada à sua frente. Ela foi pontual com o horário, às dez
horas em ponto tocou a campainha. As duas estavam na sala de jantar, sentadas à
mesa, uma defronte da outra.
A
moça era bonita. Tinha cabelos lisos presos em um coque, olhos verdes
amendoados, nariz pequeno salpicado de sardas, trajava um vestido comprido e
fechado. Carregava uma bolsa discreta que descansava no seu colo e no pulso havia um pequeno relógio.
A primeira impressão que Vera teve foi que a moça era discreta, um pouco tímida. Quando se
apresentou, ela desviou os olhos para o chão.
-
Bom dia, dona Vera - disse a moça. Sua voz era suave e com tom baixo.
-
Bom dia, Fernanda. - disse Vera, cordata. - Teve dificuldade de achar a casa?
-
Não - disse Fernanda com os olhos fixos nas suas mãos sobre a mesa. Vera
observou que as unhas da moça eram cortadas e sem esmalte. - Logo que subi a
rua, vi a casa.
O
casarão ficava no final da rua. Para se chegar lá, a pessoa precisava subir por
uma calçada de paralelepípedo em linhas sinuosas. Por isso que Vera não abria mão
do carro; aquela subida à pé era desgastante.
-
Quer uma água? Deve estar cansada com essa subida. Chamo isso aqui de colina -
Vera riu da sua piada e Fernanda esboçou um leve e tímido sorriso.
"Não
gosta de mostrar os dentes quando ri, pensou Vera, ainda analisando a moça,
isso é bom. De extravagante, já basta eu nessa casa."
-
Não, obrigada - sussurrou Fernanda.
-
Já trabalhou em casa de família? - Vera perguntou.
-
Só uma vez. - respondeu Fernanda timidamente. - Trabalhei na casa de Dona
Paulina, em Copacabana.
- Por quanto tempo?
-
Quase oito meses.
-
E por quê saiu?
-
Saí porque ela morreu - respondeu Fernanda, constrangida. - Quando dona Regina
me contratou, era para cuidar exclusivamente da sua mãe, que sofria com Mal de
Parkinson. Infelizmente, ela teve complicações e precisou ficar internada.
-
E você a acompanhou no hospital?
Fernanda
tirou da sua bolsa um lenço e enxugou os olhos.
-
Sim. Fiquei com ela até o último momento. Ela morreu segurando minha mão.
Constrangida
com as lágrimas da moça, Vera mudou de assunto:
-
Você é casada? Tem namorado?
As
faces da moça enrubesceram.
-
Tinha um, mas terminou.
-
Seria indiscrição da minha parte perguntar por quê?
-
Tentei leva-lo para a igreja, mas ele não quis ter Jesus no coração.
Vera
gostou do que ouviu.
-
Ah, então você é evangélica?
-
Sim. Obreira da Igreja das Graças.
-
Trabalhando aqui, só com duas folgas no mês, não vai atrapalhar nos cultos que
frequenta?
Fernanda
balançou a cabeça. Agora olhava seus pés. Ela usava um par de sandália de salto
baixo.
-
Não me atrapalha, dona Vera. Jesus sabe que preciso desse trabalho.
-
Você tem filhos?
Dessa
vez, as lágrimas romperam mais fortes.
-
Desculpe, dona Vera - disse Fernanda, enxugando os olhos e assoando o nariz com
o lenço. - Toda vez que lembro do meu filho, só Jesus para aplacar minha dor.
-
O que houve com seu filho?
Dessa
vez, Fernanda falou com seus olhos fixos para a mulher na sua frente:
-
Fui mãe cedo. Me apaixonei por um homem mais velho. Eu tinha quinze anos.
Ele prometeu que ia se casar comigo. Acreditei. Nessa época, era ingênua em matéria de paixão. Me entreguei a ele, sem questionar se era casado
ou não. Minha família não sabia do meu romance com ele. Se soubessem, não iam
deixar que um homem de 34 anos fosse enganar uma menina que só tinha menstruado
uma vez. Ou não. Bem, agora é pouco tarde para saber. Já aconteceu.
Aquela
moça conseguiu o que muitos tentaram e não tiveram sucesso. Vera sentiu pena da
pobre coitada.
-
Quando engravidei, ele sumiu do mapa. Nesse tempo morava com minha mãe
e três irmãos num barraco de dois cômodos no Caramujo. Fiquei desesperada.
Acreditava que minha mãe ia me escorraçar de casa por causa do meu erro.
Imaginava meus irmãos me chamando de vagabunda, meretriz... Escondi a
gravidez até onde pude, mas um dia minha mãe me viu no banheiro e descobriu
tudo. E aquilo tudo que achava foi apenas fruto da imaginação de uma adolescente
ingênua. Mamãe falou que onde moravam cinco podiam morar seis e meus irmãos me
tratavam com muito carinho.
"Quando meu filho nasceu, minha mãe escolheu o nome de Leonardo. Ela era muito fã
do cantor - Fernanda sorriu, envergonhada. Vera,interessada, ouvia a história. -
Leonardo era a alegria da nossa casa. Eu era muito nova e não sabia cuidar bem
de um neném, por isso minha mãe tomou conta daquele neto como se fosse seu
filho.
"
A senhora se lembra das chuvas que caíram em abril de 2010? - Vera balançou a
cabeça, em sinal positivo. - Bem, teve um monte de desabamentos, e minha casa
não escapou das chuvas. Eu tinha ido com meu filho na casa de uma tia em
Itaboraí, era aniversário da minha prima Zuleide. A festa ia ser ao ar livre, mas
com o temporal fizeram dentro da casa mesmo. Minha tia recebeu a ligação de uma
amiga nossa de Caramujo. Vários barracos foram soterrados pela lama que desceu
do morro, e uma das casa era a minha. Ninguém escapou, minha mãe e meus irmãos
morreram dormindo!"
Vera
se arrependeu de ter perguntado se ela tinha filhos. Que história triste!
-
Depois disso, fui morar sozinha em um quarto e sala ao lado da casa da minha
tia em Itaboraí. Arrumei um emprego como caixa em um supermercado do bairro e
meu filho ficava numa creche durante o dia. Ele era muito ativo! A gente
piscava o olho e ele já tinha feito mil coisas. Ficava doidinha com ele, mas
também agradecia que era cheio de saúde!
"Quando
ele fez quatro anos, planejei alugar uma casa maior. A que morava ficava no
alto de uma escadaria; toda vez que ele subia os degraus, fazia isso correndo.
Cansei de chamar a atenção dele, mas a senhora sabe como é criança. Só obedecem
a gente quando querem. Acham que são independentes pra fazer o que querem..."
Vera
concordou.
-
Leonardo brincava com os primos na casa abaixo, mas naquele domingo todo mundo
tinha saído e só nós ficamos em casa. Deixei-o na sala com seus bonecos
brincando sozinho enquanto fui fazer o almoço. Foi uma semana muito desgastante
para mim, precisei fazer horas extras pra cobrir as férias de uma colega.
Jurava que tinha trancado a porta da sala. Sempre trancava quando ficava
sozinha com ele. Mas esse dia esqueci de passar a chave. Leonardo foi um menino
muito inteligente e esperto. Alcançou a maçaneta e abriu a porta.
"Com
certeza queria descer para ver se achava os primos. Da cozinha, ouvi o barulho no lado de fora. Corri apavorada para a sala e vi a porta aberta. Encontrei Leonardo caído no final da escada. Na sua mania de descer pulando os degraus,
virou o pé, tropeçou e desceu rolando escadaria abaixo.
"
Dona Vera, foi depois do acidente que procurei a ajuda de Deus. A imagem do meu
filho caído, a cabeça virada ao contrário por causa do pescoço quebrado, não
sai da minha cabeça até hoje. Nunca senti tanta dor, era uma dor que me rasgava
por dentro. Nem na morte da minha mãe e irmãos sofri como naquele momento. Uma
mãe nunca devia enterrar seu filho...
"Depois
que ele morreu, pensei em me matar. Perdi minha família em menos de um ano.
Fiquei sem rumo, até que minha tia me levou para a igreja. Foi o pastor Edinalvo
que me ajudou. Ele me apresentou a Jesus, e Graças a Ele, aos poucos fui
aceitando minha nova vida."
Vera
sentiu um nó na garganta. Quanta tragédia para uma menina tão nova! E ela que reclamava da sua vida... Pensou nos seus filhos. Agradecia por eles estarem ao
seu lado, cheios de vida e de saúde...
-
Fernanda, sinto muito por isso tudo...
-
Já aconteceu, foi a vontade de Deus.
-
Eu quero deixar bem claro de como eu sou. - Vera mudou o rumo da conversa. Se cansou de tanta desgraça junta. - Se você servir bem a casa e a
família, terá de mim todo apoio que precisar. Uma coisa que não admito é
preguiça. Já viu que a casa não é pequena. Tá preparada para as tarefas? Tem
que manter o casarão limpo, fazer duas refeições por dia, olhar meus filhos e
minha mãe...
Fernanda
concordou.
-
Sim, dona Vera. Não tenho medo de trabalho. Isso não me assusta.
-
Bem... se o que diz é verdade... Agora vamos falar do salário. Só posso pagar o
que tenho na mão hoje. Se a nossa situação financeira melhorar, você terá um
aumento. Hoje só...
Ela
ia dizer o valor, mas Fernanda levantou as suas duas mãos e disse:
-
O que a senhora puder me pagar já é em bom tamanho.
Vera
ia oferecer oitocentos reais. Ficou com medo que pagando menos a moça podia
desistir. Belinda já tinha ido embora e ela precisava, com máxima urgência,
de uma substituta para o dia seguinte. Quando a moça não quis saber do valor,
foi a deixa para ela.
-
Bem, eu pensava em... - Vera arriscou. - Quinhentos reais. Sei que é menos que
o salário mínimo, mas é o que posso pagar agora. E pensando bem, quinhentos
reais não é pouco. Você vai ter um quarto, claro que é o de empregada, um
banheiro pequeno só seu, vai comer de graça e pode assistir a novela das nove
com minha mãe. Se a gente somar tudo, sairia a mais de mil reais!
-
Isso é justo, dona Vera.
-
Então? Aceita?
Fernanda
concordou com a cabeça.
-
E pode começar... - Vera desistiu de segunda-feira. Ora bolas, se a menina
estava tão disposta em trabalhar por quinhentos reais, então porquê não
começaria hoje mesmo? Assim, ela podia descansar no final de semana tendo uma
pessoa olhando sua mãe. - Que tal hoje?
-
Como a senhora quiser.
Vera
ficou de pé. Estava satisfeita. Belinda foi embora às sete horas e agora, onze
horas, já tinha outra empregada.
-
Mas antes vou te apresentar aos meus filhos e à minha mãe.
Fernanda
também se levantou. Vera avaliou a moça de novo. Não devia ter mais que 1,65m.
E achou-a gordinha também.
-
Então vamos. Venha conhecer a minha casa e a família!
Continua...
No próximo capítulo: Os habitantes do casarão conhecem a nova empregada.
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Os habitantes do casarão conhecem a nova empregada.
Rogerio de C. Ribeiro
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