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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 6

Nos capítulos anteriores: Vera Paranhos fica desesperada com a aposentadoria da sua empregada doméstica. Belinda diz que vai procurar uma substituta para cuidar de Dona Vitória, uma senhora que vive na cadeira de rodas e é senil e para os três filhos do casal. Vera está cansada da falta de ambição do marido. Belinda avisa que sua irmã encontrou uma moça que quer trabalhar no casarão.

Vera observou a moça sentada à sua frente. Ela foi pontual com o horário, às dez horas em ponto tocou a campainha. As duas estavam na sala de jantar, sentadas à mesa, uma defronte da outra.
A moça era bonita. Tinha cabelos lisos presos em um coque, olhos verdes amendoados, nariz pequeno salpicado de sardas, trajava um vestido comprido e fechado. Carregava uma bolsa discreta que descansava no seu colo e no pulso havia um pequeno relógio.
A primeira impressão que Vera teve  foi que a moça era discreta, um pouco tímida. Quando se apresentou, ela desviou os olhos para o chão.
- Bom dia, dona Vera - disse a moça. Sua voz era suave e com tom baixo.
- Bom dia, Fernanda. - disse Vera, cordata. - Teve dificuldade de achar a casa?
- Não - disse Fernanda com os olhos fixos nas suas mãos sobre a mesa. Vera observou que as unhas da moça eram cortadas e sem esmalte. - Logo que subi a rua, vi a casa.
O casarão ficava no final da rua. Para se chegar lá, a pessoa precisava subir por uma calçada de paralelepípedo em linhas sinuosas. Por isso que Vera não abria mão do carro; aquela subida à pé era desgastante.
- Quer uma água? Deve estar cansada com essa subida. Chamo isso aqui de colina - Vera riu da sua piada e Fernanda esboçou um leve e tímido sorriso.
"Não gosta de mostrar os dentes quando ri, pensou Vera, ainda analisando a moça, isso é bom. De extravagante, já basta eu nessa casa."
- Não, obrigada - sussurrou Fernanda.
- Já trabalhou em casa de família? - Vera perguntou.
- Só uma vez. - respondeu Fernanda timidamente. - Trabalhei na casa de Dona Paulina, em Copacabana.
- Por quanto tempo?
- Quase oito meses.
- E por quê saiu?
- Saí porque ela morreu - respondeu Fernanda, constrangida. - Quando dona Regina me contratou, era para cuidar exclusivamente da sua mãe, que sofria com Mal de Parkinson. Infelizmente, ela teve complicações e precisou ficar internada.
- E você a acompanhou no hospital?
Fernanda tirou da sua bolsa um lenço e enxugou os olhos.
- Sim. Fiquei com ela até o último momento. Ela morreu segurando minha mão.
Constrangida com as lágrimas da moça, Vera mudou de assunto:
- Você é casada? Tem namorado?
As faces da moça enrubesceram.
- Tinha um, mas terminou.
- Seria indiscrição da minha parte perguntar por quê?
- Tentei leva-lo para a igreja, mas ele não quis ter Jesus no coração.
Vera gostou do que ouviu.
- Ah, então você é evangélica?
- Sim. Obreira da Igreja das Graças.
- Trabalhando aqui, só com duas folgas no mês, não vai atrapalhar nos cultos que frequenta?
Fernanda balançou a cabeça. Agora olhava seus pés. Ela usava um par de sandália de salto baixo.
- Não me atrapalha, dona Vera. Jesus sabe que preciso desse trabalho.
- Você tem filhos?
Dessa vez, as lágrimas romperam mais fortes.
- Desculpe, dona Vera - disse Fernanda, enxugando os olhos e assoando o nariz com o lenço. - Toda vez que lembro do meu filho, só Jesus para aplacar minha dor.
- O que houve com seu filho?
Dessa vez, Fernanda falou com seus olhos fixos para a mulher na sua frente:
- Fui mãe cedo. Me apaixonei por um homem mais velho. Eu tinha quinze anos. Ele prometeu que ia se casar comigo. Acreditei. Nessa época, era ingênua em matéria de paixão. Me entreguei a ele, sem questionar se era casado ou não. Minha família não sabia do meu romance com ele. Se soubessem, não iam deixar que um homem de 34 anos fosse enganar uma menina que só tinha menstruado uma vez. Ou não. Bem, agora é pouco tarde para saber. Já aconteceu.
Aquela moça conseguiu o que muitos tentaram e não tiveram sucesso. Vera sentiu pena da pobre coitada.
- Quando engravidei, ele sumiu do mapa. Nesse tempo morava com minha mãe e três irmãos num barraco de dois cômodos no Caramujo. Fiquei desesperada. Acreditava que minha mãe ia me escorraçar de casa por causa do meu erro. Imaginava meus irmãos me chamando de vagabunda, meretriz... Escondi a gravidez até onde pude, mas um dia minha mãe me viu no banheiro e descobriu tudo. E aquilo tudo que achava foi apenas fruto da imaginação de uma adolescente ingênua. Mamãe falou que onde moravam cinco podiam morar seis e meus irmãos me tratavam com muito carinho.
"Quando meu filho nasceu, minha mãe escolheu o nome de Leonardo. Ela era muito fã do cantor - Fernanda sorriu, envergonhada. Vera,interessada, ouvia a história. - Leonardo era a alegria da nossa casa. Eu era muito nova e não sabia cuidar bem de um neném, por isso minha mãe tomou conta daquele neto como se fosse seu filho.
" A senhora se lembra das chuvas que caíram em abril de 2010? - Vera balançou a cabeça, em sinal positivo. - Bem, teve um monte de desabamentos, e minha casa não escapou das chuvas. Eu tinha ido com meu filho na casa de uma tia em Itaboraí, era aniversário da minha prima Zuleide. A festa ia ser ao ar livre, mas com o temporal fizeram dentro da casa mesmo. Minha tia recebeu a ligação de uma amiga nossa de Caramujo. Vários barracos foram soterrados pela lama que desceu do morro, e uma das casa era a minha. Ninguém escapou, minha mãe e meus irmãos morreram dormindo!"
Vera se arrependeu de ter perguntado se ela tinha filhos. Que história triste!
- Depois disso, fui morar sozinha em um quarto e sala ao lado da casa da minha tia em Itaboraí. Arrumei um emprego como caixa em um supermercado do bairro e meu filho ficava numa creche durante o dia. Ele era muito ativo! A gente piscava o olho e ele já tinha feito mil coisas. Ficava doidinha com ele, mas também agradecia que era cheio de saúde!
"Quando ele fez quatro anos, planejei alugar uma casa maior. A que morava ficava no alto de uma escadaria; toda vez que ele subia os degraus, fazia isso correndo. Cansei de chamar a atenção dele, mas a senhora sabe como é criança. Só obedecem a gente quando querem. Acham que são independentes pra fazer o que querem..."
Vera concordou.
- Leonardo brincava com os primos na casa abaixo, mas naquele domingo todo mundo tinha saído e só nós ficamos em casa. Deixei-o na sala com seus bonecos brincando sozinho enquanto fui fazer o almoço. Foi uma semana muito desgastante para mim, precisei fazer horas extras pra cobrir as férias de uma colega. Jurava que tinha trancado a porta da sala. Sempre trancava quando ficava sozinha com ele. Mas esse dia esqueci de passar a chave. Leonardo foi um menino muito inteligente e esperto. Alcançou a maçaneta e abriu a porta.
"Com certeza queria descer para ver se achava os primos. Da cozinha, ouvi o barulho no lado de fora. Corri apavorada para a sala e vi a porta aberta. Encontrei Leonardo caído no final da escada. Na sua mania de descer pulando os degraus, virou o pé, tropeçou e desceu rolando escadaria abaixo.
" Dona Vera, foi depois do acidente que procurei a ajuda de Deus. A imagem do meu filho caído, a cabeça virada ao contrário por causa do pescoço quebrado, não sai da minha cabeça até hoje. Nunca senti tanta dor, era uma dor que me rasgava por dentro. Nem na morte da minha mãe e irmãos sofri como naquele momento. Uma mãe nunca devia enterrar seu filho...
"Depois que ele morreu, pensei em me matar. Perdi minha família em menos de um ano. Fiquei sem rumo, até que minha tia me levou para a igreja. Foi o pastor Edinalvo que me ajudou. Ele me apresentou a Jesus, e Graças a Ele, aos poucos fui aceitando minha nova vida."
Vera sentiu um nó na garganta. Quanta tragédia para uma menina tão nova! E ela que reclamava da sua vida... Pensou nos seus filhos. Agradecia por eles estarem ao seu lado, cheios de vida e de saúde...
- Fernanda, sinto muito por isso tudo...
- Já aconteceu, foi a vontade de Deus.
- Eu quero deixar bem claro de como eu sou.  - Vera mudou o rumo da conversa. Se cansou de tanta desgraça junta. - Se você servir bem a casa e a família, terá de mim todo apoio que precisar. Uma coisa que não admito é preguiça. Já viu que a casa não é pequena. Tá preparada para as tarefas? Tem que manter o casarão limpo, fazer duas refeições por dia, olhar meus filhos e minha mãe...
Fernanda concordou.
- Sim, dona Vera. Não tenho medo de trabalho. Isso não me assusta.
- Bem... se o que diz é verdade... Agora vamos falar do salário. Só posso pagar o que tenho na mão hoje. Se a nossa situação financeira melhorar, você terá um aumento. Hoje só...
Ela ia dizer o valor, mas Fernanda levantou as suas duas mãos e disse:
- O que a senhora puder me pagar já é em bom tamanho.
Vera ia oferecer oitocentos reais. Ficou com medo que pagando menos a moça podia desistir. Belinda já tinha ido embora e ela precisava, com máxima urgência, de uma substituta para o dia seguinte. Quando a moça não quis saber do valor, foi a deixa para ela.
- Bem, eu pensava em... - Vera arriscou. - Quinhentos reais. Sei que é menos que o salário mínimo, mas é o que posso pagar agora. E pensando bem, quinhentos reais não é pouco. Você vai ter um quarto, claro que é o de empregada, um banheiro pequeno só seu, vai comer de graça e pode assistir a novela das nove com minha mãe. Se a gente somar tudo, sairia a mais de mil reais!
- Isso é justo, dona Vera.
- Então? Aceita?
Fernanda concordou com a cabeça.
- E pode começar... - Vera desistiu de segunda-feira. Ora bolas, se a menina estava tão disposta em trabalhar por quinhentos reais, então porquê não começaria hoje mesmo? Assim, ela podia descansar no final de semana tendo uma pessoa olhando sua mãe. - Que tal hoje?
- Como a senhora quiser.
Vera ficou de pé. Estava satisfeita. Belinda foi embora às sete horas e agora, onze horas, já tinha outra empregada.
- Mas antes vou te apresentar aos meus filhos e à minha mãe.
Fernanda também se levantou. Vera avaliou a moça de novo. Não devia ter mais que 1,65m. E achou-a gordinha também.
- Então vamos. Venha conhecer a minha casa e a família!

Continua...

No próximo capítulo: Os habitantes do casarão conhecem a nova empregada.

Rogerio de C. Ribeiro

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