- Obrigada.
Fernanda não respondeu. Ainda não ficou satisfeita por inteira. O menino calou-se muito rápido e a menina de nove anos também. Fernanda pensou enquanto seguiu para a cozinha:
"Eles vão falar. Ficaram com medo, e as únicas pessoas que podem protegê-los são os pais. Mas se pensam que são mais espertos, vão conhecer uma que é mais que elas!"
Vera
não teve um bom dia. As coisas começaram a dar errado já no Fórum. Ela e o
cliente ficaram horas esperando pela audiência. O lugar estava lotado de
advogados, clientes, vendedores de cafezinho, policial escoltando bandido e ventiladores desligados. Vera improvisou um leque de uma propaganda de
supermercado que achou em cima do comprido banco de madeira que sentava.
Uóchinton ( por incrível que pareça, os inspirados pais do seu cliente o
batizaram assim, com essa grafia aportuguesada ) já chegou reclamando de tudo.
Da esposa, dos filhos, do mundo. Era um sujeito de um metro e sessenta,
raquítico, com um imenso pomo-de-adão que ia e vinha em um pescoço comprido.
Sua cara lembrava o de uma fuinha neurótica.
-
Doutora, minha mulher vive reclamando dessa demora toda e ela está coberta de
razão! Ela acha que a senhora não tem se dedicado no meu processo como
devia!
Vera
folheava algumas folhas em uma pasta que apoiava nos seus joelhos. Ergueu a
cabeça e tirou os óculos de leitura.
-
Sua mulher disse o quê? Ela é advogada?
Uóchinton
engoliu em seco; o pomo-de-adão balançou.
-
A doutora sabe que não!
-
Me explique então como ela pode sugerir uma idiotice dessa?
-
Cremilda se preocupa comigo.
Vera
folheou algumas folhas e pegou uma.
-
Se sua caríssima mulher realmente se preocupasse contigo, devia ser a primeira,
já que vocês dormem juntos... eu acho... a te aconselhar para que não perdesse
sua cabeça à toa.
-
Doutora!!! - O rosto de fuinha ficou rubro.
-
A verdade dói, não é? Se sua mulher tivesse pulso firme e você aceitasse os conselhos
dela, aposto que nunca ia esmurrar seu chefe dentro do escritório!
-
Bati e não me arrependo! Ele mereceu!
-
Mereceu por quê te chamou de preguiçoso? Que não fazia o serviço corretamente?
-
E daí? Sou homem! Nunca levei desaforo pra casa!
-
Por causa desse ponto de vista machista e arcaico, quebrou o nariz do seu
chefe e levou uma justa causa. Olha, vou ser sincera contigo: Não creio que o
Juiz vai aceitar sua queixa de danos morais. Você já teve muita sorte que o seu
antigo chefe não tenha dado queixa na polícia.
-
Doutora, a senhora não tá aqui de graça.
-
Ah, claro que não - A vontade de Vera era largar o processo ali mesmo e abandonar o sujeitinho. O cara de fuinha era intragável, e o calorão ali dentro não contribuía muito. - Se sua mulher quer outro advogado, fique à vontade. Mas fale
logo pra eu sair desse inferno.
Os
olhos miúdos do sujeito davam a impressão que a fuzilava, mas ele disse,
mais calmo:
-
Começamos juntos e terminamos juntos.
-
Bom menino - disse Vera, voltando para a leitura dos processos em mão.
O
antigo funcionário de uma grande loja de eletrodomésticos pedia vinte mil reais
referentes a danos morais. Vera calculou que esse valor podia ficar entre dez a
quinze mil, caso houvesse barganha. E era nesse valor que ela baseava seus
honorários. Trinta por cento da barganha seriam de três mil a quatro mil e
quinhentos. Com esse dinheiro, quitaria algumas dívidas do escritório e ainda
sobraria algum.
Mas
ela não podia deixar seu cliente abrir a boca.
-
Lembre-se - disse ela fitando o cliente com os óculos de leitura. - Nada de
abrir a boca desnecessariamente. Só fale se o Juiz te perguntar algo. Mas fale
só o essencial.
-
Eu não sou nenhum idiota, doutora.
Esse
era seu medo. Todos idiotas insistiam que não eram imbecis. A boçalidade deles
impedia que tivesse humildade na sua cabeça oca.
Vera
suspirou e voltou a se abanar. Agora era só esperar...
Vinte
minutos depois, uma jovem estagiária abriu uma porta e anunciou:
-
Sr. Washington Rios e doutora Vera Paranhos...
Vera
se levantou, largou o leque improvisado, pôs as pastas embaixo do braço e
chamou seu cliente.
Quando
iam entrando na sala do Juiz Barroso, o sujeito com cara de fuinha advertiu a
jovem estagiária:
-
A senhorita tinha que ter aprendido que meu nome é Uóchinton, não esse aí que falou.
-
Esqueça isso - disse Vera pelo canto da boca.
Um
advogado os seguiu, e tomaram os lugares que a estagiária mostrou. O advogado
da empresa abriu sua pasta, tirou vários papéis e colocou à sua frente na mesa.
Ao seu lado estava um tal de Hipólito, que se apresentou como gerente dos
recursos humanos. Era um sujeito barrigudo, calvo e constantemente passava um
lenço encardido na testa. O advogado sussurrou algo no seu ouvido e Hipólito
concordou.
Vera
estava separando algumas anotações que tinha escrito quando sentiu que puxavam
a manga da sua roupa. Era seu cliente. O cara de fuinha apontou o polegar para
os dois sentados na sua frente e disse, nervoso:
-
O que eles cochicharam ali?
-
Isso é com eles.
-
Eles não! É comigo, doutora! Tão falando de mim!
-
Acalme-se. O Juiz já está vindo. Vamos fazer tudo que combinamos. Só abra a
boca se o Juiz perguntar alguma coisa para você.
Hipólito
passou o lenço pelo pescoço e depois cochichou com o advogado. Uóchinton bateu
na mesa e disse:
-
Se estão falando de mim, falem na minha cara! Sou sujeito homem!
O
advogado da empresa apenas sorriu. Esse sorriso foi como um tabefe no sujeito
com cara de fuinha:
-
No próximo sorriso, te pego lá na rua!
-
Uóchinton! - advertiu Vera. Ela se virou e disse ao advogado: - Colega,
desculpe a atitude do meu cliente. Ele está nervoso com todo processo...
-
Deixa pra lá - disse o advogado. - Seu cliente tem que saber que não existe
nada pessoal contra ele. Aqui é negócio, puro negócio.
O
pomo de adão do cliente da Vera subia e descia. Bagos de suor escorriam pelo
rosto e molhavam a gola da sua camisa.
Vera
sussurrou:
-
Outro chilique e parto fora.
Uóchinton
não respondeu. Seus cotovelos estavam apoiados sobre a mesa e ele balançava as
pernas.
-
Senhora e senhores, Juiz Barroso.
Um
homem alto e de cabelos grisalhos entrou por uma porta dos fundos e sentou-se
no seu lugar.
Depois
das apresentações, o Juiz perguntou:
-
A empresa tem alguma proposta?
O
advogado puxou um papel e disse:
-
Pelos danos morais, a empresa concorda em pagar três mil reais reais.
Vera
riu.
-
O colega está brincando! - Ela ia falar sacaneando, mas conseguiu se controlar
a tempo. - Não chega nem perto do valor que pedimos...
O
advogado da empresa disse:
-
Cara colega, o que seu cliente fez foi uma grave falta. Ele bateu no superior
dele...
-
O filho da mãe me chamou de preguiçoso! - Uóchinton berrou. O Juiz Barroso
interveio:
-
Senhor, acalme-se.
-
Seu Juiz, foi isso mesmo, ele me humilhou na frente dos meus colegas. Eu não
tenho sangue de barata, não!
Vera
segurou o braço magricela do seu cliente e disse:
-
Cala a sua boca!
-
Não me calo! O cara tá querendo inverter a situação toda! Por quê não fala a
verdade? - reclamou Uóchinton, apontando para o advogado na sua frente.
-
Sua sorte foi que ele não prestou queixa.
-
O que ia me acontecer? Ser preso por causa de uma porrada????
O
mal estar foi instaurado na sala de audiência. Vera tentou contornar:
-
Vossa Excelência, peço desculpas pelo meu cliente. Ele anda muito estressado
depois da injusta demissão...
O
Juiz Barroso foi claro e direto:
-
Vamos pular as preliminares e ir direto ao que interessa. O autor requer uma
indenização por danos morais em vinte mil reais e a empresa aceita pagar três
mil. O que me diz, sr. Uóchinton?
-
Três mil? Aceito.
Vera
interveio:
-
É muito pouco...
-
Aceito e acabamos esse pesadelo aqui e agora.
O
advogado da empresa, satisfeito, concordou.
Hipólito
limpou sua testa com o lenço encardido que tinha na mão. Também parecia
satisfeito.
Depois
que assinaram o documento da conciliação, Vera e seu cliente saíram na frente.
Ela reclamou:
-
Você foi precipitado. Se eles ofereceram três mil, podíamos chegar em dez...
-
Pra quê? Rolar mais alguns meses esperando? Não.
-
Já fez as contas? Você só vai levar dois mil e cem reais...
Uóchinton
deu de ombros.
-
Dá pra alguma coisa, doutora.
*****
Vera
entrou no seu escritório enfurecida. Na ante-sala, Cida estava sentada à sua
mesa com o telefone na mão. Ela era uma mulata de quarenta e tantos anos,
cabelão armado e de brincos imensos e chamativos. Atrás dela uma porta levava
para a sala da advogada. Vera passou por ela e quando virou a maçaneta da porta,
Cida tapou o bocal do fone e disse:
-
É sua filha, doutora. Anabela.
-
O que ela quer? Meu dia não começou nada bem. - Ela entrou na sala e pegou a
extensão.
-
Mãe! - Anabela sussurrou.
-
O que foi?
-
Mãe, vem pra casa...
-
Aconteceu alguma coisa?
Anabela
soluçou.
-
A nova empregada, mãe... Ela é má, muito má!
Continua...
No próximo capítulo: Quem fala a verdade? A nova empregada ou as crianças?
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Quem fala a verdade? A nova empregada ou as crianças?
Rogerio de C. Ribeiro
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