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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 20

No capítulo anterior: Juninho disparou na frente e Anabela foi logo atrás para a sala de jantar. Dequinha passou por Fernanda e disse:
- Obrigada.
Fernanda não respondeu. Ainda não ficou satisfeita por inteira. O menino calou-se muito rápido e a menina de nove anos também. Fernanda pensou enquanto seguiu para a cozinha:
"Eles vão falar. Ficaram com medo, e as únicas pessoas que podem protegê-los são os pais. Mas se pensam que são mais espertos, vão conhecer uma que é mais que elas!"

Vera não teve um bom dia. As coisas começaram a dar errado já no Fórum. Ela e o cliente ficaram horas esperando pela audiência. O lugar estava lotado de advogados, clientes, vendedores de cafezinho, policial escoltando bandido e ventiladores desligados. Vera improvisou um leque de uma propaganda de supermercado que achou em cima do comprido banco de madeira que sentava. Uóchinton ( por incrível que pareça, os inspirados pais do seu cliente o batizaram assim, com essa grafia aportuguesada ) já chegou reclamando de tudo. Da esposa, dos filhos, do mundo. Era um sujeito de um metro e sessenta, raquítico, com um imenso pomo-de-adão que ia e vinha em um pescoço comprido. Sua cara lembrava o de uma fuinha neurótica.
- Doutora, minha mulher vive reclamando dessa demora toda e ela está coberta de razão! Ela acha que a senhora não tem se dedicado no meu processo como devia!
Vera folheava algumas folhas em uma pasta que apoiava nos seus joelhos. Ergueu a cabeça e tirou os óculos de leitura.
- Sua mulher disse o quê? Ela é advogada?
Uóchinton engoliu em seco; o pomo-de-adão balançou.
- A doutora sabe que não!
- Me explique então como ela pode sugerir uma idiotice dessa?
- Cremilda se preocupa comigo.
Vera folheou algumas folhas e pegou uma.
- Se sua caríssima mulher realmente se preocupasse contigo, devia ser a primeira, já que vocês dormem juntos... eu acho... a te aconselhar para que não perdesse sua cabeça à toa.
- Doutora!!! - O rosto de fuinha ficou rubro.
- A verdade dói, não é? Se sua mulher tivesse pulso firme e você aceitasse os conselhos dela, aposto que nunca ia esmurrar seu chefe dentro do escritório!
- Bati e não me arrependo! Ele mereceu!
- Mereceu por quê te chamou de preguiçoso? Que não fazia o serviço corretamente?
- E daí? Sou homem! Nunca levei desaforo pra casa!
- Por causa desse ponto de vista machista e arcaico, quebrou o nariz do seu chefe e levou uma justa causa. Olha, vou ser sincera contigo: Não creio que o Juiz vai aceitar sua queixa de danos morais. Você já teve muita sorte que o seu antigo chefe não tenha dado queixa na polícia.
- Doutora, a senhora não tá aqui de graça.
- Ah, claro que não - A vontade de Vera era largar o processo ali mesmo e abandonar o sujeitinho. O cara de fuinha era intragável, e o calorão ali dentro não contribuía  muito. - Se sua mulher quer outro advogado, fique à vontade. Mas fale logo pra eu sair desse inferno.
Os olhos miúdos do sujeito davam a impressão que a fuzilava, mas ele disse, mais calmo:
- Começamos juntos e terminamos juntos.
- Bom menino - disse Vera, voltando para a leitura dos processos em mão.
O antigo funcionário de uma grande loja de eletrodomésticos pedia vinte mil reais referentes a danos morais. Vera calculou que esse valor podia ficar entre dez a quinze mil, caso houvesse barganha. E era nesse valor que ela baseava seus honorários. Trinta por cento da barganha seriam de três mil a quatro mil e quinhentos. Com esse dinheiro, quitaria algumas dívidas do escritório e ainda sobraria algum.
Mas ela não podia deixar seu cliente abrir a boca.
- Lembre-se - disse ela fitando o cliente com os óculos de leitura. - Nada de abrir a boca desnecessariamente. Só fale se o Juiz te perguntar algo. Mas fale só o essencial.
- Eu não sou nenhum idiota, doutora.
Esse era seu medo. Todos idiotas insistiam que não eram imbecis. A boçalidade deles impedia que tivesse humildade na sua cabeça oca.
Vera suspirou e voltou a se abanar. Agora era só esperar...
Vinte minutos depois, uma jovem estagiária abriu uma porta e anunciou:
- Sr. Washington Rios e doutora Vera Paranhos...
Vera se levantou, largou o leque improvisado, pôs as pastas embaixo do braço e chamou seu cliente.
Quando iam entrando na sala do Juiz Barroso, o sujeito com cara de fuinha advertiu a jovem estagiária:
- A senhorita tinha que ter aprendido que meu nome é Uóchinton, não esse aí que falou.
- Esqueça isso - disse Vera pelo canto da boca.
Um advogado os seguiu, e tomaram os lugares que a estagiária mostrou. O advogado da empresa abriu sua pasta, tirou vários papéis e colocou à sua frente na mesa. Ao seu lado estava um tal de Hipólito, que se apresentou como gerente dos recursos humanos. Era um sujeito barrigudo, calvo e constantemente passava um lenço encardido na testa. O advogado sussurrou algo no seu ouvido e Hipólito concordou.
Vera estava separando algumas anotações que tinha escrito quando sentiu que puxavam a manga da sua roupa. Era seu cliente. O cara de fuinha apontou o polegar para os dois sentados na sua frente e disse, nervoso:
- O que eles cochicharam ali?
- Isso é com eles.
- Eles não! É comigo, doutora! Tão falando de mim!
- Acalme-se. O Juiz já está vindo. Vamos fazer tudo que combinamos. Só abra a boca se o Juiz perguntar alguma coisa para você.
Hipólito passou o lenço pelo pescoço e depois cochichou com o advogado. Uóchinton bateu na mesa e disse:
- Se estão falando de mim, falem na minha cara! Sou sujeito homem!
O advogado da empresa apenas sorriu. Esse sorriso foi como um tabefe no sujeito com cara de fuinha:
- No próximo sorriso, te pego lá na rua!
- Uóchinton! - advertiu Vera. Ela se virou e disse ao advogado: - Colega, desculpe a atitude do meu cliente. Ele está nervoso com todo processo...
- Deixa pra lá - disse o advogado. - Seu cliente tem que saber que não existe nada pessoal contra ele. Aqui é negócio, puro negócio.
O pomo de adão do cliente da Vera subia e descia. Bagos de suor escorriam pelo rosto e molhavam a gola da sua camisa.
Vera sussurrou:
- Outro chilique e parto fora.
Uóchinton não respondeu. Seus cotovelos estavam apoiados sobre a mesa e ele balançava as pernas.
- Senhora e senhores, Juiz Barroso.
Um homem alto e de cabelos grisalhos entrou por uma porta dos fundos e sentou-se no seu lugar.
Depois das apresentações, o Juiz perguntou:
- A empresa tem alguma proposta?
O advogado puxou um papel e disse:
- Pelos danos morais, a empresa concorda em pagar três mil reais reais.
Vera riu.
- O colega está brincando! - Ela ia falar sacaneando, mas conseguiu se controlar a tempo. - Não chega nem perto do valor que pedimos...
O advogado da empresa disse:
- Cara colega, o que seu cliente fez foi uma grave falta. Ele bateu no superior dele...
- O filho da mãe me chamou de preguiçoso! - Uóchinton berrou. O Juiz Barroso interveio:
- Senhor, acalme-se.
- Seu Juiz, foi isso mesmo, ele me humilhou na frente dos meus colegas. Eu não tenho sangue de barata, não!
Vera segurou o braço magricela do seu cliente e disse:
- Cala a sua boca!
- Não me calo! O cara tá querendo inverter a situação toda! Por quê não fala a verdade? - reclamou Uóchinton, apontando para o advogado na sua frente.
- Sua sorte foi que ele não prestou queixa.
- O que ia me acontecer? Ser preso por causa de uma porrada????
O mal estar foi instaurado na sala de audiência. Vera tentou contornar:
- Vossa Excelência, peço desculpas pelo meu cliente. Ele anda muito estressado depois da injusta demissão...
O Juiz Barroso foi claro e direto:
- Vamos pular as preliminares e ir direto ao que interessa. O autor requer uma indenização por danos morais em vinte mil reais e a empresa aceita pagar três mil. O que me diz, sr. Uóchinton?
- Três mil? Aceito.
Vera interveio:
- É muito pouco...
- Aceito e acabamos esse pesadelo aqui e agora.
O advogado da empresa, satisfeito, concordou.
Hipólito limpou sua testa com o lenço encardido que tinha na mão. Também parecia satisfeito.
Depois que assinaram o documento da conciliação, Vera e seu cliente saíram na frente. Ela reclamou:
- Você foi precipitado. Se eles ofereceram três mil, podíamos chegar em dez...
- Pra quê? Rolar mais alguns meses esperando? Não.
- Já fez as contas? Você só vai levar dois mil e cem reais...
Uóchinton deu de ombros.
- Dá pra alguma coisa, doutora.
                                            *****
Vera entrou no seu escritório enfurecida. Na ante-sala, Cida estava sentada à sua mesa com o telefone na mão. Ela era uma mulata de quarenta e tantos anos, cabelão armado e de brincos imensos e chamativos. Atrás dela uma porta levava para a sala da advogada. Vera passou por ela e quando virou a maçaneta da porta, Cida tapou o bocal do fone e disse:
- É sua filha, doutora. Anabela.
- O que ela quer? Meu dia não começou nada bem. - Ela entrou na sala e pegou a extensão.
- Mãe! - Anabela sussurrou.
- O que foi?
- Mãe, vem pra casa...
- Aconteceu alguma coisa?
Anabela soluçou.
- A nova empregada, mãe... Ela é má, muito má!

Continua...

No próximo capítulo: Quem fala a verdade? A nova empregada ou as crianças?

Rogerio de C. Ribeiro

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