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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 10

No capítulo anterior: O jantar que Fernanda prepara é elogiada pela família. Vimos também que Dona Vitória balbuciou algumas palavras. 

Quando todos terminaram com o jantar, Vera conduziu sua mãe ao quarto. Acomodou a cadeira de rodas diante da televisão e sentou-se em uma cadeira ao lado dela. Dona Vitória encarou-a séria, com aqueles olhos azuis aquosos.
Essa menina tinha que levar uma chamada!Onde foi que se meteu durante o dia inteiro? Esteve procurando na garagem, no jardim e até no canil, o lugar mais perigoso dessa casa! Ali, só Teodoro entrava, com aqueles três dobermans sempre alertas, prontinhos para trucidarem o primeiro pescoço distraído. Seu medo era que às vezes Vera cismava em ir ali. Teodoro dissera que não tinha problemas que a menina se enfiasse dentro do canil, os cachorros já estavam acostumados com ela, mas não confiava muito em dentes caninos, por isso diziam que era uma mulher precavida. Não tirava os olhos da menina. Sabia o que ela era capaz de aprontar!
E agora, depois de um dia inteiro, Vera me aparece com a cara mais lavada do mundo! A vontade era  de aplicar uma boa lição. A menina tinha que respeitar os pais e obedecer às ordens dadas. O que ela aprontou foi muito feio! Se achasse um chinelo, esquentava o traseiro dela.
Aos olhos aquosos de dona Vitória, Vera era uma menina de oito anos. Belinda, uma jovem negra de 20 anos, trabalhava na casa há um ano.
Por uma fração de segundo, a memória da velha senhora voltou como em um flash.
Ela se viu caminhando pelo jardim vistoso do casarão. O jardim era separado por uma cerca; de um lado tinham os brinquedos e do outro lado as roseiras, seu lugar preferido.
"Vera! Cadê você, menina?"
Escutou a voz de Belinda pela janela da cozinha:
- Dona Vitória, a dona Vera pode ter ido no canil ou no viveiro de pássaros!
- Isso eu sei! - Resmungou uma Vitória no alto dos seus 40 anos. Era uma mulher alta e magra, sempre com as costas retas e o nariz para cima. Um imenso coque enfeitava seus cabelos cor de graúna, com alguns fios prateados surgindo. Seu olhar era firme e autoritário. - Antes que me diga o óbvio, espere primeiro pela pergunta!
A jovem empregada não entendeu nada.
- Ali - ela gritou excitada, apontando para a frente. - Dona Vera tá correndo pro viveiro!
- Ai, Meu Deus!!! - rogou dona Vitória. Saiu numa desabalada corrida alameda abaixo. Passou na frente do canil - que estava trancado pelo cadeado - e contornou a cerca. O viveiro ficava ao lado de um muro baixo. Dali se via um trecho de uma rua que descia até o mercadinho do Sr. João, pai de Marquinhos.
Vera tinha aberto a portinhola do viveiro e dezenas de canários batiam as asas assustados. Um bando amarelo e cinza de canários voavam de um lado ao outro.
- Vão! Vão embora! - disse Vera, com a portinhola aberta.
Aquele era o tipo de um convite irrecusável. Três canários saíram pela portinhola aberta e voaram em direção das árvores mais próximas. Antes que outros tivessem a mesma ideia, dona Vitória chegou por detrás da filha e trancou a portinhola.
- Seu pai vai ficar brabo com você! - Dona Vitória recriminou.
Vera a encarou, desafiadora:
- Eles tem direito de serem livres! 
- Esses aí são pássaros cativos! Não vão conseguir sobreviver aqui fora por muito tempo!
- Isso é o que a senhora diz. Perguntou pra eles se preferem ficar presos ou livres? Já?
- Não fale besteiras.
- Não é besteira, mãe! - Desde criança Vera tinha a personalidade forte. - A senhora ia gostar de ficar presa? Hein? Ia gostar?
Dona Vitória puxou Vera pelo braço e disse:
- Não ia gostar, mas não sou passarinho. Eles gostam.
- Duvido - reclamou Vera, tentando acompanhar os passos da mãe. - Quero ver no dia que estiver presa em algum lugar. Aí vai ver o que é bom!
E agora dona Vitória estava presa em uma cadeira de rodas. Sua doença conseguiu tirar as forças nas pernas e dependia dos outros para comer, tomar banho, ir dormir.
Vera pensou nisso. A vida tinha suas reviravoltas que pegavam a gente de surpresa. Lembrou-se do caso do viveiro e do que dissera à mãe. Nunca imaginou que aquela mulher, de gênio autoritário, enérgica, sucumbisse em um estado letárgico. Se ainda mantivesse a sanidade...
Vera ouviu alguém batendo a porta, que abriu em seguida. Era Fernanda.
- Já arrumei tudo, dona Vera, e vim ficar um pouco com dona Vitória para a senhora descansar.
- Obrigada, Fernanda - disse Vera se levantando. - Já deixei os remédios dela separados no criado mudo. Mamãe costuma deitar às onze horas.
- Sim, senhora.
- Depois que ela dormir, você pode se recolher. Mas não se esqueça do café da manhã, que...
- Oito horas em ponto. E antes, as crianças. A Kombi da escola passa às sete.
Vera sorriu.
- Isso mesmo. Bem, tenho que estudar uns processos. Se precisar de alguma coisa, me chama.
- Não acho que vou precisar de alguma coisa.
- Se mamãe ficar agitada...
- Eu chamo a senhora.
Vera saiu do quarto. A sós com a velha senhora, Fernanda pegou o controle remoto e trocou os canais.
- Chega de ficar assistindo só a  Globo. Tem que variar um pouquinho, Vitória!
Os canais iam sendo trocados e a velha senhora observava, naqueles olhos ausentes. Fernanda comentou:
- E aí? Gosta desse? Não? E esse? Também não? Essa televisão não tem canal pornô? E esse?
Dona Vitória, que se embalava ao som da voz da moça, sorriu. Um sorriso oco, banguela.

Continua...

No próximo capítulo: Dequinha e seu medo dos fantasmas

Rogerio de C. Ribeiro

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