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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 4

No capítulo anterior: A família se reúne na mesa do jantar. Mostrou que Vera é quem manda em tudo. Seu marido é um zero à esquerda. Finalmente Belinda recebeu uma ligação da sua irmã informando que tem uma pessoa interessada no emprego. Vera pede que a moça vá no sábado para conversar com ela.

Aurélio entrou no quarto de casal ainda um pouco úmido depois do banho usando um pijama listrado. Vera passava um creme no rosto sentada diante do espelho duplo da penteadeira .
Em silêncio, ele pegou um livro em cima do criado mudo e se ajeitou na cama. Pôs os óculos de leitura e abriu na página onde tira parado.
O silêncio entre os dois era perturbador. Do espelho, Vera viu seu marido estirado na cama, encostado em dois travesseiros, com as fuças enfiadas naquele livro antigo. Ele lia Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, e parecia compenetrado na leitura.
Os únicos livros que Vera costumava ler eram de Direito. E mesmo assim porque era obrigada para se manter atualizada com novas leis que surgiam. Ela não entendia como Aurélio podia ficar HORAS lendo um romance que não ia ajudar em nada na sua vida. Devia era ler sobre técnicas de venda, do tipo "COMO SER UM VENDEDOR DE SUCESSO", ou "AMBIÇÃO FAZ BEM AO EGO E À SAÚDE!", qualquer coisa desse assim, para sair daquele marasmo profissional que vivia.
Ele sabia que Vera ficava extremamente irritada quando o via quieto, lendo. Parece que faz isso de propósito, pensou ela. enquanto esfregava mais creme em cima das pequenas rugas que vira e mexe apareciam no seu rosto.
Às vezes, imaginava que era divorciada dele e vivia um romance com um homem ambicioso. Era disso que precisava, de um homem com pulso firme para protege-la e aos seus filhos. Após mais de dez anos casada, o que sobrou do início do namoro? Onde foram parar aquelas juras de amor, os pactos que fizeram em ser cúmplices para qualquer situação, da segurança que ele transmitia e dos sonhos que iam realizar?
Aurélio nunca cumpriu nada do que prometera. Agora vivia uma vidinha mundana; para dizer que trabalhava, arrumou um lugar na imobiliária de um amigo e ali passava horas conversando com outros corretores tão fracassados como ele, enquanto esperavam que um cliente batesse à sua porta para olhar um imóvel.
Se ainda fosse uma imobiliária de peso, com plantões nos prédios em construção... Mas nada. Aurélio dividia uma mesa com mais seis corretores em uma pequena sala na Visconde de Uruguai. E ainda batia no peito com orgulho e dizia: Pior se ficasse em casa o dia inteiro! Pelo menos estou correndo atrás de dinheiro!
Às vezes ela pensava: E se não tivesse aquela casa? Pelo menos, tinham o casarão para morar. E um fundo de investimento que seu pai deixou guardado para algum momento difícil. Fora a pensão da mãe...
Era isso que a deixava com mais raiva do marido. Ele era um cara duro, dificilmente tinha um real na carteira, mas mantinha uma postura como se estivesse nadando em dinheiro.
Vera terminou sua sessão de creme facial e caminhou até a cama. Ou Aurélio estava hiper concentrado na leitura, ou simplesmente a ignorava.
Ainda de pé, ela arrancou o livro das mãos dele. Aurélio protestou:
- Ei, o que é isso?
Ela deu uma espiada na página que ele lia e depois jogou o livro de encontro da porta. O livro bateu e ricocheteou até que caiu com as páginas abertas, virado para baixo, em cima do assoalho de tacos soltos.
- Isso? Um livro voando - ela disse em tom de deboche. Circulou a cama e deitou-se no seu lado. - Temos que conversar.
- O que você fez é inadmissível! Uma tremenda falta de respeito!
Aurélio fez menção de se levantar, mas Vera segurou-lhe o braço com força. Suas imensas unhas pintadas de vermelho cravaram nele, deixando quatro marcas fundas.
- Não vai pra lugar nenhum! Falei que precisamos ter uma conversa bem séria! E vamos ter essa conversa agora!
Uma das coisas que irritavam Aurélio era quando Vera vinha com aquele tom de voz. Ele era o oposto dela. Enquanto Vera tinha rompantes, ele era comedido. O jeito como ela tratava a empregada também o incomodava. Mas não era apenas a empregada... Vera não aceitava que os outros tivessem a palavra. Ela que tinha que ter a palavra final. Seu humor modificava conforme a circunstância; Belinda mencionou que ela era exigente. Na hora que ouviu esse elogio meio forçado, Aurélio quase se engasgou com a comida. Teve que segurar o riso. Vera não era exigente, ela era autoritária. Não admitia erros em hipótese nenhuma. Por ser perfeccionista, angariava antipatias.
O contrário dele. Aurélio era um bom vivant. Não perdia tempo em discussões, nem em picuinhas. Sabia que Vera não aceitava que trabalhasse em uma pequena imobiliária. Isso era uma opção que fez. Se fosse trabalhar em uma imobiliária de renome, seria engolido pelos tubarões de vendas. Aquele pequeno escritório era um aprendizado para ele. Reconhecia que Vera estava coberta de razão quando o acusava da falta de ambição. Mas era sua natureza, acreditava que era um sujeito pacato, e tudo que fugisse da sua forma de viver o incomodava.
Aurélio desistiu de pegar o livro e tirou os dedos dela no seu braço, que ardia com os arranhões. Pacientemente, perguntou:
- Então vamos lá. Comece.
- Quando você vai tomar vergonha nessa sua cara de pau e vai honrar as calças que veste?
- Acho que já falamos sobre isso, Verinha...
- Não custa nada retomar. Já que a última conversa não serviu para nada mesmo...
- Engano seu, querida. Pensei muito no que me disse, e em alguns pontos está certíssima. Eu sei que nesses últimos meses não tenho tido sorte nas vendas. Também estou ciente de quem banca a casa. Isso vai mudar, prometo. Não queria te falar ainda, mas surgiu dois apartamentos que...
- Chega, Aurélio! Não tô mais aguentando suas promessas furadas!
Aurélio mostrou-se ofendido.
- Por isso não comento mais meus...
- Não é disso que quero falar. Não percebeu que nosso casamento está arruinado?
- Eu não percebi nada disso. Acho que você está exagerando.
- Aurélio, presta atenção... Não temos mais a mesma sintonia. Depois que papai morreu, você simplesmente parou de trabalhar. Quantas vezes ficou dentro de casa enquanto eu criava calos nos meus pés nas minhas idas e vindas nos fóruns, aturando colegas manipuladores, juízes imbecis, clientes boçais? Sempre fui atrás do ganha pão, mas você nem se importava!
- Esse é seu trabalho, amor.
- Sim, é! Mas e o futuro? Acha que o dinheiro que papai investiu vai durar para sempre?
- Claro que não.
- E nossos filhos? Pense: Que futuro reserva para eles se você não se mexe para ajuda-los?
- Não fale dos nossos filhos. Eles são tudo para mim!
Vera, furiosa:
- Pô, Aurélio! Não parece!
Aurélio se levantou. Andou até a porta e pegou o livro caído no chão e voltou para a cama. Ele disse, calmo:
- Amor, te prometo uma coisa. Vou procurar uma imobiliária de peso no mercado. Eu só estou com Jairo porque queria dar uma força para ele. Mas não vou botar minha família em risco por causa de um amigo. Amanhã mesmo vou falar com um colega, ele trabalha na Patrimóvel de Icaraí...
- Aurélio... estou cansada das suas promessas...
- Tá, então finja que eu não falei nada. Vamos dormir. Amanhã a gente termina a conversa.
Aurélio deu as costas para ela e imediatamente ferrou no sono. Injuriada, Vera pensou:
"Sono dos justos e inocentes", ironizou. Ficou deitada de barriga para cima, com os olhos acesos, fitando o lustre do quarto, onde há muito tempo atrás abrigou várias lâmpadas, mas que atualmente mantinha uma solitária lâmpada de sessenta velas.
Bem que papai estava certo. E não acreditei...
Lembrou-se da primeira vez que Aurélio entrou no casarão. Nesse tempo, ela terminava a faculdade de Direito e ele trabalhava na loja de tintas do seu tio como vendedor. A pedido dela, organizaram um jantar para o encontro. Aurélio era um jovem bonito, com ótimo senso de humor. Respondeu as perguntas que sua mãe fez, e portou-se bem durante o jantar.
Mesmo com essas qualidades, seu pai mostrou o desagrado estampado na cara. Não o tratou mal, mas quando ele foi embora, chamou-a na sala de estar e disse:
- Esse rapaz não é para você.
Ela ficou ofendida:
- Papai, não trouxe ele aqui esperando sua aprovação. Trouxe porque ele é meu namorado e me sinto feliz ao lado dele.
- Compreendo, filha. Só que seu pai tem uma certa experiência na vida, e conheço também um pouco da alma humana. Posso até estar enganado, mas esse rapaz não quer nada com a vida. Quando digo vida, é do futuro!
Vera riu.
- Papai, não exagera. Ele é apenas meu namorado.
- Por isso mesmo. É mais fácil se livrar de um namoro sem maiores compromissos, do que depois, quando for casada.
- Me arrependi por tê-lo trazido para cá, pai. Se soubesse que depois ia vir essa ladainha toda, ia jantar no Tratoria com ele.
- E pagar o jantar...
Ela explodiu. Esse era um defeito que nunca corrigiu na vida. Tinha pavio curto.
- E daí se ia pagar ou não? O dinheiro é meu...
Seu pai também não ficava atrás no temperamento.
- Seu porque eu te dou.
Vera ficou de pé. Seu pai mandou que sentasse de novo. Ela negou.
- Pai, querendo ou não, sou maior de idade e faço o que eu quero. Vou ficar com Aurélio, goste ou não.
Teodoro deu de ombros.
- Faça o que quiser. Só não terá meu apoio em nada.
- Não te pedi nada!
Durante uma semana ficou sem falar com o pai. E um mês depois descobriu que estava grávida.
Mesmo a contragosto, Teodoro bancou o casamento da filha. Era preferível aturar um genro vagabundo que uma filha mãe solteira. E um escândalo familiar não ajudaria em nada nas próximas eleições.
E assim Aurélio entrou definitivamente no casarão e na vida dos Paranhos.

Continua...

No próximo capítulo: Brincadeira de criança às vezes pode ser cruel

Rogerio de C. Ribeiro


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