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terça-feira, 30 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 40

No capítulo anterior: Dona Vitória largou o retrato, que caiu lentamente até o chão de sinteco. Vera se agachou e pegou o pedaço da foto.
- Força, mãe, a senhora vai conseguir...
Por mais que mostrasse o retrato mutilado, Dona Vitória voltou ao seu estado ausente. Por mais que Vera sacudisse o retrato na sua frente, a velha senhora fixava a parede em frente.
Vera se levantou e guardou os retratos na bolsa. Saiu do quarto com um pensamento:
"Gláucia."
Pelo menos tinha um nome.

Jayme, o sujeito de óculos escuros, tentou acariciar o braço direito da empregada, mas Fernanda repudiou o gesto.
- Tá maluco?
- Tô morrendo de saudades, garota - disse ele, sorrindo, com um palito de dentes no canto dos lábios. - Pensei que nunca ia sair daquele casarão!
Fernanda olhou de um lado ao outro e disse, impaciente:
- Não é toda hora que posso sair.
- Percebi isso.
Os dois estavam parados no início da rua que subia até o casarão. Não havia ninguém passando ali naquele momento, mas Fernanda não queria correr o risco que seu patrão a visse ali conversando com um sujeito estranho.
- Olha - disse ela, nervosa. - O que combinamos? Você não podia aparecer aqui tão cedo!
- E te deixar sozinha? Se precisasse de ajuda?
- Para de ironias, Jayme. Já basta naquela vez!
O homem tirou os óculos escuros e balançou a cabeça.
- Esquece aquilo, Fernanda.
- Não posso esquecer, Jayme! Às vezes penso como você pode ser tão burro! Quando eu disser uma coisa, é pra fazer!
Jayme agarrou o braço de Fernanda na altura do cotovelo e dessa vez não estava sendo irônico. Havia maldade na sua voz:
- Garota, somos parceiros! Já te falei pra esquecer aquilo lá! O negócio é aqui, agora!
- Ainda não descobri nada.
- Como nada?
- Eles não são ricos, Jayme.
- Nada de valor?
- Tem as joias da velha... Mas você disse que é arriscado.
Jayme largou o braço dela.
- Depende quem vai comprar... São muitas joias?
- Bastante.
- Pega um brinco ou anel. Levo pra um conhecido e vejo quanto vale... dependendo do que ele fale...
- Vou ver isso e amanhã bem cedinho te entrego no portão.
Jayme tentou enlaça-la pela cintura, mas Fernanda se esquivou.
- Nada de mão boba, cara!
- Adoro quando fica arisca - disse ele. - Antes de ir, quero te avisar que sua tia já está cobrando a parte dela.
- Que mulherzinha intragável!
- Ela falou para mim que arrumou o bagulho e não quer ficar esperando como na última vez.
Fernanda, aborrecida, nem sentia o peso das sacolas que segurava. Pela sua expressão, pensava na velha miserável:
- Diga pra ela esperar um pouco. Em uma semana a gente resolve tudo e ela vai ter a parte dela.
- Espero que ela não fale demais...
Fernanda, atenta:
- Cola no pé dela. Se ela quiser beber, beba com ela. Mas de olho pra ela não falar nenhuma besteira.
- Tudo bem. Mantenha contato comigo, garota. Tenho planos maiores lá na frente.
- Beleza. Deixa eu ir. Amanhã chega bem cedo pra te dar o anel da velhota.
Jayme concordou e Fernanda subiu a rua. O homem deu a volta e desceu para a rua do mercado. Ao invés de voltar a Marquinhos, tomou outro caminho.
Esse casarão foi um achado. Depois da merda no último emprego, Fernanda teve sorte que a nova patroa não pediu referências. Mas como a velha Dilza falou, a bacana tava com a corda no pescoço...
Chegou no ponto do ônibus e se lembrou da conversa que tiveram na semana passada...
O ônibus chegou e ele acenou. No banco ao lado da janela, veio a imagem de Dilza dizendo a eles:
- Arrumei um lugar para você se esconder durante um tempo, Fernanda - dissera Dilza, uma mulher de quarenta e poucos anos, cabelos crespos e grisalhos, olhos injetados e quase sem dentes. Tinha um cigarro entre os dedos e um copo de cachaça na outra mão. Estavam na casa de Jayme, um barraco de dois cômodos. - Bené me disse que Belinda vai se aposentar e tão precisando de uma empregada urgente, urgentíssimo!
Fernanda e Jayme estavam deitados na cama de casal. A moça usava uma camisola transparente e não usava calcinha e Jayme estava só de cueca.
- Onde fica?
- Num casarão no bairro de Fátima - dissera Dilza, pouco se lixando se a sobrinha estava quase nua. - Aposto que estão montados na grana!
Fernanda sentou na beira da cama e Jayme tentou acariciar suas costas. Ela deu um tapa na mão dele e perguntou:
- E a referência? Sabe que os "homis" estão atrás de mim!
- Se ela pedir, você inventa uma desculpa e samba fora. Acho que isso vai te ajudar e ainda vai dar pra levantar uma grana!
Jayme sugeriu:
- Eu acho que é uma boa, Fernanda.
- Talvez seja... se você não atrapalhar como na última vez!
- Tenho culpa se a velhota teve um piripaque?
- Teve - disse Fernanda.
Dilza esvaziou o copinho de cachaça e disse:
- Chega desse papo. Se falar muito, até chama! Você deu o jeito nela, né? Isso que importa!O negócio agora é conseguir a brecha pra trabalhar no casarão. E depois que capitalizarem, fugir para São Paulo!
E foi assim que Fernanda chegou ao casarão...
                                      ********************
Fernanda estava ajoelhada no chão da cozinha enquanto guardava os mantimentos no armário sobre a pia. Depois que guardou a lata de extrato de tomate, ouviu a voz atrás dela:
- Por onde andou, Fernanda?
A empregada assustou-se com o timbre da voz e virou o pescoço em direção da porta que dava para a sala de jantar. Era sua patroa, Vera.
- Senhora... eu fui no Marquinhos...
- Demorou bastante por lá - recriminou Vera, que passou pela moça e olhou, mesmo de pé, para o armário aberto.
- Não comprou mais que devia?
- Não, dona Vera. Olha a lista.
Vera pegou o papel que Fernanda estendeu e deu uma olhada rápida nos itens. Depois largou a lista em cima da pia e comentou:
- Já cheguei há mais de vinte minutos e nada de você. Me faça um grande favor, Fernanda. Na próxima vez que for no Marquinhos, vá pela manhã. Às sete horas o mercadinho já está aberto. Não quero que minha mãe fique sozinha durante a tarde.
- Entendi, dona Vera, e peço desculpas - disse Fernanda, constrangida. - Na próxima vez, espero as crianças saírem para a escola e aí faço as compras. Assim, não atraso no café da manhã e ainda pego Dona Vitória acordando.
Vera gostou.
- Isso mesmo. Bem, não almocei ainda. Tem como preparar um lanche rápido para mim?
- Sim senhora - disse Fernanda.
- Estou na sala principal. - Vera ia dar um passo, mas lembrou-se de algo. - Seu Aurélio almoçou em casa?
- Almoçou, mas saiu logo depois.
- E o que as crianças aprontaram novamente?
Fernanda baixou a cabeça e murmurou:
- Nada, dona Vera... Já disse ao seu Aurélio... pra que passasse uma borracha em cima... são crianças...
- Nada de passar borracha nenhuma. O que elas fizeram?
Fernanda engoliu em seco e disse, com melancolia:
- Quando chegaram do colégio, pedi que fechassem o portão... e eles levantaram... - Ela simulou que estava envergonhada. Suas faces até ficaram coradas! - ergueram o dedo médio pra mim...
- O quê???? - Vera gritou. - Eu não admito isso! Não crio meus filhos para agirem dessa forma!
- Eu até entendo o lado deles... Gostavam tanto de Belinda...
- Belinda já era! Você que trabalha conosco! - Vera sacudiu a cabeça e continuou: - Quando Aurélio chegar, vou conversar com ele sobre isso.
Vera saiu da cozinha furiosa e Fernanda se encostou na pia. Ela sorria.
"Vaca idiota! Tão fácil de enganar!"
                                 *******************
Vera estava enfurnada no sofá com sua bolsa aberta no colo. Na sua mão direita, tinha um dos retratos da moça que agora tinha um nome.
"Gláucia..., pensou Vera. Quem é ela?"
Por um momento pensou em pedir que Fernanda perguntasse à sua mãe quem era aquela mulher, mas logo mudou de ideia. Não queria que a nova empregada soubesse muito no que acontecia na família.
Mas tinha uma pessoa que poderia ajuda-la!
Fernanda veio na sala com uma bandeja contendo um suculento sanduíche de carne assada e um copo de vitaminas no momento que Vera falava no celular. A patroa gesticulou, pedindo que deixasse tudo em cima da mesinha ao lado e a dispensou, sacudindo a mão.
Quando Fernanda passou pelo arco que separava a sala de jantar, ouviu:
- Belinda! Sou eu, Vera! Preciso ter uma conversa com você... O mais rápido possível! Amanhã... sim, te espero de tarde...
Fernanda estacionou ao lado da mesa da sala de jantar e pensou, intrigada:
"O que ela tá querendo com a velha empregada? Será que... não! Ela não pode estar desconfiada de mim... Mas... Tenho que ficar de olho..."
Esse era o grande problema da consciência pesada. Qualquer detalhe, o mais insignificante que fosse, tomava uma proporção gigantesca na mente da pessoa culpada!

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

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