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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 41

No capítulo anterior: Quando Fernanda passou pelo arco que separava a sala de jantar, ouviu:
- Belinda! Sou eu, Vera! Preciso ter uma conversa com você... O mais rápido possível! Amanhã... sim, te espero de tarde...
Fernanda estacionou ao lado da mesa da sala de jantar e pensou, intrigada:
"O que ela tá querendo com a velha empregada? Será que... não! Ela não pode estar desconfiada de mim... Mas... Tenho que ficar de olho..."
Esse era o grande problema da consciência pesada. Qualquer detalhe, o mais insignificante que fosse, tomava uma proporção gigantesca na mente da pessoa culpada!

Belinda estava no pequeno quintal de terra batido em frente do barraco de cinco cômodos que comprou graças à economia que fez durante os anos de trabalho no casarão. A maior parte do salário era destinada à caderneta de poupança, visando seu futuro. O terreno não era tão grande assim, mas era dela. Um tempo ela alugou o barraco para outras pessoas, mas quando soube do seu problema no coração, não renovou o contrato.
Ela estava parada atrás de um muro enquanto observava a rua em frente. Seu barraco era bem localizado, ficava no Centro de Caramujo e ali havia padaria, mercado, farmácia e até uma pizzaria. O bom que uma das suas irmãs, a Benedita - ou Bené, como era mais conhecida no bairro - também tinha uma casa a menos de duzentos metros do dela.
Mas ela estranhava a ociosidade. Depois de tantos anos servindo Dona Vitória e família, já se sentia tediosa com a nova vida. Bené sugerira que abrisse um negócio, mas Belinda foi sincera:
- Que negócio? Não nasci para ser patroa de ninguém.
- Podemos vender churrasquinho nos finais de semana - sugeriu Bené. Era uma negra imensa, de largos gestos. Era comunicativa e conhecida em todo bairro. Estava no quinto casamento e dessa vez dizia que sossegara, depois de dez filhos e quase vinte netos. - Tião tá parado mesmo, ele pode dar essa bola pra gente!
- Talvez... sabe que não posso mais ficar em pé por muito tempo.
- Ah, Belinda, você nem precisa ir na praça! Só prepara a carne e deixa o resto comigo e com o Tião.
Era uma ideia tentadora, pelo menos manteria a cabeça ocupada.
- Conseguiu marcar o médico? - Bené perguntou. As duas estavam na pequena cozinha do barraco de Belinda tomando café naquela tarde ensolarada. Belinda balançou a cabeça e respondeu:
- Consegui um cardiologista no Azevedo Lima, mas tenho que madrugar para ser atendida...
- Essa é nossa saúde pública, morre primeiro e é atendido depois!
Agora, em pé no quintal, Belinda observava as pessoas andando pela calçada e algumas bebendo na birosca em frente. De vez em quando surgia alguém em cima de uma moto, com o carona atrás ostentando um fuzil. Ela ainda não tinha se acostumado com o movimento do tráfico, mesmo sua irmã dizendo que eles não mexiam com moradores. Belinda rezava que não houvesse nenhuma guerra de facções, nem da polícia invadindo o lugar. Sempre sobrava pra quem não tinha nada com o negócio!
"Eu que nunca fiquei doente na minha vida, agora passo por isso...", lamentava, encostada no muro da sua pequena casa, olhando as pessoas indo e vindo, algumas com a cara fechada, a maioria sorrindo.
Como ali nas mesas espalhadas pela calçada e meio-fio. Pessoas reunidas, bebendo suas cervejas e pingas, algumas jogando "sueca", outras porrinha, a maioria só conversando.
A birosca era comandada por um velho conhecido de Belinda, o Fumaça, velho amigo da família. Hoje tinha sessenta e poucos anos e era viúvo. Com os filhos crescidos e cada um seguindo seu rumo, ele passava o dia inteiro na birosca, um pequeno cubículo colado na sua casa.
Fumaça atendia um magricelo que mal conseguia equilibrar o copo na sua mão e quando levantou a cabeça, viu Belinda no muro da sua casa. Ele acenou, chamando-a. Belinda fez que não, mas Fumaça insistiu.
Belinda atravessou o portão da sua casa, atravessou a rua - tomando cuidado com dois motoqueiros que passaram na sua frente, um deles na garupa exibindo um fuzil dourado, e chegou no balcão da birosca.
- Você melhorou? - Perguntou Fumaça. Era alto, careca e sempre tinha um pano jogado em cima do ombro direito.
- Tô indo - respondeu Belinda. Bené devia ter espalhado para meio-mundo que ela estava com problemas no coração. - Amanhã vou tentar uma consulta no Azevedo Lima.
- Isso não é mole... Quer um refrigerante?
- Não, obrigada.
- Parece chateada...
- Falta do que fazer. Tava tão acostumada com o serviço. Agora tudo me parece chato...
- Você precisa descansar mesmo... - Uma mulher, com um cigarro aceso no canto dos lábios se aproximou deles. Fumaça desviou sua atenção de Belinda e ríspido, disse: - Enquanto não pagar o que me deve, me esquece, Dilza!
Belinda conhecia Dilza desde menina. Naquela época, era uma menina bonita, desenvolta. Pena que se envolveu com homens errados, pensou Belinda. Tinha tudo para dar certo na vida. Mas infelizmente tomou decisões errados...
Era tia da moça que a substituiu. Belinda não conhecia a sobrinha dela, mas soube que era evangélica e tinha perdido a família nas chuvaradas de 2010.
- Fumaça, sabe que sempre pago o que devo! - disse Dilza, com voz arrastada. - Só porque Belinda tá aqui quer fazer jogo duro? Qualé!
- Você tá me devendo sessenta reais desde o mês passado!
- E daí, Fumaça? Logo minha sobrinha vai me dar uma grana e te pago.
- Até ela receber, entro na falência contigo!
Dilza riu.
- Alguém falou em receber? Essa grana não demora, te garanto...
Belinda prestava atenção na mulher quando seu celular, que ela levava na mão, tocou. Pediu licença a Fumaça, deixando-o discutindo com Dilza e atendeu o telefone.
Era dona Vera, e queria falar com ela, urgente! Belinda disse que ia ver a consulta no SUS e depois iria ao casarão. Desligou o celular e imaginou o que seria de tão importante que fez com que dona Vera a ligasse.
"Espero que a sobrinha de Dilza esteja se comportando bem no trabalho.", pensou ela enquanto voltava para casa.  
                                    ****************
- Cume quié - disse Dilza, batendo na borda do balcão da birosca. - Vai me boicotar até quando?
Ela ainda continuava parada no mesmo lugar e Fumaça atendia outros clientes que se amontoavam em um canto. Ele entregava garrafas de cervejas e enchia copos de cachaça para os clientes que costumavam pagar em dia. Cansou das promessas da Dilza. E também tinha outro motivo de querer vê-la bem longe dali.
Fontes seguras disseram a ele que a mulher andava metida com negócio de assalto. A princípio, Fumaça duvidou. Não conseguia imaginar Dilza roubando a casa de alguém. Não por ela ser de boa índole - sabia que ela não valia nada, desde criança, - mas da capacidade dela surrupiando algo. Ela não tinha estrutura física nem para caminhar cem metros...
Agora, se ela estivesse sentada e algum acompanhante distraído deixasse sua carteira com dinheiro em cima da mesa enquanto tivesse ido ao banheiro, bem, com certeza, ela malocaria algum. E ainda faria a cara mais inocente do mundo se fosse acusada de roubo.
- Fumaça - Dilza gritou, batendo no balcão. Um resto de cigarro pendia colado no lábio inferior, e tremia a cada berro que dava, - para de fingir que é surdo e me atenda, porra!
Um mulato, que estava acompanhado de mais dois sujeitos em uma mesa repleta de garrafas vazias de cerveja, gritou:
- Sai daí, piranha! Deixa Fumaça trabalhar em paz!
Os outros sujeitos da mesa caíram na gargalhada. Dilza virou-se para eles e levantou o dedo médio:
- Aqui, ó! Piranha é a puta que pariu!
Agora foi uma gargalhada coletiva, de todas mesas ocupadas ao redor. Uma mulher, com bob's imensos enrolados no cabelo crespo, disse:
- Imagina se ela tivesse doidona!
- Mulher sem noção nenhuma - criticou uma magrinha de um solitário dente na boca.
- Vão olhar se estou na esquina - gritou Dilza, esquecendo Fumaça por um momento. - Eu sou da área também, faço parte dessa comunidade de merda! Tão achando que quero beber de graça, mas estão enganados! Logo logo vou ficar boluda! Minha sobrinha...
Nesse momento ela sentiu alguém agarrando seu braço e puxando-a para trás. Ela girou o rosto, pronta para xingar o abusado que a agarrara e viu que era Jayme.
Ele estava usando seus óculos escuros, mesmo com o final da tarde. Jayme apertou mais ainda o braço dela e disse, entre dentes:
- O que tem na cabeça?
- Me larga - disse ela, debilmente.
- Sabe que uma palavra errada pode estragar a parada toda, merda?
Dilza tentou puxar seu braço, mas viu que era inútil. Aquele homem era muito forte.
- Eu não falei nada...
- Porque cheguei a tempo, cadela - rosnou Jayme, contorcendo a boca. Um fio de saliva pairou no seu beiço inferior. - Mas tava doida pra falar. De ficar se gabando...
- Juro que não...
- Não jure, porra! Te conheço e não é de hoje! Porra, Dilza, tamos com uma parada firme e você tá querendo estragar tudo por causa de cana!
Dilza abaixou a cabeça. Os dois haviam se afastado das mesas da birosca e falavam baixinho.
- Porra... Pedi um copo pro Fumaça e ele veio cheio de onda pra cima de mim...
- E com razão! Se sou ele, também não te vendia fiado.
Dilza soluçou e simulou que chorava. Mas Jayme não caiu na artimanha da mulher.
- Fernanda foi uma excelente aluna. Vocês duas podem enganar os trouxas, mas não a mim. Formamos uma parceria, e parceiros não sacaneiam os outros.
- Claro... tanto que nunca falei da velha...
- Cala essa boca! Tô ficando bolado contigo, Dilza. Não sei se vai dar certo nossa parceria...
Dilza se desesperou. Mesmo com o braço agarrado, ela se jogou em cima do sujeito:
- Não fale uma coisa dessa! Fui eu que te apresentei Fernanda! Eu que cuidei dela depois que ela perdeu o filho... Eu que descobri o potencial dela para...
Os dedos da mão do homem afundaram mais ainda na carne mole do braço da mulher. Dilza suspirou e ficou quieta.
- Você pode ter dado o trato nela, mas a gente sabe muito bem que Fernanda não bate bem com a cabeça. Se não sou eu, ela tava mofando na cadeia...
- Eu sei - mentiu Dilza. Ela lambia os lábios secos e agora não tirava os olhos das garrafas de cachaça perfilados na prateleira da birosca do Fumaça.
Jayme afrouxou a mão e disse:
- Vou te pagar uma bebida. Mas vá beber em outro lugar. Não quero te ver por aqui tão cedo!
- E a grana?
Jayme deu cinco reais para ela e disse:
- Vai ser logo, pode deixar.
Dilza embolsou a nota e saiu em disparada. Preocupado, Jayme se aproximou de uma mesa com o mulato e os dois outros sujeitos, puxou uma cadeira e disse:
- Valendo cerveja.
- Demorô - disse o mulato, pegando o baralho.
Precisava relaxar um pouco. Umas partidas de "sueca" ia distraí-lo, mas não conseguia tirar da cabeça a tia de Fernanda. Aquela mulher, por causa da bebida, era perigosa demais.
Ia falar com Fernanda primeiro. O que ela falasse, ia fazer.
Só não podia mais correr o risco de perder tudo por causa de uma puta cachaceira.

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

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