Translate

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 26

No capítulo anterior: Marquinhos ia completar: "Filmes de terror", mas preferiu ficar calado. À primeira vista, quem não o conhecesse acharia que era displicente, mas Marquinhos observava o estranho. Não foi com a cara dele.
Mas como não ia ser amigo dele, consumindo bastante e pagando direitinho, deixa ele na mesa e eu aqui na minha, pensou ele.
O estranho colocou os óculos de novo. Parecia compenetrado enquanto chupava o palito no canto da boca. Pela sua cara, parecia satisfeito.

O quarto estava escuro e as janelas fechadas. O ar ali dentro era denso, pegajoso, palpável. Era como se estivesse parada no meio de uma bruma sobre um lago gaulês.
Claro que essa metáfora não era necessária para a velha senhora que foi largada, esquecida, trancada no quarto, em sua cadeira de rodas, lambuzada pelo mingau que secara sobre sua pele, deixando um rastro de crostas rachadas que exalavam um odor azedo misturado ao cheiro do suor do seu corpo.
Dona Vitória esperava que Ferpa viesse e a tirasse dali. Só não entendia aquela demora toda. Seu nariz queimava com o fedor que vinha da sua pele. Cheiro de leite azedo.
E Teodoro, onde estaria nesse momento? Ontem disse que ia na Câmara e não demoraria muito. Mais uma mentira dele!
Já estava cansada de ficar representando na frente dos outros. Se soubessem o que Teodoro fez...
Mas era cúmplice dele. E não ia contar nada, para o bem de Vera. Por isso guardou dentro da caixa de ferro...
Escutou a porta abrindo. Era Ferpa.
Quando a moça se aproximou dela, sua memória evaporou novamente.
                              ****************
Quando Aurélio chegou da rua, viu seus filhos de banho tomado e sem os uniformes do colégio. Fernanda arrumou a mesa na sala de jantar e nesse momento, dizia:
- Não quero ver nenhum grão de feijão nos pratos.
- Não vou deixar - disse Dequinha, animada quando viu seu pai. - Vou comer tudinho!!!!
Aurélio ficou impressionado com a cena que tinha diante dele: Seus filhos comportados na mesa de almoço, sem brigas entre eles e principalmente, comendo em silêncio!
Isso tinha um nome: Arrependimento. Juninho e Anabela viram que a nova empregada não era nenhum monstro como pintaram e depois da injustiça que cometeram com ela, estavam com peso na consciência.
Bem, pensou Aurélio, logo esse peso vai sumir e eles voltarão à normalidade. Afinal, são crianças!
Fernanda serviu o prato do seu patrão e Aurélio aspirou fundo o aroma que exalava:
- Meu Deus! Que cheiro maravilhoso!!!!
- É o tempero do feijão - comentou Fernanda, envergonhada com o elogio.
- E eu achando que só Belinda sabia fazer uma comida saborosa! - Ele deu uma garfada. Fernanda fizera carne assada com batatas coradas. Estavam uma delícia! - Parabéns, Fernanda! Como adivinhou que esse é meu prato favorito?
- Puxa! Não sabia, senhor!
- Achei que soubesse...
Fernanda permanecia em pé, mas dessa vez mantinha uma distância considerável dele. Da posição que estava, Aurélio ficava de frente para ela e enquanto saboreava a comida do prato, também a saboreava com os olhos que corriam pelo seu corpo.
- Cadê vovó? - Perguntou Dequinha. Sua boca estava suja de feijão.
Depois que a filha falou foi que Aurélio percebeu que a velha sogra não estava com eles. Fernanda espalmou as mãos para o alto e disse:
- Jesus! Deixei-a dormindo no quarto! - Antes que alguém dissesse algo, continuou: - Dona Vitória amanheceu com pouco de coriza e dei uma vitamina C para ela e a deixei repousando na cama... Mas vou levar o almoço dela. Se precisar de alguma coisa, seu Aurélio, pode me chamar.
Aurélio concordou. Depois que a empregada saiu, começou o falatório na mesa.
"Essas crianças...", divertiu-se.
                       **************************
- Que coisa feia - disse Fernanda, ao entrar no quarto. O fedor era insuportável, dava náuseas. Dona Vitória continuava na mesma posição, com a camisola que dormiu ressecada de leite e aveia. - Você é uma mulher muita porca!
Fernanda contornou a cadeira de rodas e ficou na frente da velha, de braços cruzados.
- Minha vontade era deixar você de castigo. Esse fedor não é só do mingau... Deve estar toda cagada na fralda!
Dona Vitória murmurou:
- Ferpa... grommmeee...
- Não comeu porque não quis!
Os olhos da velha suplicavam.
Fernanda fingiu que estava com pena.
- Tá, vou te dar um banho. Depois te dou comida. Vou ser boazinha com você, mas quero uma retribuição para toda bondade.
Fernanda se ajoelhou e com uma das mãos, agarrou o queixo da velha. Dessa vez, sua voz não mostrou nenhuma piedade:
- Quero a merda da chave. Diga onde está! Se não consegue falar, sinalize, me dê a pista. Mas quero encontrar a porra dessa chave!
Mesmo com o maxilar sendo apertado, Dona Vitória sorriu. Novamente, aquele sorriso vazio, oco.
Esse sorriso assustou Fernanda. Largou o queixo da velha e se levantou.
- Vamos, vou te dar um banho. Não quero que sua filha te veja nesse estado. Vai achar que não faço nada.
Ela empurrou a cadeira em direção ao corredor. Quando abriu a porta do quarto, certificou-se que aqueles pentelhos não estavam por perto. O patrão babão a essa hora devia estar tocando uma bronha pensando nela. Esse sabia que não estaria ali.
Na certeza que não havia ninguém, empurrou a cadeira de rodas para o banheiro.
O que Fernanda não percebeu foi Dequinha, no arco que separava o corredor da sala de jantar, parada ali. A menina ia para o seu quarto e viu sua avó toda suja. E cheirando mal.

Continua...

No próximo capítulo: Vera e Rodrigo trocam ideias

Rogerio de C. Ribeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário