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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 22

No capítulo anterior: Ela ouviu Vera e Aurélio repreendendo os dois. Passou a mão na face para secar as falsas lágrimas. Sorriu.
"Idiotas. Na próxima vez vão aprender que não podem mexer comigo. E nunca mais vão deixar suas mochilas à minha mão. Pra copiar suas letras de primário é a coisa mais fácil do mundo. A partir de agora vão ficar pianinhos comigo. "
Ouviu som de tapas. E de choros.
Agora ficou satisfeita.

Era impressionante a adaptação das crianças para uma novidade. Era de se prever que sentissem falta de Belinda. Ela sempre tratou deles como se fossem netos dela na ausência dos pais. Os estragava, mimando sempre, fazendo tudo que pediam. Juninho era o mais apegado. Enquanto Belinda cozinhava ou escolhia feijão, ele ficava ali ao lado dela tagarelando sobre diversos assuntos. E Belinda se divertia com ele.
Anabela era outra. Belinda a tratava como se fosse um bibelô. Cuidava dos vestidos, das roupas, com extremo cuidado. Se visse Anabela chorando, se desesperava. Perguntava insistentemente se a menina estava com alguma dor ou se tinha brigado com Juninho. E enquanto não cessava as lágrimas, Belinda não saía ao lado dela.
Dequinha era o xodó da negra. Para essa menina Belinda não media esforços para agrada-la. Dequinha era fascinada em bolo de chocolate. Belinda nunca deixou que faltasse um pedaço de bolo para a caçula. Às vezes, Dequinha ia ao quarto de empregada e pedia para dormir com Belinda. Usava o mesmo argumento: Tinha medo do escuro; ou Anabela tirou o abajur de luz azul da tomada ou a lâmpada queimou. A negra ria, se ajeitava na cama e a envolvia com seu enorme e gordo braço. Dequinha se aninhava e dormia feliz, com o polegar enfiado na boca.
Era sobre isso que Vera falava com Aurélio, na cama de casal.
- Nunca pude imaginar que a rejeição à pobre moça fosse enorme! Pra chegar ao ponto de rasgar uma bíblia!
- É inadmissível - concordou Aurélio. - Mas temos uma parcela de culpa nisso tudo.
Vera estava sentada, encostada na cabeceira da cama. As alças da sua camisola escorregaram dos ombros, dando a impressão que queria se despir para ele. Só que Aurélio não estava nem um pouco predisposto para mais uma noite de sexo com ela. Esperava uma brecha para falar novamente da venda do casarão.
Vera ajeitou as alças da camisola de volta nos ombros.
- Meu dia começou uma merda e acabou desse jeito. Você tem que ter uma conversa muito séria com as crianças. De vez em quando é bom desempenhar o seu papel de pai.
- Que conversa? Acho que elas entenderam direitinho depois dos tapas que deu neles.
- Fui obrigada em fazer isso, mas detestei.
- Imagine se eles gostaram... Vou providenciar uma bíblia para a moça. Isso não posso esquecer. Independente da minha crença, tenho que respeitar o que ela acredita.
Vera fez um muxoxo.
- Tá bom, você já repetiu mil vezes que é ateu.
- Agnóstico.
- É a mesma coisa.
Aurélio não queria discutir. Seria perda de tempo e de esforço.
- Esse negócio de rasgarem a bíblia me deixou preocupada - comentou Vera. - As crianças nunca entraram numa igreja. Acho que vou matricula-los em uma escola dominical...
- Faça o que quiser. Vera, quero falar outra coisa... mas prometa que vai ouvir... quieta!
Desconfiada, ela perguntou:
- Não é sobre a venda da casa? Se for, é melhor se virar pra dormir...
- Vera, pela primeira vez larga de ser radical! Essa proposta que você teve não é para sempre!
Vera deitou-se e ficou de costas para ele.
- Estou cansada, aporrinhada e estressada. Tudo "ada", e você ainda vem com esse papo pra boi dormir!
- Você está sendo egoísta, Vera! Olha só o que houve com nossos filhos... Eles simplesmente maltrataram a nova empregada porque estão com saudades da Belinda. E sabe qual é o motivo disso tudo?
Vera não respondeu. Continuou de costas para ele.
- Nossos filhos não tem amigos para brincar. Nesse fim de mundo não tem nenhuma criança da idade delas morando aqui perto. Eles ficam dentro de casa o dia inteiro jogando videogame, assistindo dvd ou televisão. Quando uma criança fica isolada das demais, se tornam antissociais. Já num prédio, são grandes a possibilidade delas terem amigos.
- Sua sugestão é, se entendi direito: Nossos filhos são uns bichos irracionais porque moram em uma casa e não em um apartamento.
- Mais ou menos - disse Aurélio.
- Sua tese de socialização é a mais idiota que ouvi na minha vida inteira.´- Vera abraçou um travesseiro e murmurou: - Apague a droga do seu abajur e durma. Eu tenho coisas mais "sociáveis" para resolver amanhã. Uma delas, pro seu governo, se chama "correr atrás de dinheiro", coisa que você não sabe fazer. Boa noite.
Aurélio ficou sem ação. Quanto mais argumentos tentava, mais era derrubado na teimosia da sua mulher.
Se ainda não estivessem falidos... Ou melhor dizendo, se Vera e sua mãe esclerosada não tivessem torrado toda grana do vereador, estaria coberta de razão em não querer vender esse mausoléu caindo aos pedaços. Mas falidos! Vivendo de parcas economias que restou da herança do velho...  Vera  comia arroz com ovo e arrotava caviar.
Não queria parecer pessimista, mas infelizmente via escorrendo pelos seus dedos os cem mil prometidos pelo construtor espanhol. Uma semana... Do jeito que ela andava irredutível, nem em um ano conseguiria mudar a ideia dela.
Levantou-se. Precisava beber uma água e fumar um cigarro. Caminhou para a cozinha. Acendeu a luz e abriu a geladeira. Quase vazia. Pegou uma garrafa d'água e bebeu pelo gargalo. Tinha um cigarro atrás da orelha e pegou uma caixa de fósforo. Pensou em ir na varanda, mas mudou de ideia. Foi para a área.
Ali também estava escuro. Abriu uma grande janela que dava para o antigo canil e acendeu o cigarro. Tragou a primeira fumaça e ouviu um som atrás dele.
Era a nova empregada saindo do banheiro. Estava enrolada por uma toalha do peito até o início das coxas brancas. Os cabelos molhados grudavam nas suas costas.
Aurélio engasgou e sem querer largou o cigarro, que caiu aos seus pés descalços. Fernanda disse, assustada:
- Jesus! Nem percebi que o senhor estava aqui!
- E nem percebi que a luz do banheiro estava acesa - disse Aurélio, envergonhado. - Não pense que sou um tarado, que fica olhando pela fechadura as empregadas tomando banho... Realmente, não sabia...
O constrangimento dele era maior depois do que a moça passara com seus filhos. Ela poderia imaginar que ele também tinha má intenção...
Fernanda continuou parada como estava, na frente da porta aberta do minúsculo banheiro. Ela segurava a ponta da toalha e pingos d'água escorriam das suas pernas. Aurélio teve a mesma sensação do dia anterior. Agora vestia uma camiseta branca e um short de dormir, sem cueca embaixo. E dessa vez não conseguiu disfarçar a ereção.
Fernanda baixou os olhos e deu um meio sorriso. Ela abriu a porta do seu quarto e disse:
- Boa noite, seu Aurélio.
Ela fechou a porta, sem passar a chave. A vontade de Aurélio era abrir a porta e agarra-la, nua, dentro do quartinho. Mas conteve o ímpeto. Aquela moça era ingênua, sofrida... Não ia machuca-la mais ainda.
Precisou tomar uma ducha fria antes de se deitar. Se não fizesse isso, com certeza passaria a noite em claro, pensando na nova empregada.

Continua...

No próximo capítulo: Aurélio decide tirar uma "folga" no trabalho.

Rogerio de C. Ribeiro

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