"Idiotas. Na próxima vez vão aprender que não podem mexer comigo. E nunca mais vão deixar suas mochilas à minha mão. Pra copiar suas letras de primário é a coisa mais fácil do mundo. A partir de agora vão ficar pianinhos comigo. "
Ouviu som de tapas. E de choros.
Agora ficou satisfeita.
Era
impressionante a adaptação das crianças para uma novidade. Era de se prever que
sentissem falta de Belinda. Ela sempre tratou deles como se fossem netos dela na ausência dos pais.
Os estragava, mimando sempre, fazendo tudo que pediam. Juninho era o mais apegado. Enquanto Belinda cozinhava ou
escolhia feijão, ele ficava ali ao lado dela tagarelando sobre diversos
assuntos. E Belinda se divertia com ele.
Anabela
era outra. Belinda a tratava como se fosse um bibelô. Cuidava dos vestidos, das
roupas, com extremo cuidado. Se visse Anabela chorando, se desesperava.
Perguntava insistentemente se a menina estava com alguma dor ou se tinha
brigado com Juninho. E enquanto não cessava as lágrimas, Belinda não saía ao
lado dela.
Dequinha
era o xodó da negra. Para essa menina Belinda não media esforços para
agrada-la. Dequinha era fascinada em bolo de chocolate. Belinda nunca deixou
que faltasse um pedaço de bolo para a caçula. Às vezes, Dequinha ia ao quarto
de empregada e pedia para dormir com Belinda. Usava o mesmo argumento: Tinha
medo do escuro; ou Anabela tirou o abajur de luz azul da tomada ou a lâmpada
queimou. A negra ria, se ajeitava na cama e a envolvia com seu enorme e gordo
braço. Dequinha se aninhava e dormia feliz, com o polegar enfiado na boca.
Era
sobre isso que Vera falava com Aurélio, na cama de casal.
-
Nunca pude imaginar que a rejeição à pobre moça fosse enorme! Pra chegar ao
ponto de rasgar uma bíblia!
-
É inadmissível - concordou Aurélio. - Mas temos uma parcela de culpa nisso
tudo.
Vera
estava sentada, encostada na cabeceira da cama. As alças da sua camisola
escorregaram dos ombros, dando a impressão que queria se despir para ele. Só que
Aurélio não estava nem um pouco predisposto para mais uma noite de sexo com
ela. Esperava uma brecha para falar novamente da venda do casarão.
Vera
ajeitou as alças da camisola de volta nos ombros.
-
Meu dia começou uma merda e acabou desse jeito. Você tem que ter uma conversa
muito séria com as crianças. De vez em quando é bom desempenhar o seu papel de
pai.
-
Que conversa? Acho que elas entenderam direitinho depois dos tapas que deu
neles.
-
Fui obrigada em fazer isso, mas detestei.
-
Imagine se eles gostaram... Vou providenciar uma bíblia para a moça. Isso não posso esquecer.
Independente da minha crença, tenho que respeitar o que ela acredita.
Vera
fez um muxoxo.
-
Tá bom, você já repetiu mil vezes que é ateu.
-
Agnóstico.
-
É a mesma coisa.
Aurélio
não queria discutir. Seria perda de tempo e de esforço.
-
Esse negócio de rasgarem a bíblia me deixou preocupada - comentou Vera. - As
crianças nunca entraram numa igreja. Acho que vou matricula-los em uma escola
dominical...
-
Faça o que quiser. Vera, quero falar outra coisa... mas prometa que vai ouvir... quieta!
Desconfiada,
ela perguntou:
-
Não é sobre a venda da casa? Se for, é melhor se virar pra dormir...
-
Vera, pela primeira vez larga de ser radical! Essa proposta que você teve não é
para sempre!
Vera
deitou-se e ficou de costas para ele.
-
Estou cansada, aporrinhada e estressada. Tudo "ada", e você ainda vem
com esse papo pra boi dormir!
-
Você está sendo egoísta, Vera! Olha só o que houve com nossos filhos... Eles
simplesmente maltrataram a nova empregada porque estão com saudades da Belinda.
E sabe qual é o motivo disso tudo?
Vera
não respondeu. Continuou de costas para ele.
-
Nossos filhos não tem amigos para brincar. Nesse fim de mundo não tem nenhuma
criança da idade delas morando aqui perto. Eles ficam dentro de casa o dia
inteiro jogando videogame, assistindo dvd ou televisão. Quando uma criança fica
isolada das demais, se tornam antissociais. Já num prédio, são grandes a possibilidade
delas terem amigos.
-
Sua sugestão é, se entendi direito: Nossos filhos são uns bichos irracionais
porque moram em uma casa e não em um apartamento.
-
Mais ou menos - disse Aurélio.
-
Sua tese de socialização é a mais idiota que ouvi na minha vida inteira.´- Vera
abraçou um travesseiro e murmurou: - Apague a droga do seu abajur e durma. Eu
tenho coisas mais "sociáveis" para resolver amanhã. Uma delas, pro
seu governo, se chama "correr atrás de dinheiro", coisa que você não
sabe fazer. Boa noite.
Aurélio
ficou sem ação. Quanto mais argumentos tentava, mais era derrubado na teimosia
da sua mulher.
Se
ainda não estivessem falidos... Ou melhor dizendo, se Vera e sua mãe
esclerosada não tivessem torrado toda grana do vereador, estaria coberta de
razão em não querer vender esse mausoléu caindo aos pedaços. Mas falidos! Vivendo
de parcas economias que restou da herança do velho... Vera
comia arroz com ovo e arrotava caviar.
Não
queria parecer pessimista, mas infelizmente via escorrendo pelos seus dedos os
cem mil prometidos pelo construtor espanhol. Uma semana... Do jeito que ela
andava irredutível, nem em um ano conseguiria mudar a ideia dela.
Levantou-se.
Precisava beber uma água e fumar um cigarro. Caminhou para a cozinha. Acendeu a
luz e abriu a geladeira. Quase vazia. Pegou uma garrafa d'água e bebeu pelo
gargalo. Tinha um cigarro atrás da orelha e pegou uma caixa de fósforo. Pensou
em ir na varanda, mas mudou de ideia. Foi para a área.
Ali
também estava escuro. Abriu uma grande janela que dava para o antigo canil e
acendeu o cigarro. Tragou a primeira fumaça e ouviu um som atrás dele.
Era
a nova empregada saindo do banheiro. Estava enrolada por uma toalha do peito
até o início das coxas brancas. Os cabelos molhados grudavam nas suas costas.
Aurélio
engasgou e sem querer largou o cigarro, que caiu aos seus pés descalços.
Fernanda disse, assustada:
-
Jesus! Nem percebi que o senhor estava aqui!
-
E nem percebi que a luz do banheiro estava acesa - disse Aurélio, envergonhado.
- Não pense que sou um tarado, que fica olhando pela fechadura as empregadas
tomando banho... Realmente, não sabia...
O
constrangimento dele era maior depois do que a moça passara com seus filhos.
Ela poderia imaginar que ele também tinha má intenção...
Fernanda
continuou parada como estava, na frente da porta aberta do minúsculo banheiro.
Ela segurava a ponta da toalha e pingos d'água escorriam das suas pernas. Aurélio
teve a mesma sensação do dia anterior. Agora vestia uma camiseta branca e um
short de dormir, sem cueca embaixo. E dessa vez não conseguiu disfarçar a
ereção.
Fernanda
baixou os olhos e deu um meio sorriso. Ela abriu a porta do seu quarto e disse:
-
Boa noite, seu Aurélio.
Ela
fechou a porta, sem passar a chave. A vontade de Aurélio era abrir a porta e
agarra-la, nua, dentro do quartinho. Mas conteve o ímpeto. Aquela moça era
ingênua, sofrida... Não ia machuca-la mais ainda.
Precisou
tomar uma ducha fria antes de se deitar. Se não fizesse isso, com certeza
passaria a noite em claro, pensando na nova empregada.
Continua...
No próximo capítulo: Aurélio decide tirar uma "folga" no trabalho.
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Aurélio decide tirar uma "folga" no trabalho.
Rogerio de C. Ribeiro
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