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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 30

No capítulo anterior: - Por quê vovó tava fedendo daquele jeito?
Epa! Sinal de alerta!
- Do que tá falando, meu bem?
- Vi quando levou vovó pro banheiro... Ela tava com um cheirooooo - Dequinha sacudiu a mão na frente do seu nariz e fechou os olhos.
- Pessoas que não andam às vezes faz ... - Ela cochichou no ouvido da menina - coco nas calças!
- Ih! Não quero ficar igual à vovó!
- Tem muito tempo ainda até que chegue na idade dela...
- Tomara! - Dequinha suspirou aliviada.


Vera estacionou o Palio em frente do portão da garagem. Antigamente o portão abria com um controle remoto, mas hoje era preciso sair do carro para abri-lo.
"Tempos de fartura", pensou ela enquanto abria o cadeado da corrente. Atrás dela, a rua parecia um bairro fantasma. Luzes nas janelas das casas indicavam que haviam pessoas, mas Vera nunca via os vizinhos.
O que faltava ali era segurança. Várias casas já tinham sido assaltadas, algumas com certa violência. A única vez que os moradores da rua se solidarizaram foi na hora de assinar um abaixo-assinado para que colocassem uma cabine da polícia no início da rua. Nem com o sobrenome Paranhos nesse abaixo-assinado comoveu os vereadores da Câmara e muito menos o prefeito.
A rua continuou sem policiamento e os moradores permaneciam trancados dentro das suas casas, protegidos por imensos muros, cerca elétrica e cachorros assassinos.
Pelo menos nunca passei por esse aperto, pensou Vera. Ela abriu o portão duplo e voltou para o seu carro. "Quem sobe na rua, a primeira visão que tem é o casarão no fim da subida da colina. E mesmo assim, nunca entraram aqui. Oxalá continue assim."
Entrou com o Palio na garagem escura, agora só iluminada pelas luzes do farol. Ela pisou no pedal do freio e xingou mentalmente. Os faróis iluminavam caixas abertas caídas, com vestidos, livros, chapéus espalhados pelo chão.
- Que merda de bagunça é essa?
Aquela bagunça não foi feita por um rato curioso, disso ela tinha certeza. Saltou do carro, trancou o portão e caminhou pela lateral do jardim, saindo na varanda da frente.
Quando entrou, a primeira coisa que ouviu foi:
- Estávamos preocupados com você!
Vera jogou sua bolsa em cima do sofá e quase soltou uma gargalhada. Aurélio nunca dizia: "Estou preocupado...". A conotação dele era no grupo, na família.
- Tive que atender um cliente na última hora e demorei mais que pretendia.
Aurélio, as crianças e Dona Vitória, na sua cadeira de rodas com Fernanda sentada ao lado com uma terrina de sopa na mão, olhavam para ela.
- Qualé, nunca me viram? - Eles viraram o rosto, menos Dona Vitória, que ainda tinha um olhar aparvalhado em cima dela. - Não é o fim do mundo, gente. Tô aqui, inteira.
Ela sentou-se na cabeceira da mesa onde seu prato e talheres a esperavam. Ela se serviu, mas quase não colocou nada no prato.
- Verinha... - Aurélio perguntou, - você bebeu?
Vera bateu o garfo em cima da comida e disse, irônica:
- Bebi duas tacinhas de vinho. Às vezes é bom pra relaxar.
- Você nunca foi de beber na rua... - Estranhou ele.
- Sempre existe uma primeira vez pra tudo, querido - Ironizou ela.
As crianças preferiam o silêncio. Sabiam que ela estava "naqueles dias", que qualquer coisinha virava briga. Aurélio fez a mesma coisa. Ela que beba! Que trance as pernas! Passe numa blitz e fique sem carro depois do teste do bafômetro. Contanto que o deixe em paz...
"Quem me dera se ela chegasse trêbada, mas acessível à ideia da venda desse casarão decrépito. Eu mesmo incentivaria a cachaçada. Aguentaria até a hora que embolsar meus cem mil..."
- Como foi o dia da mamãe, Fernanda?
- Ótimo - respondeu a moça. Ela deu mais uma colherada de sopa para a velha, que abriu a boca satisfeita. Que fome, hein? Pudera... Um dia inteiro sem comer não é mole!
- O que falei pra você sobre as regras da casa, Fernanda?
Fernanda não entendeu a pergunta.
- Sobre?
- Independente do estado da casa, detesto ver bagunça.
- Onde a senhora viu isso, dona Vera?
- Na garagem. Aquelas caixas espalhadas.
- Eu não fui lá embaixo hoje, dona Vera.
- Não levou minha mãe ao jardim? - Vera questionou.
- Não... Dona Vitória não quis... até tentei...
A velha senhora ouviu seu nome. O que aquelas fofoqueiras tavam falando?
- Então quem esteve na garagem? - Indagou Vera, olhando para todos da mesa.
Aurélio deu de ombros. Vera sabia que ele nem ia naquela parte da casa. O jardim abandonado, o canil caindo aos pedaços e aquele viveiro vazio era a definição exata da ruína daquele casarão.
Ao lado dele, Anabela observava a nova empregada com o canto dos olhos. Prestava atenção nos movimentos da maluca. Viu que ela ficou com medo da bronca que sua mãe deu nela. Ótimo, pensou. Talvez mamãe não seja tão cega como pensava... Nem percebeu meu braço com essa mancha...
Juninho não estava nem aí. É ruim de falar com minha mãe que fui eu! Do jeito que tá, ia me bater... deixa ela com a empregada.
Dequinha foi a única que falou:
- Mamãe, a luz do meu abajur queimou!
Teve a resposta que não queria ouvir:
- Durma no escuro! - E complementou: - Fernanda, não quero ver aquela bagunça na hora que eu for para o trabalho.
- Sim, dona Vera - disse Fernanda. - Amanhã, bem cedinho, organizo toda bagunça.
E o jantar prosseguiu no silêncio.
                        ******************
Pensamentos fluíam entre os moradores do casarão.
"Ele me beijou na cara dura! Se fosse outra época, diria poucas e boas. Nunca beijei na calçada na hora do rush! O que as pessoas pensaram? No mínimo, que sou uma qualquer! Sabe de uma coisa? Dane-se os outros. Adorei o beijo. Amei a companhia dele. Tava arrasada e ele levantou meu astral. Há muito tempo que não me sentia tão bem como hoje a tarde. Se ele ligar me convidando para irmos a qualquer lugar, vou aceitar. Talvez assim tome coragem e me separe desse estropício que tá deitado do meu lado... Preciso de mudança na minha vida... Isso sim, é importante... Tomara que ele ligue. Se não ligar, juro que dou uma de maluca e eu mesmo ligo. Para agradecer o beijo", Vera pensou e sorriu, deitada de lado no escuro do seu quarto.
"Pode ser até impressão minha, mas que Vera mudou seu jeito comigo, ah!, mudou e muito! Já tem bastante tempo que não andamos bem, mas dessa vez a coisa parece grave. Começou na hora que ela fechou a mão. Depois veio com o papo que eu tinha que ter ambição na vida. Ora bolas, ela me conheceu assim! O defeito dela é herança daquele velho intragável. Essa teimosia de não querer enxergar o óbvio. Tá com uma proposta de quase um milhão e não vende a casa em memória do falecido Teodoro Paranhos! O ídolo dela. O melhor pai do mundo! O velho escroto! A situação tá ficando preta pro meu lado. Se ela não mudar logo de ideia, perco cem mil e de ainda levo um pé na bunda! Preciso agir rápido, só tenho quatro dias...", pensou Aurélio, desesperado.
"Essa dona Vera é de amargar! Tá pensando que tem o rei na barriga! Deixa que ela pense que é a rainha da cocada preta, que vai me intimidar com aquela pose idiota de madame! Mal sabe que nem quero ficar aqui por muito tempo. Só o tempo de ver se tem alguma coisa de valor e depois dou no pé dessa casa caindo aos pedaços. Pior que não tenho tido sorte nos últimos trabalhos. Só pego gente com pouca grana. O que me prende aqui são as joias da velha maluca e o que ela esconde naquela caixa. Meu instinto me diz que deve ser coisa boa. Não vejo a hora de embolsar algum e meter o pé na estrada. Só não posso ser precipitada como no outro emprego... uma vez já basta... não acredito que posso fazer o que fiz sem que alguém desconfie. Não... Vou tomar cuidado com essas crianças. Sei que querem aprontar pra cima de mim. Mas eles vão se ferrar na minha mão... E o babaca? Fica escondendo aquele pauzinho de criança como se eu fosse ficar excitada... Idiota... Se ainda tivesse grana... Seria outros quinhentos...", Deitada na desconfortável cama de solteiro, Fernanda vestia camisola e não tinha nenhuma peça embaixo. Ela estava com as pernas escancaradas e dedilhava sua vulva de poucos pelos, pensativa.
"Mamãe nem viu meu braço machucado. Às vezes penso se ela gosta de mim mesmo. Sempre protege Juninho. Nem posso falar da empregada pra ela que já vem me dando bronca. Amanhã vou falar com papai sozinha. Ele eu sei que gosta de mim.", Enquanto massageava o braço, Anabela chorava na escuridão do quarto.
"Não vou deixar mais meu carrinho de bombeiro lá embaixo. Belinda guardou ele na garagem, mas com essa empregada tá arriscado de sumir com ele de propósito. Eu, hein...É!!!!", Juninho sorriu satisfeito. Escondeu seu brinquedo e nunca que a doida ia achar!
"Ferpaaaa... Ferpa... Ferrp...", Dona Vitória resmungava enquanto dormia na sua cama de colchão d'água.
"Como está escuro... estou com medo... e se aparece o fantasma e puxa meu pé? Fernanda falou que me protege, mas ela tá dormindo... meu abajur tá sem luz... estou com medo!", Debaixo do lençol, Dequinha se escondia do fantasma que seu irmão dizia que a pegaria na escuridão. Ela tremia feito vara verde.

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

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