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terça-feira, 16 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 31

No capítulo anterior: "Não vou deixar mais meu carrinho de bombeiro lá embaixo. Belinda guardou ele na garagem, mas com essa empregada tá arriscado de sumir com ele de propósito. Eu, hein...É!!!!", Juninho sorriu satisfeito. Escondeu seu brinquedo e nunca que a doida ia achar!
"Ferpaaaa... Ferpa... Ferrp...", Dona Vitória resmungava enquanto dormia na sua cama de colchão d'água.
"Como está escuro... estou com medo... e se aparece o fantasma e puxa meu pé? Fernanda falou que me protege, mas ela tá dormindo... meu abajur tá sem luz... estou com medo!", Debaixo do lençol, Dequinha se escondia do fantasma que seu irmão dizia que a pegaria na escuridão. Ela tremia feito vara verde.


"Merda!", foi o que Fernanda pensou quando viu a bagunça na garagem. "Quanto mafuá! Nunca vi tanta coisa velha junta! Esse pessoal nunca ouviu falar em doação?"
Não eram nem seis horas da manhã e a moça já estava de pé, arrumando aquela confusão toda. Não fazia isso com bom grado, mas sua intenção era que Vera, quando acordasse, visse tudo limpo e arrumado. Ia ficar satisfeita com a eficiência dela e por tabela, a esqueceria um pouco. E sendo ignorada pela pessoa mais esperta da família, Fernanda podia agir com mais tranquilidade.
"Hoje descubro o que tem naquela caixa."
Essa caixa de ferro trancada a chave tornou-se uma obsessão para ela. Sua curiosidade foi atiçada pelo simples barulho de algo escondido que batia com força nas laterais quando era sacudida.
E tem as joias. Ela pensou sobre a fortuna exposta e chegou a uma conclusão. Até cinco dias atrás era Belinda que estava ali trabalhando. Ninguém desconfiava dela. Também, com trinta anos de casa...
E ela chegou no sábado de tarde; no domingo, Vera saiu com as crianças e na segunda foi ao fórum. Na terça, chegou tarde. Hoje, quarta, podia ser que ela se lembrasse do baú de joias aberto e fosse tranca-lo... Ou não.
"Quanto mais eu fizer cara de crente, ninguém vai suspeitar de nada..."
Só Anabela e o dentuço retardado.
Esses dois eram o calo no seu sapato. Mas ainda estavam na sua mão. Só não podia deixar que escorresse pelos dedos.
- Espero que não - murmurou ela enquanto juntava as quinquilharias dentro das caixas de papelão. - Eles que fiquem bem quietinhos...
Em menos de quarenta minutos, deixou tudo como estava. Olhou com desprezo para o Palio estacionado e saiu da garagem, na direção do jardim. Caminhava para a escada que dava para a cozinha quando viu algo em cima do banco de cimento. Quando se aproximou, viu que era um álbum antigo.
"Mais uma porcaria para guardar na caixa!"
Ela pegou o álbum e quando voltava para a garagem, parou de repente. Voltou ao banco de cimento e sentou-se. Pôs o álbum no colo e abriu.
Com desprezo, via vários retratos, a maioria em preto e branco. Muitas delas eram de uma moça usando um daqueles vestidos pré-históricos que estavam espalhados no chão da garagem.
A moça das fotos parecia Dona Vitória mais jovem. Em alguns retratos, ela posava ao lado de um carrão antigo, outras estava sentada em uma toalha quadriculada sobre o gramado. Uma mostrava um homem de bigode fino com chapéu e gravata borboleta apontando um canil com três dobermanns atrás da cerca. Esse era o tal Teodoro, que mandou construir esse casarão. Essa foto deve ter sido batida no mesmo lugar que ela estava.
Desinteressada, foi passando as páginas até que no final do álbum e um papel amarelado dobrado escorregou e caiu nos seus pés. Fernanda agachou-se e pegou.
Era um bilhete. Pela letra floreada, era de mulher.
" Não aguento mais. Por mais que esforce, sinto que as forças me abandonam. Não sei o que vou fazer. Uma hora conto tudo!"
Tinha mais alguma coisa escrito, mas agora era um borrão azulado, como se tivesse caído água em cima. Fernanda leu de novo e não entendeu o significado daquele bilhete. Colocou de volta no lugar e fechou o álbum. Voltou para a garagem e colocou em cima da primeira caixa empilhada.
Correu para a cozinha, eram quase sete da manhã e ainda tinha que preparar o café.
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O despertador marcava cinco minutos para as sete quando Aurélio pulou da cama. Por mais que quisesse ficar em casa, ia ter que sair para conversar com Xavier. Seu prazo estava esgotando e ia pechinchar mais alguns dias.
Vera ainda dormia quando ele saiu do banheiro de banho tomado e arrumado com uma camisa social azul e calça preta. Calçou os sapatos (precisava de uma graxa... mas nem pro engraxate ele tinha!) e saiu com sua pasta e uma camisa suja que deixara no cabideiro.
Encontrou Fernanda na cozinha passando um café na garrafa térmica e pediu:
- Pode deixar isso na cesta de roupa suja, Fernanda? - Entregou a camisa suja para a empregada. - Estou com pressa. Avise para dona Vera que já saí.
- Sim, senhor - disse Fernanda, pegando a camisa embolada.
Por um momento deu a impressão que ele diria algo, mas mudou de ideia e saiu em passos apressados. Fernanda jogou a camisa em cima da mesa e terminou de coar o café.
As crianças já a esperavam sentados na mesa da sala de jantar. Ela trouxe leite, café, pão e algumas frutas e ordenou:
- Engulam logo que a Kombi já tá chegando.
Obedientes, tomaram seu café em dez minutos e depois ficaram na sala principal esperando a Kombi, que chegou pontualmente às sete e quinze.
Fernanda voltou para a cozinha e bebeu seu café em um copo de geléia. A velha tava dormindo ainda e tinha tempo para botar algumas roupas na máquina de lavar. Pegou a camisa de cima da mesa, entrou na área e no momento que abriu os botões, viu que tinha um papel dentro do bolso.
"Na pressa se esqueceu disso", pensou ela. Tirou o papel e jogou a camisa na máquina. Curiosa, abriu a folha. Dessa vez não era um bilhete amarelado e manchado que leu e sim, algo mais interessante.
- "EU, PEDRO IBAÑES, NATURAL DE MADRI, ESPANHA, RESIDENTE NO BRASIL HÁ 40 ANOS, DECLARO A QUEM POSSA DO MEU INTERESSE NA AQUISIÇÃO DA CASA E DO TERRENO NA RUA PRINCESA ISABEL NÚMERO 239, BAIRRO DE FÁTIMA, PARA CONSTRUIR NAQUELE LOCAL O EDIFÍCIO RESIDENCIAL MADRE IBAÑES. - Ela leu em voz alta. -  NO INTUITO DE MANTER AS NEGOCIAÇÕES TRANSPARENTES, AFIRMO QUE EM CASO DA COMPRA DO DITO TERRENO, CONCEDEREI UM BÔNUS DE R$ 100.000,00 (CEM MIL REAIS) LIVRE DE IMPOSTO, SEM CONTAR A COMISSÃO DE CINCO POR CENTO NO VALOR PROPOSTO PARA A CASA. PARA FIRMAR O COMPROMISSO, ASSINEI E REGISTREI EM CARTÓRIO PARA QUE NÃO HAJA NENHUMA DÚVIDA."
O que era aquilo? Um doido querendo comprar a casa?
Mas o que lhe chamou atenção foi a parte: Bônus de cem mil reais!
- Quer dizer que o mané tá com uma proposta dessa! Cem milhas!
Dobrou o papel. Guardou-o no bolso do seu avental. De repente podia ter alguma utilidade no futuro. 
- Cem mil - repetiu Fernanda. De repente, achou seu patrão mais interessante. Muito interessante...
               *****************************
Vera entrou apressada na sala de jantar. Fernanda já estava lá com Dona Vitória, dando mingau para a velha. Vera sentou na sua cadeira e disse:
- Bom dia. Minha mãe parece que tá mais animada que ontem.
Fernanda concordou com a cabeça. Dona Vitória olhava fixamente para o prato de mingau na mão da empregada. Tinha a boca banguela escancarada, aguardando ansiosa outra colherada.
- Típico da idade - refletiu Fernanda. - Tem dias que está bem disposta, mas em outros dias... Falo isso por experiência própria...
Vera passava margarina em uma fatia de pão e completou:
- Sua cliente... a que trabalhou por um ano...
- Oito meses - corrigiu a empregada, oferecendo mais uma colher transbordando de mingau de aveia. Dona Vitória lambeu os beiços sujos de leite e sorria; para Fernanda, ela parecia uma vaca ruminado um monte de capim.
- Que seja. E as crianças estão mais calmas?
- Parece que sim.
- Esqueci da bíblia. Mas hoje te trago uma.
- Não precisa... tenho outra...
Vera ignorou o comentário da empregada. Se ela disse que ia comprar, então não tinha mais discussão.
- A garagem está arrumada - comunicou Fernanda, raspando com a colher o resto do mingau do prato.
- Bom. Odeio ver bagunça - disse Vera, seca. Ela esvaziou a xícara e ia se levantando quando Fernanda avisou:
- Na hora que vinha para a cozinha, achei um álbum em cima do banco do jardim e pus em cima de uma caixa. Deixei para que a senhora me diga se fica lá ou se quer guardar.
Vera estranhou.
- Álbum? - O único álbum de retratos que ela tinha conhecimento estava guardado no quarto da sua mãe em cima do armário. Ela mesmo deixara lá. Ali tinha fotos dela quando criança e adolescente e dos seus pais, em viagens internacionais e nas várias reuniões que organizavam no casarão. - Tem certeza?
Sua vontade era responder: "Não tenho tanta certeza, dona Vera. Eu sou uma imbecil, lembra?"
- É sim, daqueles bem antigos. Tem uma capa bonita... de uma mulher segurando uma criança no colo.
Vera comentou, desinteressada.
- Pode ser um álbum da minha mãe nos tempos de solteira... - Ela não queria que a empregada a visse ansiosa, por isso se mostrou mais imparcial possível. Ela acariciou o ombro de Dona Vitória e perguntou: - A senhora guardou algum álbum na garagem, mãe?
Na verdade, ela não esperava uma resposta da mãe, o que aconteceu de fato. Simplesmente a velha a encarou com desconfiança e sua língua áspera perambulava sobre os finos lábios.
O que essa mulher tava falando? Agora ninguém pode comer sossegado que chega um pra atrapalhar. Ultimamente tem vindo gente que nunca vi antes. Isso era coisa do Teodoro. Se orgulha do seu eleitorado feminino. "Elas que me elegem, Vitória, elas que garantem minha vaga na Câmara." Vou falar o quê? Ele quem manda... Mas ainda vou ter uma conversa séria com ele. Não ligo que essas piranhas o elejam, mas não precisa trazer pra casa!
Vera se alegrou com o brilho que viu nos olhos da mãe, mas logo esse brilho apagou e os olhos de Dona Vitória voltaram a ser ausentes, aquosos.
Vera pegou sua bolsa e uma pasta de processos e foi para a garagem. Deixou tudo dentro do carro e caminhou até uma pilha de caixas de papelão. Achou o álbum que Fernanda mencionara e levou-o para o Palio. Ia dar uma olhada nele quando chegasse no escritório.
No caminho, pensou em Aurélio. Nem o viu saindo de manhã. Talvez estivesse mesmo com alguma venda ou tinha uma entrevista na Patrimóvel. Uma parte dela queria acreditar nisso. Se ele agisse como ela queria, tudo voltaria ao normal...
Casar era fácil. A separação  que era a parte difícil do relacionamento. 

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

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