Vera pegou sua bolsa e uma pasta de processos e foi para a garagem. Deixou tudo dentro do carro e caminhou até uma pilha de caixas de papelão. Achou o álbum que Fernanda mencionara e levou-o para o Palio. Ia dar uma olhada nele quando chegasse no escritório.
No caminho, pensou em Aurélio. Nem o viu saindo de manhã. Talvez estivesse mesmo com alguma venda ou tinha uma entrevista na Patrimóvel. Uma parte dela queria acreditar nisso. Se ele agisse como ela queria, tudo voltaria ao normal...
Casar era fácil. A separação que era a parte difícil do relacionamento.
Aurélio
desceu a colina apressado e quando chegou na esquina da rua Marquês de Paraná,
percebeu que sua camisa estava ensopada de suor. Não sabia se era por causa do
calor ou se era de ansiedade.
-
Pode ser as duas coisas juntas - disse ele, andando pela calçada até o sinal de
trânsito. Àquela hora, o trânsito era indigesto, com uma enorme fila formada de
carros, motos e ônibus a caminho da Ponte Rio-Niterói. Atravessou a rua e
entrou na Amaral Peixoto, avenida principal que terminava na Estação das
Barcas. Caminhando lentamente em busca de uma desculpa, Aurélio sentia que sua
permanência na casa era questão de meses, ou na pior das hipóteses, dias. Na
hora que Vera descobrisse que ele não tinha falado com nenhum colega e nem ido
à Patrimóvel, ela decretaria o fim do casamento.
Por
isso que a venda daquele casarão era primordial para sua vida. Com cem mil no
bolso, não se preocuparia se ela descobrisse que mentira. Mesmo sendo expulso,
teria como se manter. E com uma bolada no banco, até seus filhos o olhariam com
outros olhos.
Chegou
no escritório e abriu a porta com uma chave reserva que tinha com ele. Largou
sua pasta em cima da mesa, procurou algum recado e fez café na cafeteira. Ainda
era muito cedo; daria mais uma hora até que fosse ao escritório do Xavier.
Bebericando
o café forte, pensou na empregada. Decidiu que ia investir em cima dela.
Mudaria sua postura de patrão benevolente para o patrão tarado pela ninfeta.
"É
só falar no ouvidinho dela: quero te comer!, que ela vai me agradecer de
joelhos!", Acreditou ele, esvaziando o copinho plástico e jogando-o na
lixeira sob a mesa.
A
porta abriu e Viriato, com a mesma camisa de dois dias atrás, com a gola
parecendo como de um palhaço e a gravata chegando até o cinto, entrou, com um
lenço encharcado na mão e gotas de suor pingando do seu queixo pontudo.
-
Puta merda! Nem deu nove horas e o sol tá rachando os miolos! Parece que tem um
maçarico em cima da cabeça! - Largou o jornal dobrado em cima da mesa e disse:
- E aí, Aurélio? Descansou bastante? Tá com uma aparência melhor...
-
Não enche o saco, Viriato.
-
Orestes teve aqui ontem e perguntou por você.
Aurélio,
que rabiscava um papel solto na mesa, levantou as sobrancelhas e comentou:
-
Mesmo? Que milagre foi esse dele aparecer numa terça-feira?
Orestes,
dono da imobiliária, aparecia duas vezes por semana. Seu lema era: Pra ganhar
dinheiro, tem que gastar sola de sapato. Esquentando a bunda na cadeira não dá
nada, a não ser hemorroidas!"
-
Ele não te viu e ficou surpreso. Sabe o que ele falou?
Aurélio
não perguntou, mas Viriato se achou no dever de responder:
-
"Aurélio foi atender um cliente! Rápido, corram no camelô e comprem um
guarda-chuva! Hoje promete um toró daqueles!" - Viriato terminou e caiu na
risada, com seu pomo-de-adão subindo e descendo conforme o ritmo da gargalhada.
Aurélio
jogou a caneta que tinha na mão e acertou o peito esquelético do corretor.
-
Deixa ele - disse Aurélio, nem um pouco contrariado.
Viriato
guardou a caneta no bolso da sua camisa encardida e zombou:
-
Como se ele também tivesse ido a um cliente...
Não
era à toa que a pequena imobiliária ia mal das pernas. Aurélio não queria mais
ouvir a voz do magricela ao lado e se levantou. Comunicou:
-
Se Orestes ou minha mulher ligarem, diga que fui num cliente!
Viriato
escancarou a bocarra e riu mais ainda. Enxugou os olhos e murmurou, entre
risadinhas frouxas - Pode deixar. Eu falo!
Uma
das coisas que Aurélio tinha certeza nesse ramo de corretagem é que ali não
existiam amigos. Ele podia dividir o espaço com outros corretores e o único
assunto que ouviria seriam das vendas do passado. Não podia dar mole quando
falava de clientes; levar uma volta era a coisa mais natural nesse ramo. Por
isso a célebre frase: "O segredo é a alma do negócio" ou "Em
boca fechada não entra mosca!"
Saiu
do prédio e encontrou a avenida congestionada de pessoas que iam e vinham pela
calçada. Com sua mente vagando, mal percebeu os encontrões que dava nos
pedestres acelerados. Quanto mais lento fosse andando, maior a chance de
encontrar Xavier na sala dele.
Chegou
em frente do edifício ao lado do Bradesco e acendeu um cigarro. Seus dedos
tremiam e ele desconfiava que era pura ansiedade.
"Pra
quê esse nervosismo? O máximo que pode acontecer é ele falar "não pode".
Tenho apenas quatro dias pela frente, e do jeito que Vera está me tratando,
acho que nem em quarenta dias consigo convencê-la! Ela é muito turrona, quando
bota uma coisa na cabeça, segue com ele até o fim, mesmo que seja furada. -
Imitou a voz da esposa: - ' O casarão foi o sonho do meu pai! Planejado nos
últimos detalhes! Meu pai é o exemplo do grande homem que foi, ajudou pessoas
necessitadas, sempre esteve disposto a qualquer eventualidade! ' Grande
Teodoro... homem íntegro, sem mácula, justo, leal...O escambáu! Por causa desse
cara que morreu há quase sete anos, sua filha ainda cultiva sua memória,
tentando a todo custo manter sua presença no mausoléu! Até a porra de um prato
e talheres ela manda pôr na cabeceira da mesa! Pra mim, isso tem nome. Neurose!"
Jogou
a guimba de cigarro no chão e esmagou-o com a sola do sapato, entrando no
prédio em seguida.
Quando
chegou na porta da sala com aquele aviso idiota: NÃO É NECESSÁRIO ESQUECER O
DEDO NA CAMPAINHA. AQUI NÃO TEM NENHUM SURDO, bateu duas vezes.
Após
um tempo que lhe pareceu muito longo, a porta abriu e ele deu de cara com
Maresia. Ele usava uma camisa de linho com os botões abertos até o umbigo e o
gigantesco crucifixo balançava em cima do peito magro de poucos pelos.
-
Olha só quem tá aqui! - disse Maresia, abrindo um sorriso largo. Aurélio notou
que faltavam alguns dentes e um deles era de ouro. - Vamos, entra logo!
Aurélio
entrou na pequena sala que dava para outra porta, essa vigiada pelo tal
"Parede", o careca tatuado. Só que dessa vez tinha outro sujeito, um
negão de quase dois metros de altura e o corpo como de um armário duplex. Ele
estava sentado numa cadeira, com os braços parecidos de aço abraçando duas
cadeiras ao lado e com as pernas esticadas, balançando os pés enfiados em um
tênis falsificado.
Maresia
o apresentou:
-
Esse é o Abelhão. Gente boa. Nunca matou ninguém à toa - Riu da sua piada.
"Parece
que hoje todo mundo acordou inspirado!", pensou Aurélio.
Abelhão,
que parecia bem à vontade, disse, em sua voz sonora e rouca:
-
O amigo vai ter que aguardar um pouco. A chefia tá com um doutor lá dentro.
-
Eu espero - disse Aurélio, em pé. Haviam três cadeiras na salinha e o gigante
de ébano sentava no meio e agarrava as outras duas. Aurélio não queria sentar
em uma e ser abraçado por ele.
Maresia
sentou-se na mesa que devia ser de uma recepcionista e deu um tapa amigável no
ombro de Aurélio.
-
Se acomode aí, amigo.
-
Tô bem de pé - retrucou Aurélio, encostando na parede.
Abelhão
parecia mais relaxado ainda. Aurélio notou uma protuberância em baixo da camisa
do negão. Com certeza, era uma pistola.
-
Maresia, o doutor não é de perder tempo não!
-
Por quê? - Maresia coçava os ralos pelos do tórax esquelético.
-
Tinha que ver a prensa que o cara deu na coroa no meio da rua da Conceição. A
coroa nem teve tempo de respirar, o cara praticamente engoliu a boca da fulana!
-
No meio do povo?
-
Não tavam nem aí com a hora do brasil. Faltou o doutor tirar as calças e meter
na calçada mesmo!
Seja
lá quem fosse esse doutor, tinha que ter muita cara de pau pra mostrar aqueles
arroubos românticos em plena luz do dia!, pensou Aurélio. Ele era do tipo que
preferia os lugares vazios, escuros, para isso.
-
E quem é a coroa?
Abelhão
meteu sua manopla em cima do volume na sua calça e ficou brincando ali,
distraído. Aurélio, enojado, virou o rosto para o lado.
-
Acho que é patroa da mulher que tô pegando.
Maresia
esticou as costas e indagou, com malícia:
-
Pegou outra velha pra te bancar? Tu não é mole!
-
Pode sacanear. As velhas gostam do meu instrumento e me agradam mesmo! - O tal
instrumento ele apertava e era do tamanho de uma linguiça calabresa. Aí mesmo
que Aurélio teve vontade de fugir daquela salinha pra bem longe. - Ontem Cida
levou uma lasanha pra mim. Cara! Que lasanha gostosa!
Cida?
Era o nome da secretária da Vera. Que coincidência. No Rio de Janeiro, o que
mais se via eram mulheres com o nome Aparecida.
Aurélio
pensou nisso, mas sua preocupação mesmo era o papo que ia ter dentro de
minutos. Maresia deu outro tapa no seu ombro e perguntou:
-
Tá trazendo boas notícias pro chefe?
-
Desculpe, mas esse assunto é com ele - disparou Aurélio, injuriado. Uma coisa
que mais odiava eram tapinhas no seu ombro, principalmente de um sujeito barra
pesada como Maresia.
-
Ih! O doutor tá com moral, hein - brincou Abelhão, se ajeitando na cadeira.
Largou a linguiça calabresa e pôs a manopla sobre a protuberância da camisa, como
que para intimidar.
E
deu certo. Aurélio se perguntou como tinha se envolvido com aquele tipo de
gente. Sempre viveu no marasmo do cotidiano e agora...
"Cem
mil. Basta pra você?", Ele respondeu à sua pergunta.
-
Tira a mão daí, Abelhão. Tem que parar com essa mania de ficar mostrando seu
instrumento de trabalho. O amigo aqui é sangue bom. Xavier gosta dele!
Abelhão
deu de ombros e novamente abraçou as cadeiras e se esparramou, esticando as
pernas. Houve uma batidinha na porta da frente e Maresia atendeu. Era Parede,
outro capanga, o tatuado e careca. Ele cumprimentou Aurélio e perguntou:
-
O doutor tá lá ainda?
-
Ainda.
-
Xi... Se soubesse, tinha dormido até mais tarde. O papo deles vai render a
manhã toda!
-
Larga de ser pessimista. Só tá tendo algumas diretrizes e logo acaba.
Com
as pernas doendo de tanto esperar em pé, Aurélio decidiu sentar em uma das
cadeiras, mesmo sendo abraçado pelo negão. Parede se acomodou na outra.
Pareciam três meninos comportados, em silêncio. No outro lado da porta, não se ouvia
nada. A parede era revestida para manter o sigilo dos negócios.
Meia-hora
se passou e a porta abriu. Um homem moreno e de terno azul marinho saiu
carregando uma pasta de couro. Ele olhou para o interior da sala e disse:
-
Me dê notícias, Xavier. Isso tem que acabar logo!
-
Pode deixar, doutor - A voz de Xavier veio alta e satisfeita.
Aurélio
ficou de pé e o homem moreno esbarrou nele, sem querer.
-
Desculpe - disse ele.
-
Vai na paz, doutor Rodrigo. - disse Maresia, abrindo a porta da frente.
Rodrigo
Antunes não falou nada, passou pelo magricela e sumiu pelo corredor do prédio.
Maresia fechou a porta e disse:
-
Sua vez, amigo.
Aurélio
respirou fundo e entrou na sala de Xavier.
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário